A limpeza de Roald Dahl

Por David Rieff

Roald Dahl. Foto: Dmitri Kasterine


 
A revelação de que as obras do famoso escritor de livros infantis Roald Dahl, reconhecido por Matilda, A fantástica fábrica de chocolate e As bruxas, foram sistematicamente expurgadas de linguagem que poderia ser considerada ofensiva para a sensibilidade da burguesia esclarecida da anglosfera provavelmente não deveria ter sido uma surpresa. A nossa não é apenas a segunda grande era de Bowdlerização, e as semelhanças entre os argumentos que Thomas, Jane e Henrietta Bowdler ofereceram quando apresentaram The Family Shakespeare em 1807 e aqueles agora oferecidos pela Random House/ Penguin’s Puffin Seal e Roald Dahl Estate para a completa desfiguração e “saneamento” moral da obra de Dahl são virtualmente indistinguíveis uma da outra.
 
Em ambos os casos, o objetivo declarado não foi relegar Shakespeare ou Dahl à lata de lixo da história (literária), mas salvar cada um desses autores de um tão ignóbil destino editando e reescrevendo suas obras de tal forma que os leitores contemporâneos, que, de outra forma, poderiam se sentir ofendidos e se abster de ler, digamos, Hamlet ou James e o pêssego gigante, possam continuar a fazê-lo com a consciência tranquila. Como Thomas Bowdler disse em seu prefácio à edição de 1819 de The Family Shakespeare: “Meu grande objetivo nesta empreitada é remover dos escritos de Shakespeare alguns defeitos que diminuem seu valor e, ao mesmo tempo, apresentar ao público uma edição de sua obra que os pais, tutores e instrutores dos jovens possam colocar com segurança nas mãos de seus alunos, e das quais eles possam obter instrução e prazer: possam melhorar seus princípios morais, enquanto refinam seu gosto, e sem incorrer no perigo de ser ferido por qualquer indelicadeza de expressão”. Isso significava não apenas lidar com o que os Bowdlers chamavam de “indelicadezas de expressão” de Shakespeare, omitindo-as inteiramente ou substituindo-as por algo mais palatável para um público familiar — por exemplo, os Bowdlers substituíram o “Deus” e o “Jesus” de Shakespeare por “Céus” —, mas também para suprimir personagens imorais como a prostituta Dorothy “Doll” Tearsheet da segunda parte Henrique IV, ou reescrever cenas para não ofender a sensibilidade moral da época, como no caso da morte de Ofélia em Hamlet, que os Bowdlers mudam de suicídio para afogamento acidental.
 
Os Bowdler entenderam e apresentaram explicitamente seu projeto de reduzir Shakespeare à sua expressão mínima, separando o trigo transcendente de sua obra do joio indecente e imoral que a estragava e prejudicaria quem a ela fosse exposto. “A linguagem nem sempre é impecável”, escreveu Thomas Bowdler no prefácio de 1819. “Aparecem muitas palavras e expressões de natureza tão indecente que seria altamente desejável apagá-las. A maioria delas foi evidentemente introduzida para satisfazer o mau gosto da época em que ele viveu, e o restante talvez possa ser atribuído à sua própria desenfreada fantasia. Mas nem o mau gosto da época nem as mais brilhantes efusões de humor podem servir de desculpa para palavrões ou obscenidades; e se estes pudessem ser apagados, o gênio transcendente do poeta sem dúvida brilharia ainda mais claro.
 
Todas essas justificativas para reescrever Shakespeare — cuja obra estava permeada com as visões inaceitáveis ​​de sua época, a leitura trechos ofensivos tocaria os leitores e os prejudicaria moralmente e, portanto, reescrever a obra de Shakespeare era, paradoxalmente, o que à primeira vista poderia parecer o maior serviço que se poderia prestar — são os mesmos usados ​​pela Random House Penguin e pelo Dahl Estate para explicar as mudanças que introduziram na obra de Dahl. Essas mudanças, anuncia a editora, foram feitas para que “as palavras maravilhosas de Roald Dahl possam transportá-lo para mundos diferentes e apresentá-lo aos personagens mais maravilhosos”. Mas, assim como Thomas Bowdler argumentou que a linguagem indecente de Shakespeare (e presumivelmente as cenas) foi introduzida para “cobrir o mau gosto da época” e sua (presumivelmente negativa) “desenfreada fantasia”, Dahl escreveu seus livros “muitos anos atrás” e, como resultado, a editora precisava “revisar regularmente a linguagem para garantir que possa continuar sendo apreciada por todos hoje”.
 
