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Jorge Edwards. Foto: Ulf Andersen |
O real é sempre muito mais do que
o real documentado. A intuição, imaginação, fornecem hipóteses, interpretações,
conjecturas. A ficção é então uma forma de iluminar a realidade através da
imaginação da realidade. Não é que a ficção invente um mundo à parte: nos
romances de Jorge Edwards, a ficção é uma forma insubstituível de tentar
compreender a realidade. Edwards escreve para entender.
Sua poética situa a ficção em
relação à história. A tradição realista tem sido criticada, argumentando-se que
se temos realidade, por que uma cópia? É uma velha objeção já levantada pelo
velho Platão. Na melhor ficção de Edwards, a realidade aparece como algo a ser
descoberto. A narrativa vasculha essa realidade que não se entrega facilmente.
A verdade deve ser procurada através de aproximações sucessivas e imperfeitas.
O estilo de Edwards incorpora esse espírito. As tentativas e conjecturas se
sucedem.
A escrita de Edwards tem esse dom
irredutível a fórmulas que é o dom do puro e simples entretenimento. E isso não
tem tanto a ver com o enredo, mas sim com o modo. Nem com o tom de Edwards:
prosaico, irônico e inteligente, mas nunca pedante, solto, tranquilo, natural,
descontraído, desprovido de ênfase. Em artigo publicado no
Letras Libres
por ocasião dos 90 anos do escritor, comentei sobre sua voz narrativa, tão
característica. Diz Pascal: “Sempre surpreende e encanta encontrar um estilo
natural. Esperávamos ver um autor e encontramos um homem.”
Foi nos romances
A origem do
mundo (1996) e
O sonho da história (2000) que Edwards encontrou com
uma concepção estética que, desde então, se tornou sua e que em
A última
irmã (2016) chama de “a forma conjectural”.
O romance de Edwards que mais
gosto é
A origem do mundo. É uma história bastante breve, mas de grande
intensidade, envolvente da primeira à última página. O tema é eterno: um
triângulo amoroso, os ciúmes. Seu maior sucesso, e de onde vem seu encanto
particular, é o narrador, um narrador conjectural.
“O doutor Illanes, bem instalado
num conjunto global de convicções, sempre suspeitara que Felipe sentia a tentação
irresistível do fracasso, do fim.
‘Fracassado, sim’, teria repetido
Felipe em voz alta, falando sozinho [...] Teria calculado, suspeitava o doutor”
[...]
Assim havia imaginado das coisas o
doutor Patricio Illanes”
1
O doutor vai interpretando sinais,
considerando hipóteses. O ciúme transforma o ciumento em um pesquisador que
corre perigo ao investigar. Ele também os supõe se não investiga. “Porque ele
não ignorava, claro, não ignorava totalmente, e havia muito tempo, a fraqueza
de Silvia, e mais de uma vez tivera suspeitas, sentimentos insidiosos,
incômodos, que se renovavam cada vez que observava em campo, em ação, a
capacidade de sedução e a perfeita falta de escrúpulos de Felipe Díaz”. O doutor
tenta espreitar o mundo interior e secreto de Silvia. Imagina que existe esse
mundo secreto e proibido para ele. Nesse sentido, o doutor é um romancista que
imagina a realidade para descobri-la.
Em seu romance
A última irmã
(2016), o escritor propôs algo que hoje é quase impossível de fazer com
credibilidade: nos mostrar um romance a um herói, a uma heroína, no caso. A
protagonista existiu, sua história é real. No memorial Yad Vashem de Israel,
Maria Edwards é uma dos “Justas entre as Nações”. Como tornar crível a vida de
uma chilena próspera que mora na Paris ocupada pelos alemães, que arrisca sua
vida repetidamente para salvar crianças judias, sem ser judia, sem ter laços
com elas, sem conhecer suas mães ou seus pais? É um verdadeiro
tour de force.
E como o autor fez isso nesse romance? Bem, não sabendo muito, deixando que sua
Maria Edwards seja, um pouco, um ser que permanece um mistério.
A história de María Edwards que
Edwards narra sugere que não se é um herói ou uma heroína, pois pode ser alto
ou baixo, moreno ou loiro. O heroísmo, sugere a narrativa, exige coragem, mas,
em última análise, é algo circunstancial. É uma situação determinada que faz
uma pessoa se comportar com coragem heroica. Após essas circunstâncias, esse eu
heroico torna-se inoperante. Fica uma marca, claro, e a volta do herói para
casa, para a vida normal, é dolorosa. María sente que esse eu que ela
conquistou “com amor abnegado e sofrimento terrível” agora “de repente a deixa
na sarjeta”. A vida em Paris, no pós-guerra, e o retorno ao Chile remoto” estão
impregnados de um desencanto que contagia o leitor. Talvez o mais difícil para
a heroína seja superar esse desencanto, seja voltar a ser uma pessoa comum.
