William Faulkner foi um mau carteiro
Por Rafael Ruiz Pleguezuelos
William Faulkner. Foto: Henri Cartier Bresson. |
Uma batalha entre Hemingway e
Faulkner, na minha imaginação, é como um daqueles blockbuster que coloca
Godzilla contra um bando de zumbis. Algo atraente, mas também ridículo. Muito
já foi escrito sobre a animosidade de Faulkner contra aquele ilusionista de
frases curtas chamado Ernest Hemingway. Saber a origem da rivalidade é fácil:
Hemingway representa tudo o que Faulkner não é, e vice-versa. Suas duas
escritas, quando comparadas, tendem a se odiar. E temos que assumir isso como
leitores. Você está de um lado ou de outro. Eu gosto dos dois, mas se você
realmente quer encontrar seu caminho na literatura, não é uma escolha lógica.
Hemingway começou a trabalhar para
um daqueles jornais cujo nome parece destinado a aparecer em algum filme de
Hollywood dos anos 1950: o Kansas City Star, e começou a colaborar com
eles quando tinha apenas dezessete anos, porque seu tio Tyler o apresentou a
esse mundo uma vez que ele decidiu que não pisaria na universidade. Uma das
questões que mais impressionaram o jovem Hemingway foram as cenas de crime que
seu trabalho exigia que visitasse. Por incrível que pareça, naqueles artigos da
puberdade para um jornal local já existe o autor que conhecemos: a sintaxe
lacônica, a frase limpa, a atitude do romancista que parece se cobrar por cada
palavra, como num escritório de telegramas: “Uma multidão de homens
aproximou-se da jovem de vestido vermelho para pedir outra dança”, “Lá fora, a
mulher caminhava no passeio iluminado por lâmpadas úmidas”.
O autor de O velho e o mar,
fugindo da universidade, encontrou no jornal e na rua as melhores faculdades
possíveis para o que desejava, que era escrever e escrever. Passar do modesto
jornal do Kansas para o de Toronto, e daí para as atividades de correspondente
europeu, nada mais foram do que passos sucessivos na mesma direção. Milhares de
frases curtas depois, nós o encontraríamos naquele final trágico tantas vezes
narrado. A quinze quilômetros de Havana, naquele paraíso chamado Finca Vigía — que
simbologia a desse nome —, com sua esposa, seus nove criados, cinquenta e dois
gatos, dezesseis cachorros, duzentos pombos e três vacas. A contagem dos
animais que Hemingway tinha quando decidiu deixar este mundo não é minha, mas
da revista New Yorker dos anos 50. Que precisão a desses americanos.
Talvez eles tivessem um agente da CIA contando os gatos sendo alimentados pelos
Hemingway.
Numa das últimas visitas aos
Estados Unidos, o escritor disse essa frase que transcendeu muito menos do que
devia, e que em minha opinião qualquer escritor enfrenta ante o verdadeiro
abismo da literatura: “Quando você acaba [de escrever] um livro está morto. Mas
ninguém sabe que está morto. Tudo o que veem é a libertação que vem depois da
terrível responsabilidade de escrever”. Você pode gostar ou não de Hemingway,
pode amar ou odiar seu estilo, mas não pode dizer que ele não foi um dos
artistas mais autodestrutivamente puros da história da literatura. Alguém capaz
de afirmar com total convicção que toda vez que você termina um livro está
morto, e só o próximo texto, se for bom, pode te trazer de volta à vida.
Não é só a literatura de Faulkner que
é radicalmente diferente da de Hemingway, mas também sua forma de entender a
função do escritor é quase oposta (ou talvez justamente por isso). Se Hemingway
carrega nas costas todo o mérito — ou descrédito — do autor, daí os medos, a
responsabilidade, o pânico de defraudar, para o homem do Mississippi a função
do escritor é mais a do médium que serve de antena entre o universo das ideias
e o da letra impressa. O místico que acredita na inspiração não autoral, ou
seja, aquilo que atinge uma pessoa simplesmente porque está ali, na hora e no
lugar certo. Por isso dizia coisas como esta que partilho agora, que gelam a
alma de qualquer escritor de uma forma oposta a Hemingway: “Se eu não
existisse, alguém teria escrito por mim, por Hemingway, por Dostoiévski, por
todos nós. A prova é que existem até três candidatos à autoria das obras de
Shakespeare. Mas o importante é Hamlet e Sonho de uma noite de verão,
não quem o escreveu, mas que alguém o fez. O artista não é importante. Só o que
você cria é relevante”.