Assim como The Family Shakespeare tinha a ambição de ser uma versão de Shakespeare à qual pais, responsáveis ​​e professores pudessem expor as crianças com segurança, um representante da Random House Penguin disse à publicação comercial britânica The Bookseller que o fato de “crianças de cinco ou seis anos leem os livros de Roald Dahl, e muitas vezes são as primeiras histórias que leem de forma independente”, o editor de Dahl assumiu “uma responsabilidade significativa”, especialmente “porque pode ser a primeira vez que [essas crianças] navegam em conteúdo escrito sem um pai, professor ou tutor”. A editora negou que tudo isso deva ser considerado uma distorção da obra de Dahl. Ao contrário, Francesca Dow, diretora da divisão de livros infantis da Random House Penguin, proclamou que Dahl foi e continua sendo seu autor favorito por muito tempo. Suas memórias favoritas de leitura para seus filhos quando eram pequenos, disse, eram as de ler Dahl para eles.
 
Aparentemente, sem Bowdlers na Random House Penguin, a editora recorreu a leitores externos sensíveis — uma prática cada vez mais comum na publicação de língua inglesa em toda a anglosfera —, contratando uma empresa chamada Inclusive Minds para sugerir mudanças. Em uma longa declaração ao The Hollywood Reporter em resposta às perguntas do jornal sobre o envolvimento do grupo nas reescritas de Dahl, Inclusive Minds negou que fossem leitores sensíveis, mas, em vez disso, pretendia conectar os editores com sua rede de “embaixadores da inclusão”, jovens leitores com “muitas formações diferentes que estão dispostos a compartilhar sua visão [com editores e autores] para ajudá-los no processo de criação de livros autenticamente — e muitas vezes incidentalmente — inclusivos” durante o processo de escrita e edição”. Os títulos mais antigos — como os livros de Dahl — “não eram o alvo principal dos embaixadores”. Em vez disso, a Inclusive Minds considerou que “maior autenticidade é alcançada por meio de contribuições nas fases de desenvolvimento".
 
É claro que esse relato de como os livros são escritos é, na verdade, uma descrição de como os roteiros de cinema e televisão são escritos. Porque fica claro que no modelo de Inclusive Minds, embora o autor faça parte do processo, ele o faz da mesma forma que o autor do primeiro rascunho de um roteiro, ou seja, como produtor de um texto que deve posteriormente ser moldado por editores, talvez até outros escritores, e que deve ser verificado quanto a possíveis conteúdos ofensivos; novamente, o mesmo acontece com a maioria dos roteiros produzidos para as grandes empresas de cinema. Mesmo neste caso, a afirmação de Inclusive Minds de que não é uma organização de leitores sensíveis soa mais do que vazia. Mas quando se trata do que o grupo chama com prazer de “títulos antigos”, isso é uma distinção sem importância. Como se afirma na declaração ao The Hollywood Reporter, o grupo acredita que “se alcança maior autenticidade por meio de contribuições nas fases de desenvolvimento” — novamente o modelo de roteiro de TV e filme —, “pensamos que pessoas com experiência possam oferecer uma contribuição valiosa para a revisão da linguagem que pode ser prejudicial e perpetuar estereótipos nocivos. Em todo o nosso trabalho com jovens marginalizados, o impacto negativo muito real e os danos causados ​​à autoestima e à saúde mental pela representação enviesada, estereotipada e inautêntica é uma questão recorrente. Em qualquer projeto, o papel do embaixador é ajudar a identificar a linguagem e as representações que poderiam ser pouco autênticas ou problemáticas e destacar o porquê, bem como apontar possíveis soluções. O editor (e/ou o autor) então tem todas as informações para tomar decisões informadas sobre as mudanças que deseja introduzir nos manuscritos e ilustrações”.
 
Obviamente, “apontar soluções possíveis” é exatamente o que os “leitores sensíveis” fazem, como deixa claro até mesmo a leitura mais breve das declarações do leitor sensível e dos livros de processo. E Inclusive Minds nunca negou as afirmações da Random House Penguin e da Dahl Estate de que as mudanças que ocorreram foram feitas em colaboração com o grupo e como resultado de suas sugestões. Mas se a Inclusive Minds não foi sincera ao anunciar inicialmente as alterações introduzidas, o editor de Dahl e responsável pelo seu espólio foram. Insistiram que as mudanças consistiam apenas em “um número relativamente pequeno de edições textuais”, embora a empresa tenha dado alguma liberdade ao acrescentar que as mudanças textuais eram “mínimas” no “contexto da revisão de palavras dos livros maiores [os itálicos são meus]” e que “as histórias de Roald Dahl permanecem inalteradas e seu espírito travesso não diminuiu. Continuam a celebrar e mostrar sua voz única e brilhante riqueza narrativa”.
 
