Um ponto no mar

Por Bárbara Ayuso

Juan Goytisolo, uma pessoa não identificada, Italo Calvino, Monique Lange, Luis Goytisolo e Jesús López Pacheco. Formentor, 1959.


 
Nasceu numa ilha, escreveu quase tudo em outra — que na realidade não era — e morreu numa península. A vida de Italo Calvino pode ser contada de várias maneiras, e quase todas incluem o mar. Mesmo que esteja ausente.
 
Começou trocando o Caribe pelo Mediterrâneo, de sua Cuba natal para San Remo. Também foi da resistência, mas isso já sabem. Em 1959 havia escrito A trilha dos ninhos de aranha, e ainda estava por vir a fronte límpida com que é lembrado e as obras que o tornariam um autor essencial do Novecento. Na época, Calvino, com 36 anos, sonhava em publicar O visconde partido ao meio na Espanha. Nunca havia pisado no país, mas era o que queria. Contou sobre a alguns amigos por carta. No final, aconteceu. De mãos dadas com Carlos Barral. Ele reservou o voo que trouxe o escritor italiano de Milão a Barcelona: pousou de madrugada numa cidade asfixiada pela ditadura. Era 24 de maio de 1959, parece que era domingo. O fato é que na manhã de segunda-feira Italo Calvino desembarcava em Maiorca, na primeira edição do Prêmio Formentor das Letras onde se eclodiu “a conspiração literária”, como diria mais tarde Goytisolo.
 
Dizem que ele sofreu um daqueles feitiços instantâneos com a ilha, com o lugar e com “o hotel dos bons deuses”. Demorou várias décadas para contar, para descobrir, que o Calvino que aparece nas fotos se bronzeando na Baía de Pollença após suas discussões literárias estava se recuperando de um relacionamento devastador. Talvez também fugindo. A “dama que vivia em superlativo”, como disse, ainda não havia desaparecido. A esposa do conde Sandrino Contini Bonacossi. Seu nome era Elsa de Giorgi e ela era atriz. O deles não era diferente da maioria dos romances: durou três anos. De 1955 até algum ponto indeterminado em 1958.
 
Nós sabemos porque ele escreveu. Mais de trezentas cartas, tórridas, culpadas, até cafonas. E secretas, até que o Corriere della Sera as trouxe à luz em 2004. Nelas Calvino diz tudo o que imaginam que alguém diz devastado pela luxúria: “Eu te quero tanto que penso em você em meus braços, e vou te segurar até partir-te em pedaços, arrancarei tua roupa, reviro-te, faço tudo para dar asas a esta vontade infinita de te beijar, de te abraçar, de te possuir”. Era a época em que escrevia, também, Os amores difíceis.
 
Calvino não conheceria aquela que seria sua esposa, a editora e tradutora Esther Judith Singer ou “Chichita” até 1962, em outra ilha ainda mais quente. Mas a publicação das cartas, a constatação do que sempre foi tomado como fofoca literária, foi uma artimanha para a viúva: “Só espero que os mortos não leiam jornais”, alfinetou. No assunto mediavam questões sobre a privacidade de um falecido, sobre os direitos autorais dos manuscritos, sobre a traição de um conde e as misérias românticas de um autor cuja imagem sentimental — trinta anos de casamento inexpugnável — nunca teve tanta relevância. Sempre foi uma ilha em um mar calmo. Até que aquela correspondência trouxe outra perspectiva: que Elsa de Giorgi também havia permeado suas obras. Sua paixão não foi inventada, como muitos contemporâneos acreditavam. Rafael Alberti costumava caçoar das bobagens da atriz: “Rafael divertia-se extraordinariamente com aquela senhora exuberante e hiperbólica, que nos anos trinta conhecera um momento de glória como uma loira ingênua de filmes de telefone branco. Ele proclamava constantemente que havia inspirado alguma personagem feminina em Italo Calvino, seu suposto amante, e gostava mais de intelectuais do que de um tolo rotulador”. Terenci Moix lembrou em um artigo no El País, anos antes de se saber o que realmente aconteceu. E isso o devastou.
 