Faulkner, para ter algo para
comer, teve que se refugiar nas antigas minas de ouro dos roteiros de cinema. O
que são as coisas: algumas de suas encomendas foram justamente para adaptar as
obras de seu rival estilístico: Hemingway. Não é muito conhecido que ele
trabalhou no roteiro da adaptação de Ter ou não ter, e aí temos aquela
batalha entre Godzilla e o exército de zumbis que eu me referia no início:
Faulkner trabalhando nas palavras de Hemingway. Aquela prosa ambiciosa,
modernista e conscientemente quebrada, a serviço do rei do
sujeito+verbo+complemento.
Um oceano inteiro de literatura
separa Hemingway e Faulkner. Eles estão unidos por terem sido homens dominados
pelo álcool e têm uma visão igualmente autodestrutiva da literatura. Faulkner
também deixou a faculdade cedo. Abandonou a Universidade do Mississippi pela
segunda vez quando tinha 24 anos. Ele não teve tanta sorte quanto Hemingway
(sem tio Tyler para encontrar um emprego para ele em um jornal), então, depois
de um emprego em uma livraria de Greenwich Village, começou a trabalhar como
carteiro numa universidade. Escolha sua fantasia: baterem à sua porta e William
Faulkner trazer sua correspondência ou cobrar-lhe pelo livro que você leva para
casa. O verdadeiro mistério não é por que continuamos a lutar contra sua prosa
complexa depois de tantos anos e tantos livros, mas como alguém cujos chefes
consideravam o pior carteiro da história conseguiu um aumento em 1922: de US$ 1.700
para US$ 1.800. Diz-se (o seu biógrafo David Minter assim o faz) que nunca
abria os correios pontualmente, que lia as revistas que eram enviadas às
pessoas, ou deitava fora o correio que não considerava importante. A
reputação de Faulkner como carteiro era tão terrível que ele até apareceu numa
história em quadrinhos da revista universitária chamada Ole Miss, em que
se faziam piadas sobre seu trabalho.
Esses desastres postais aconteciam
porque Faulkner, quando tinha que entregar cartas, estava escrevendo, claro.
Foram necessários muitos erros de distribuição para que o mississipiano
encontrasse seu estilo, assim como havia muitos artigos no Kansas City Star
em que os detalhes das circunstâncias eram mais importantes do que a notícia
para que Hemingway desse como sua. A inspeção postal sabia o que ele estava
fazendo, pois chegou até nós uma mensagem dirigida a Faulkner com palavras
acusadoras: “Você tem um livro em impressão neste momento, a maior parte do
qual foi escrita enquanto você estava de serviço no escritório correios”. Seus
chefes sabiam o que se passava, é claro. Não sei se Faulkner mereceu o Prêmio
Nobel de Literatura por suas obras, mas certamente um dos méritos indiscutíveis
para alcançá-lo foi a carta de demissão que enviou a seus superiores quando
decidiu acabar com a vida como carteiro incompetente. Não tem desperdício:
“Enquanto eu viver sob o sistema
capitalista, espero que minha vida seja influenciada pelas demandas das pessoas
ricas. Mas que me condenem se me proponho estar à disposição de qualquer ordinário
ambulante que tenha dois centavos para gastar em um selo postal.
Esta, senhor, é a minha demissão.”
Sublime. Ele não foi o único
grande escritor estadunidense que teve que pagar esse tempo de trabalho
rotineiro para sobreviver, até que chegasse a fama e o dinheiro dos livros.
Nathaniel Hawthorne e Herman Melville trabalharam em alfândegas, e Charles
Bukowski também deve ter prestado um serviço memorável ao correio no seu país,
dando-nos até aquela joia de 1952 chamada simplesmente Cartas na rua. Oxalá
que Faulkner tivesse nos deixado uma relação como a de Bukowski, mas ele não
tinha o senso de humor do grande Chinaski: “O que aconteceu com o carteiro?
Você está atrasado. O carteiro habitual nunca se atrasa”. A explicação é
simples, mesmo que Bukowski o poupe: o carteiro de sempre nunca se
atrasou porque não estava escrevendo algumas das melhores obras literárias de
todos os tempos, nem passava mais tempo com a garrafa de bourbon do que com a
máquina de escrever.
Faulkner/ Hemingway é o
Madrid/ Barça dos grandes contadores de histórias do século XX. Podem ficar com
o bom jornalista ou com o mau carteiro. A prosa limpa e serena, ou o inferno
sintático de um escritor que prefere nos guiar pelo escuro. Mas nunca duvide
que profissionais ruins são necessários para forjar um artista, pelo menos por
um tempo. Portanto, pense bem antes de fazer uma reclamação contra aquele
indivíduo que faz seu trabalho tão mal e que digita muito. Não seja o fulano
truncando a carreira do escritor que muda a história da literatura, outra vez.
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