Na verdade, as mudanças foram tudo menos mínimas. Como detalhou The Daily Telegraph, houve um esforço sistemático para eliminar tudo o que pudesse ofender as sensibilidades, não das crianças — como no caso de The Family Shakespeare, esses exercícios de censura moral são sempre realizados para agradar pais e professores — mas dos adultos. Nas palavras do biógrafo de Dahl, Matthew Dennison, Dahl nunca “teve problemas com bibliotecários criticando seus livros como muito assustadores, carentes de modelos morais, negativos em sua representação das mulheres etc. Dahl escrevia histórias com a intenção de despertar nas crianças o amor pela leitura ao longo da vida e relembrá-las das maravilhas da magia e do encantamento da infância, objetivos que conseguiu. As preocupações dos adultos sobre sutilezas políticas não tinham lugar nessa perspectiva”. Dito isso, embora Dahl pudesse ofender adultos sem reparos, ele se esforçou para não alienar ou deixar seus leitores infantis infelizes. E Dennison acrescentou: “‘Eu não dou a mínima para o que os adultos pensam’, era uma declaração característica [de Dahl]. E tenho quase certeza de que ele teria reconhecido que as alterações de seus livros motivadas pelo clima político eram conduzidas por adultos e não por crianças, e isso sempre inspirou escárnio, e desprezo, em Dahl”.
 
As mudanças marcam todas as divisões da alta burguesia contemporânea — ou, como diríamos hoje, a alta administração profissional — da mesma forma que os Bowdler marcavam a alta burguesia britânica do século XIX. Não apenas todos os chistes relativos aos gordos foram removidos, mas também todas as menções ao estado físico do gordo, de modo que, por exemplo, em O crocodilo enorme, “menino gordo e suculento” se torna “menino suculento”, em O fantástico Senhor Raposo, “era incrivelmente gordo” se torna “era enorme”, e em As Bruxas, nem mesmo os ratos podem engordar, então “ratinho marrom e gordo” é alterado para “ratinho marrom”. Além disso, qualquer referência ao que hoje seria chamado de concepção binária de gênero é rejeitada. Assim, em Matilda, “mães e pais” se tornam “pais”, em O remédio maravilhoso de Jorge, “não tinha irmão ou irmã” se torna “não tinha irmãos”, e em James e o pêssego gigante, “os homens-nuvem estavam todos de pé” torna-se “as pessoas-nuvem estavam todas de pé”.
 
Outras caracterizações potencialmente ofensivas foram simplesmente cortadas. Por exemplo, as descrições frequentes de Dahl de vários personagens em seus livros como “loucos” não são encontradas em lugar nenhum. Em A fantástica fábrica de chocolate, “o príncipe louco” se torna “o príncipe”; em Os pestes, “louco” é alterado para “tonto”, e em James e o pêssego gigante, o comentário de que “o garoto está louco” foi simplesmente excluído. Já não é possível chamar as mulheres de feias e, por alguma razão, em vários livros “velha bruxa” se torna “velho corvo”, “não seja um idiota” se torna “não seja tão bobo” e em Matilda, “velho pássaro sábio” se torna um “sábio mestre” (é assim que antropocentrismo e preconceito de idade se confundem numa única cláusula). Ao mesmo tempo, as referências às mulheres que desempenham trabalhos braçais são substituídas por outras de categoria superior. Em As bruxas, por exemplo, “mesmo que eu trabalhe como caixa em um supermercado ou digite cartas para um empresário” é substituído por “mesmo que eu trabalhe como um cientista de ponta ou administre uma empresa”.
 
Ainda mais surpreendentes são os momentos em que os escritores mencionados por Dahl e agora considerados racistas ou sexistas são apagados ou substituídos por autores mais aceitáveis. Em Matilda, por exemplo, ele “viajou em veleiros antigos com Joseph Conrad. Foi à África com Ernest Hemingway e à Índia com Rudyard Kipling” é substituído por “foi para propriedades do século XIX com Jane Austen. Foi à África com Ernest Hemingway e à Califórnia com John Steinbeck” (Inclusive Minds talvez precise revisar “Hemingway” em uma futura nova edição do livro). Em outras partes do livro, “Dickens ou Kipling” se tornam “Dickens ou Austen”.
 