Sabendo disso, a obra de Calvino assumiu uma nova dimensão. “Meu amor, nunca pensei que me apaixonar por você pudesse me afetar tão profundamente, a ponto de me tocar, de abrir uma crise até na instrumentalização técnica do meu trabalho, no meu estilo”, escreveu. Dedicou-lhe O barão nas árvores (ela não era uma condessa hipócrita) e lutou para que a editora Einaudi, onde trabalhava como leitor na época, publicasse o romance de De Giorgi, que se chamaria O coetâneo. Era dedicado a seu marido, o conde, que tirou a própria vida em circunstâncias que apimentam ainda mais a história. Calvino defendeu o manuscrito perante colegas como Elio Vittorini: “O livro deve ser lido como as memórias ou epistolários das senhoras do século XVII, onde a mundanidade, o salão, é um ponto de partida que não se pode deixar de aceitar e através do qual se apresenta a crônica da cultura, da política e da ‘paixão do século’. Tudo o que você sobre a coleção de adjetivos e atributos é justo; ao qual acrescentaria um mar de superlativos que logo risquei inteiramente. Mas é fato que esse tipo de dama vive em superlativo”. Era, em suma, a confirmação das evidências mil vezes observada: que pouco ou nada sabemos sobre o que nutre, verdadeira e profundamente, a escrita.
 
É impossível agora contemplar os instantâneos dos dias em Formentor da mesma forma. Calvino posa relaxado em preto e branco, com alpargatas, diante da câmera. Sorri muito pouco naquele primeiro ano, o que lhe rendeu o apelido de “vedette dialética”, cunhado pelo próprio Barral. Ele discutia pelos jardins, pelos corredores, sobre quem merecia ou não merecia o prêmio. A sua sagacidade colocou a seus pés José Agustín Goytisolo e Gil de Biedma. E enquanto, subterraneamente, uma mulher intimidava-o.
 
Preserva-se outra fotografia em que o escritor enterra, simbolicamente, um romance na areia. Nós o vemos, despreocupado, em pose bem-humorada, diante de um pedaço de mar. Não está no retrato, mas atrás dele há outra coisa: outra ilha.
 
Tão pequena que pode ser confundida com a principal. Perto o suficiente para não ser vista. Longe o suficiente para nunca ser tentado a alcançá-la. Nada de majestosidade. Apenas um pedaço de terra informe, flutuando na baía a menos de um quilômetro da ilha principal.
 
Um ponto no mar
 
Latitude: 39,9166667. Longitude: 3,15. A orografia determina que se trata de um ilhéu, mas não procure, não existe nada de muito publicado a respeito. Com quatorze metros de profundidade, esconde uma caverna. Amantes do mergulho a ancoram, incluindo moreias, garoupas e nudibrânquios. Mas pouco mais.
 
Da praia do hotel Formentor pode-se chegar nadando. De fato, se chega. Atravessa-se o pinhal, abandonam-se os sapatos e faz alguns minutos de braçadas. Mais do que parecem. Contorná-la completamente leva um pouco mais de duas horas. Sua folhagem envolve aquele que consegue tocar a terra, camuflando-o com as pedras claras. Um refúgio dos olhares indiscretos de banhistas ou escritores.
Conta-se que Italo Calvino costumava fugir para ali. Pode ser qualquer um dos quatro anos em que participou dos prêmios literários (de 1959 a 1962) ou pode ser todos eles. Desaparecia temporariamente das batalhas dialéticas e entrava no pedregulho que protege a enseada do vento noroeste, chamam de Illa Formentor ou Illa del Geret, dependendo do gosto.
 
Ele não ia sozinho. Ou assim se diz. A editora Ginevra Bompiani estava lá em 1961, enquanto Henry Miller e Jacobo Muchnick jogavam pingue-pongue. Contou, na edição de 2018, que também marcou o seu regresso à ilha depois de cinquenta e sete anos, que Calvino ia velejar, ou nadar, de manhã. “Ele era muito bonito e fazia muito sucesso com as mulheres”, contou, maliciosamente. Ela tinha vinte e dois anos na época e algumas memórias intactas. Olha para a ilha ao longe e acena com a cabeça: agora não consegue alcançá-la.
 
