O diretor multinacional Fritz Lang
disse que todo grande filme está contido na primeira cena. Também me lembro que
o autor estadunidense John Steinbeck disse que os melhores romances podem ser
resumidos em uma frase. Se for esse o caso,
Agitação (
Unrest,
2022),
do cineasta suíço Cyril Schäublin, pode ser descrito como uma resposta
insubordinada a um famoso lugar-comum: “Tempo é dinheiro”. A frase foi repetida
tanto que pode ter perdido seu impacto. Para a maioria, é apenas uma forma de
apressar as pessoas para entregar um pedido, terminar de montar um produto ou
enviar um e-mail para convocar imediatamente uma reunião de trabalho, mas suas
implicações são encontradas em cada um destes exemplos: pensar que tempo é
dinheiro significa dar mais importância para as receitas do que para o trânsito
de cada um por uma dimensão que causa marcas e memórias, significa submeter as
maravilhas da natureza ao desejo de explorar os seus recursos e os
trabalhadores que os processam para produzir mercadorias que se vendem e nos abram
as portas ao luxo . Schäublin parte do sentido genuíno desse dito para fazer um
filme sobre a resistência ao imaginário capitalista com trabalhadores que se rebelam
perdendo o tempo.
Seria fácil dizer que
Agitação
é uma cinebiografia de Piotr Kropotkin (Alexei Evstratov), mas seria um equívoco.
Embora o anarquista russo apareça em muitas cenas, grande parte da filmagem pertence
à força de trabalho de uma fábrica de relógios e da comuna anarquista que
oferece condições mais dignas para o mesmo trabalho; importam, além disso, os
políticos locais, a polícia, a taverna e seu dono, porque o verdadeiro
protagonista — e o enredo — é o espaço onde o filme se passa: um povoado suíço
onde Kropotkin chega no século XIX para fazer um mapa anarquista mas permanece
nele para aprender o ofício da resistência. A partir dessa abordagem,
Agitação
demonstra sua vontade de se chocar com a norma, já que o filme não é sobre uma
figura revolucionária e as lições que ele dá, mas sobre um grupo onde a
identidade é compartilhada.
Embora Schäublin tenha definido o
estilo que ainda usa em seu primeiro longa,
Aqueles que estão bem
(2017), parece que suas decisões em
Agitação decorrem das ideias
expressas no roteiro: muitas vezes as imagens precisam ser escaneadas para
identificar quem está falando porque os planos são povoados por muitas figuras,
envolvidas em diferentes ações. O som de uma determinada conversa nos aproxima
de onde o diretor quer que foquemos nossa atenção, mas sem nos negar a
possibilidade de nos distrairmos. Os planos são, nestas ocasiões, murais, como
muitos pintados por artistas mexicanos: a história recusa-se a centrar-se num
único indivíduo e no máximo encontra toda a classe trabalhadora num corpo
torturado. A distância entre a câmera e seus sujeitos, encurtada pelo som,
também rima com a história do anarquismo: tão perto da utopia, mas distante
dela pela inveja e pelo incômodo que ela provoca nos sistemas comunistas,
liberais e monárquicos.
Schäublin também se aproxima para
ver mãos construindo relógios, peças inexplicáveis e moedas que, contadas e
guardadas em um envelope, produzem uma poesia salarial. Perto do final, o corpo
anarquista canta um hino em conjunto e, para medir a fusão desses indivíduos
organizados, o diretor nos mostra um retrato individual após outro. Cada uma
dessas pessoas é alguém em particular, mas a solidariedade as transforma em
algo maior, que o filme aborda com um didatismo deliberado e militante.
É comum que o pensamento liberal
ou conservador ataque a ideia da arte como escola, mas na esquerda — de
Aleksandr Dovzhenko e Yulia Sólntseva a Radu Jude — a militância é considerada
inevitável, mas também inspiradora. Schäublin adere a essa tradição e se vale
da artificialidade deliberada dos atores para justificar as discussões entre os
personagens, cujo objetivo é informar ao público. Embora o elenco não seja tão
rígido quanto o dos chamados “modelos” de Robert Bresson ou Angela Schanelec, mais
estátuas do que seres humanos, os personagens de
Agitação estão longe da
expressividade convencional e, assim, discutem a ascensão do anarquismo, a
Comuna de Paris e o funcionamento dos relógios, telégrafos e horários que
abundam na cidade, divididos entre os horários estabelecidos pela fábrica, pelos
transportes, pelo município e pelas vias de comunicação. Tudo é amplamente
discutido porque o final do filme, como o de muitos personagens que o habitam,
é a agitação espontânea de nós que o assistimos, daí o título.
Unrest pode ser traduzido
como inquietude, e assim alude ao descontentamento dos anarquistas, mas também
é o nome em inglês de uma peça que dá equilíbrio aos relógios. Um personagem
explica no final, naturalmente, mas há outras metáforas mais discretas que Schäublin
espalha pelo filme e que remetem à ideia do tempo como uma besta que o
capitalismo tenta domesticar. Os segundos se manifestam materialmente em
processos como a captura de uma fotografia — um cronômetro calcula a exposição
da imagem — ou o dos trabalhadores que montam rodas e as engrenagens como
cirurgiões. Quando ninguém os vê, organizam-se para trabalhar mais devagar e
evitar a demissão dos colegas menos qualificados, porque o tempo é usado pelos
capitalistas como uma ameaça: atrasos na produção ou no início do trabalho,
apesar das complicações que produzem os vários horários que atravessam o
cidade, são motivos para demitir funcionários.
Do exposto fica claro que
Agitação
não é, apesar de suas imagens utópicas e de sua instrução anarquista, uma
crônica da vitória operária, mas um arco cada vez mais melancólico da
resistência. Embora os personagens sorriem quando trabalham na oficina autônoma
e quando votam para apoiar organizações internacionais com o dinheiro da
comuna; eEmbora se expressem com imagens poéticas em seus manifestos e as
autoridades burguesas os respeitem pela qualidade de seu trabalho e de sua
imprensa, pouco a pouco interesses externos vão se impondo ao seu destino: um
diplomata italiano convida as autoridades locais a quebrar o respeito constitucional
liberdade de expressão para deter um anarquista estrangeiro, e a oficina
descobre que seus relógios estão sendo vendidos para exércitos. Os anarquistas
tentam viver fora da maquinaria dos mortos, mas ela dá um jeito de engoli-los,
de fazê-los colaborar. A gota d’água é o desenlace, quando um fotógrafo
descobre a fama de Kropotkin e nesse momento dispara o preço dos retratos que
fez dele.
Apesar de tudo, Schäublin se
recusa a criar uma dicotomia moralizante entre anjos e demônios; ao contrário, seu
elenco e sua escrita procuram figuras de boa índole nos policiais locais, ainda
que exerçam a opressão ditada pelas leis. Por exemplo, devido a uma reforma, os
anarquistas são excluídos das eleições e é com algum constrangimento que estes
homens de rostos redondos e felizes, como um avô brincalhão, explicam-lhes que
não podem votar. Eles até lhe desejam um bom dia.
Nem Schäublin nem seus personagens
são sanguinários. A mudança para a anarquia é um processo amoroso construído
sobre sorrisos, trabalho que beneficia a comunidade, poesia e, finalmente, o
romance que floresce entre Kropotkin e uma operária chamada Josephine (Clara
Gostynski). Em
Agitação, Schäublin nos instrui através das conversas e
metáforas políticas de seus personagens, mas não nos força a nada; em vez
disso, ele nos ensina em suas imagens pacíficas da cidade e do campo que a
revolução, pelo menos idealmente, é um processo de e para a paz.
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