Levando em consideração in toto, a afirmação da Random House Penguin de que o propósito dos cortes e reescritas é para que “Dahl ainda possa ser apreciado por todos hoje” na verdade significa que não há nada nas novas edições de Dahl que ofenderia aos pais millennials ou que poderia provocar uma tempestade de críticas nas redes sociais. Nesse sentido, as críticas à revisão que têm surgido na imprensa conservadora passam por alto num ponto central. Os autorizadores disso cederam à pressão da imprensa? Sim, possivelmente. Mas ceder à pressão woke é um bom negócio, e agora que os direitos da obra de Dahl foram comprados pela Netflix, um negócio ainda melhor. E se esse era o cálculo em que se baseavam as decisões da editora, do espólio de Dahl e da Netflix, a realidade comercial é que sem edições, ou seja, sem uma reembalagem que despertasse o interesse público, os livros de Dahl provavelmente venderiam cada vez menos cópias com o passar das décadas, enquanto agora essa trajetória descendente foi, como dizem na escola de negócios, interrompida e novas possibilidades de marketing se abriram. O mesmo pode ser dito sobre a decisão recentemente anunciada do espólio de Ian Fleming e dos editores de Fleming de relançar os livros de James Bond removendo muitas das partes ofensivas.
 
Uma das coisas que a controvérsia Dahl expõe é o erro fundamental dos anti-woke: não é que o wake seja compatível com o capitalismo, como os conservadores e certa esquerdista não-woke agora entenderam, é que é benéfico para o capitalismo. E o fato de a Random House Penguin, após o alvoroço causado pela revisão de Dahl, ter voltado atrás e concordado em lançar as novas edições e uma reedição “clássica” separada com os textos originais de Dahl intactos é uma prática comercial ainda melhor: um segmento de mercado para os woke e um segmento de mercado para o anti-woke. O que poderia ser mais lucrativo do ponto de vista comercial?
 
O complexo acadêmico-cultural-filantrópico da anglosfera, do qual a publicação é um componente importante, está bêbado de sua própria virtude? Seria mais correto dizer que está embriagado com suas próprias ambições éticas. Ao fazer isso, ilustra a definição de kitsch de Roger Scruton, baseada em “códigos e clichês que convertem as emoções superiores em uma forma suave e pré-digerida, a forma que pode ser mais facilmente falsificada”.
 
Mas também os converte na forma mais facilmente vendida. E, de certa forma, o caso Dahl nos ensina tanto ou mais sobre isso quanto sobre a subjugação de toda escrita selvagem, mesmo que Dahl fosse selvagem, e as acusações de racismo que há muito foram levantadas contra ele sejam absolutamente verdadeiras (e é importante lembrar disso mesmo quando alguém rejeita categoricamente o que a Random House Penguin fez), aos ditames das devoções complacentes das classes de administração profissional da anglosfera.
 
Quanto às questões literárias, até agora elas permanecem sem resposta. Em um brilhante ensaio sobre Dahl na The New York Review of Books, Merve Emre, para mim de longe o mais interessante da nova geração de críticos literários e ensaístas, analisa de forma justa e contundente o racismo de Dahl e honra os esforços do editor estadunidense de Dahl (durante a vida de Dahl) por conter suas fantasias mais odiosas. Conclui dizendo que existem escritores de livros infantis muito melhores do que ele sem expurgar ou expurgado a quem os pais podem recorrer. Não tenho nada contra Dahl — sou contra que se reescreva; não sou a favor dele — e não acho que ele esteja certo. Dito isto, é precisamente a crueldade e a malícia de Dahl, o ídolo tornado palpável na sua prosa, que na minha opinião explica pelo menos a atração que provoca nas crianças e talvez a repulsa que provoca em muitos pais (Emre é um guia muito melhor do que Francesca Dow a este respeito). Mas quando a Random House Penguin e o Dahl Estate insistem que nas edições revisadas de Dahl queriam manter o que chamam de picardia enquanto descartavam a malícia, eu me pergunto se isso é possível. Assim como me pergunto se uma literatura infantil expurgada de sua malícia em nome de um mundo melhor, mais justo, e de uma linguagem mais gentil, mais inclusiva e menos violenta (só para deixar claro, não estou usando essas palavras de forma irônica de forma alguma) terá algum apelo duradouro para a faceta Senhor das moscas das crianças, que, goste ou não, quase todos têm em maior ou menor grau.


* Este texto aparece publicado originalmente aqui 

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