Outros tentam. Deixam toalhas, sapatos e lendas para trás e saltam desajeitadamente de uma rocha. Mergulham num mar como intocado; o sal arde no canto dos olhos. Tapam o nariz e contra a água dão cabeçadas cegamente, convencidos de que chegar lá é tão fácil quanto disseram. Mas a natureza cristalina do mar se dissolve após algumas braçadas: as sombras verdes e negras começam a tomar conta da superfície celeste. São acariciados por corpos gordurosos, bancos de plantas marinhas e outra fauna. Não há areia para pisar, então eles fingem bravura com tentáculos de algas agarrados à pele e chutam seu caminho para a ilha, que agora parece mais distante. Aquilo que deveria ser uma reminiscência de Calvino começa a assumir a cavernosidade tentacular de Lovecraft. O pesadelo subaquático de três idiotas.
 
São dois jornalistas e escritores repugnantemente brilhantes, Laura Fernández e Jordi Nopca, são os que se lançam sem dignidade em direção a Illa del Geret. Também quem agora está traindo a promessa de deixar a anedota apodrecer. É difícil para eles chegarem mais — muito mais — do que o esperado. Ao longo do percurso intercalam-se tentativas de evitar a flora flutuante e os choques elétricos das medusas. Eles se lembram de Calvino, mas para pior. As fantasias literárias nunca deveriam ser assim tão pegajosas, murmuram sem fôlego. Alguém perdeu uma lente de contato, o espetáculo fica embaçado. Na ilha há o que se espera: pedras, arbustos, superfície para subir descalço e fazer, sorrateiramente, o que quiser.
 
Quando — finalmente — tocam a terra, essa sarda mediterrânea, têm relevos de dedos ondulados e um tórax galopante. Um pequeno barco a motor aparece. A bordo está o devaneio de um videoclipe brega: um homem careca com uma barriga generosa com duas mulheres em biquínis minúsculos e chapéus de grumete. Bebem em taças de champanhe e cambaleiam, rosados. Frustram a ameaça de atracar na ilha, pois um trio de ceguetas e destruídos os observam, atônitos e constrangidos. Quando o barquinho corrige seu rumo em direção ao mar aberto e sai lançando espuma branca, eles voltam para a margem. A viagem de volta segue com o mesmo patetismo. Na praia, uma mulher desconhecida os cumprimenta com creme anti-histamínico. Eles tiram uma foto perfeita: os três saem mal.
 
Nenhum rastro de Italo Calvino
 
Isso aconteceu isto? Estaria Italo Calvino se esgueirando para essa elevação com a esposa de um editor muito poderoso, como contou Ginevra Bompiani? Nadava até ali sem mais nada que um calção de banho? Veja: nunca saberemos. Podemos, se quiser, imaginar que aquela sarda, aquela ilha ao lado de outra ilha, serviu ao escritor italiano para exorcizar a memória de De Giorgi com outro corpo. Ainda podem aparecer cartas que o atestam, o passado é tão caprichoso. E podemos ainda ir mais longe no delírio, e imaginar que foram essas as aventuras que deram cor ao conto “A aventura de uma banhista”, que ele compilou em Os amores difíceis. Talvez fosse o Mediterrâneo que ele evocava, anos depois, escrevendo de seu refúgio na Île-de-France. Ou poderia ser outro mar, outra cidade invisível. As lendas, afinal, também têm uma condição de insularidade. Ficam lá, na costa, em um oceano de silêncio indecifrável.
 
Enquanto isso, todos que perceberem continuarão a se referir àquela sarda de outra forma: a ilha de Italo Calvino.
 
***
 
As minhas obras são apenas pequenas ilhas que se sobressaem no oceano do que está escrito. As ilhas são topos de certas serras ou montanhas cobertas por um oceano de silêncio.
 
— Italo Calvino


* Este texto é a tradução livre para “Una peca del mar”, publicado aqui, em Jot Down.

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