Talvez isso exija um novo heroísmo.
Em Edwards, a ficção é sempre um
prolongamento da crônica, pelo já dito, porque imagina e conta para compreender.
Escreveu semanalmente uma crônica — publicada por
El País,
La Segunda
e depois
ABC — e dois volumes de memórias. De seus livros, o mais famoso
é
Persona non grata (1973), que este ano completa 50 anos. Eu o reli.
Hoje tem frescor e novo interesse. Claro, é uma crônica escrita com uma desenvoltura
e naturalidade que a torna inteiramente convincente. Ao publicar esse
testemunho, Edwards, com uma coragem impressionante, colocou em risco sua
carreira diplomática e de escritor.
Como se sabe, Jorge Edwards chegou
a Cuba como diplomata enviado pelo presidente Salvador Allende com a missão de
abrir a embaixada do Chile em Havana. Chile e Cuba restabeleciam suas relações
diplomáticas. O governo de Allende era amigável e Edwards era escritor e
diplomata. Ele já havia estado em Cuba antes e deu provas públicas de seu apoio
à revolução cubana.
Depois de ler
Persona non grata,
ficam na memória personagens inesquecíveis que percorrem as páginas de
imediato, de forma espontânea, com aquela coisa irrefutável que é viva. Um
deles é o poeta dissidente Heberto Padilla, autor do livro de poemas
Fuera
de juego (1968), que ganhou o Prêmio de las Américas naquele ano em Cuba.
Padilha aparece cercado de fumaça e álcool, cheio de humor em madrugadas
boêmias com escritores boêmios. Ele é um homem inteligente, culto, mordaz, que
faz comentários sarcásticos sobre o estado das coisas com grande liberdade de
espírito. É um revolucionário desencantado com a revolução e bem ciente da
onipresença dos serviços de inteligência do regime. Edwards encontra com muita
frequência — com muita frequência, aos olhos do governo — esses escritores e
intelectuais dissidentes. É um escritor e estes são seus amigos.
Enquanto isso, depois de pouco
mais de três meses, Edwards, que não conseguiu nem mesmo uma casa para a
embaixada do governo, foi designado para Paris, onde o embaixador chileno é
Pablo Neruda. Num domingo, 21 de março, quando estava para partir, Edwards
recebeu alguns de seus amigos na suíte do hotel onde estava hospedado, que “começaram
a fazer caretas frenéticas”, diz Edwards, “apontando para os microfones
invisíveis, e me entregaram um pedaço de papel que dizia o seguinte: ‘Heberto e
Belkis estão presos desde ontem. Não sabemos os motivos da prisão. O
departamento está fechado pelo Ministério do Interior. Queimamos o papel,
jogamos na privada...”
Nesse mesmo dia, domingo, Edwards
é convocado ao Ministério das Relações Exteriores. O chefe do protocolo o pega
pouco antes das onze da noite. O ministro Raúl Roa o espera no gabinete e, ao
seu lado, Fidel Castro, ambos de verde oliva e com pistolas na cintura. A
conversa é longa. Frequentemente Fidel se levanta e anda pela sala explicando,
às vezes furiosamente, as razões de seu repúdio à maneira como se comportou. Na
verdade, ele o considera “persona non grata”. O presidente Allende já está
ciente dessas críticas, Edwards descobre no encontro.
Nessa reunião final, Castro, com “sua
memória prodigiosa”, prova conhecer todos os contatos de Edwards. “Como você
deve entender”, Castro diz a ele, “seria estúpido de nossa parte não ficar de
olho nele. Seguimos cada um de seus encontros em detalhes.”
A explicação de Castro é simples.
Em suma, o regime não tolera um diplomata comum e que dê asas à dissidência.
Mesmo que seja um escritor que se encontra com escritores. Do ponto de vista do
regime, é claro que toda dissidência é antirrevolucionária. Porque a revolução
é personificada por seu líder. Criticar o líder é criticar a revolução.
Edwards admite que “é provável que
ele tenha agido mais como escritor do que como diplomata”. Mas seus amigos
escritores representavam um perigo para Castro? Edwards pensava que não. Eles
eram agentes do inimigo? Edwards garante a Castro que não, de jeito nenhum.
Todos eles são figuras comprometidas com a revolução, mas têm críticas.
Ao mencionar Padilla, Fidel,
enojado, disse: “Você deve saber que Padilla é um mentiroso. E um desleal! E
também, além disso — Fidel enfatizou levantando o dedo indicador — ele tem
certas
ambições”. E acrescenta Edwards: “Ele ficou em silêncio após esta frase, como
se para me dar tempo para tirar todas as consequências.”
Edwards então lembrou que Padilla
às vezes falava de como ele sobrevivia graças a certas lutas atuais dentro do
regime. Que “gostava muito de sugerir ligações misteriosas entre ele e alguns
poderes secretos”. Era verdade ou fantasia de um poeta? Ou era uma fantasia paranoica
de Fidel, ou simplesmente uma mentira? A essa altura da conversa, poucas horas
depois de saber que estava na prisão, Edwards pensa que talvez seja verdade que
Padilla tomou as liberdades que tomou porque pertencia a uma facção poderosa
dentro do próprio regime. Então, seus contatos e amizade com ele — um diplomata
de outro governo socialista, eleito democraticamente — adquiriram um aspecto
não apenas literário, mas também político. É o que Edwards conjectura enquanto
descobre o que Fidel pensa dele e comunicou ao Presidente Allende. Em todo
caso, o fato de os intelectuais críticos serem apoiadores da revolução era
justamente o que os tornavam perigosos. E para Edwards representar Allende — a
nova face do socialismo latino-americano — e abraçá-los só aumentava o perigo.
Castro então ataca “o pequeno
grupo de escritores e artistas burgueses que tanto agiram e falaram até agora”.
Chegava a hora de suplantar, disse, “a velha cultura burguesa que sempre
conseguia sobreviver depois da revolução” e abrir caminho para “a nova cultura
do socialismo”. Assim acontecera na União Soviética e na China com sua
revolução cultural. “Não há país socialista que não tenha passado por uma etapa
como esta”, diz Fidel. A revolução cubana estava “ingressava”, entendeu
Edwards, “num período stalinista”.
O caso Padilla ficará famoso
quando o poeta aparecer publicamente confessando seus pecados contra o regime,
sua “autocrítica”. Esse fato foi um divisor de águas. A carta de protesto redigida
por Mario Vargas Llosa foi assinada por Sartre, Simone de Beauvoir, Marguerite
Duras, Italo Calvino, Julio Cortázar, Carlos Fuentes, entre muitos outros.
Castro, naquela noite, também fala
com ele sobre o Chile. Allende conseguiu o governo, mas não o poder. No final,
o confronto armado será inevitável. Depois de sua visita de quase dois meses ao
Chile e, sobretudo, depois da marcha das mulheres com as “panelas vazias” que
teve que ver em Santiago, Fidel não acredita que seja viável uma revolução
socialista pela via legal-democrática. Edwards então se lembrou de algo que lhe
disse em sua primeira entrevista, recém-chegado a Havana, cheio de ilusões. Em
caso de intervenção armada, disse, não hesite em pedir ajuda aos cubanos. “Seremos
ruins na produção, mas somos bons na luta!”
A ideia de Edwards sobre a
revolução é que o regime evoluiu para uma ditadura pessoal. Fidel intervém em
tudo. Ele ainda seleciona suas fotos que vão aparecer na primeira página do
jornal
Granma. Mas o que alimenta a fidelidade à revolução? Segundo
Edwards, a adesão à revolução deve ser entendida como uma “reação, como
oposição ao
american way of life. Diante do bezerro de ouro, diante da
vulgaridade barulhenta e mentirosa do Norte, o mundo hispano-afro-americano
oferecia um rosto barbudo, sulcado pela insônia, sem maquiagem para esconder a
teimosa e dura realidade.” Anos depois voltará à mesma tese: “Fidel Castro
representou o antiianquismo visceral”. (“Diálogos no telhado”, 2013, coluna
publicada em novembro de 2002)
Vamos dar o próximo passo: o que
alimenta o compromisso com a revolução é uma forma de nacionalismo. Isso é
fortalecido, é claro, pelo repúdio ao imperialismo bárbaro demonstrado, por
exemplo, no golpe de estado na Guatemala (1954) e que Vargas Llosa transformou
em romance (
Tempos ásperos, 2019). Como em todo nacionalismo, há uma
ferida — neste caso causada pelos Estados Unidos — a partir da qual se constrói
uma identidade. Como em todo nacionalismo, há uma resistência moral a uma
cultura e modos de vida que se infiltram, modificam e diluem formas e vivências
tradicionais. Como em todo nacionalismo, há uma defesa do “próprio” ameaçado
pelo “alheio”. O capitalismo sempre representa uma “destruição criativa”, para
usar a expressão de Schumpeter. Essa capacidade transformadora mina os
costumes, o estabelecido e gera instabilidade. O marxismo real, então, seria
uma máscara para o nacionalismo. Surpreendente: se Edwards estiver certo,
sempre houve um tom conservador e reacionário para apoiar a revolução. Seria mais
uma oposição aos modos de vida do capitalismo do que uma utopia ou um projeto
de futuro. A revolução socialista é melancólica.
Notas
1 A tradução aqui citada é de José
Rubens Siqueira.
A origem do mundo foi publicado em 2014 pela extinta
Cosac Naify. Os demais livros e as citações referentes são nossas a partir da
versão original disponibilizada no texto.
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