O terror de 1824. A obra-prima desconhecida
Por Andrés Trapiello
O conceito de obra-prima não muda,
mudam os critérios para reconhecê-la como tal.
Todos nós temos uma ideia
semelhante do que é uma obra-prima e, embora nem sempre aceitemos o que nos propõem
sobre a história e alguns de nossos contemporâneos mais influentes. Ariosto,
Camões, Schiller, Petrarca, Rabelais, Racine, Milton são escritores que gozaram
em seu tempo e em tempos posteriores da consideração de gênios, com livros
também considerados obras capitais. Fora do âmbito de seus respectivos idiomas,
no entanto, dificilmente são nomes em uma lista ou em uma rua da cidade. Nem
mesmo Dante, Púchkin ou Goethe, cujo nome é ainda mais familiar para muitos, se
livrariam dessa consideração porque é possível topar com eles em estátuas,
grandes avenidas e aeroportos. Quantos de nós já leram Tasso ou Cícero, Juvenal
ou Tucídides? Até um século atrás, eles eram amplamente lidos e suas obras eram
citadas nas tribunas e comentadas nos jornais.
Quando Stendhal nos fala em seus
guias de Roma, Nápoles e Florença sobre os pintores italianos do Renascimento,
ele equipara em importância e apreço artistas que são para nós uns
desconhecidos com outros que já perderam sua importância e influência. Rafael
Sanzio foi durante o século XIX o pintor mais estimado e valorizado, acima de
Velázquez, Rembrandt ou Ticiano. Não houve obra sua, como não há hoje de
Leonardo, que não fosse então considerada “obra-prima absoluta”, disputada por
colecionadores, papas, reis, museus. Naquela época, não havia nem notícias de
outros que, como El Greco ou Vermeer, estavam reservados para grande estima no
século XX. Quando uma daquelas listas dos “cem maiores artistas de todos os
tempos” foi elaborada há alguns anos (foi estimulada entre “especialistas” por
um jornal, não me lembro qual, talvez o NYT ou o Allgemeine Zeitung;
as ideias mais tontas sempre têm muitos pais), Rafael apareceu relegado à
posição setenta e poucos, atrás de Warhol ou Rothko. De resto, as qualificações
de “obra-prima”, “obra-prima absoluta” e “pequena obra-prima” tantas distinções
quantas do tipo de azeite “virgem”, “extravirgem” ou “puro”, para alento da
nossa desconfiança. Afinal, prestígio vem do latim, praestigium, engano,
de onde vem ilusionista.
O século XX, o grande credor, foi
o que viu nascer e morrer mais obras-primas em menos tempo, e com o passar dos
anos o número de obras-primas multiplica-se exponencialmente, assim como o seu
tempo de permanência no pódio das vencedoras resulta cada vez reduzido, tendo
em conta que a cada dia é maior o número de aspirantes a gênios (uma questão
tão antiga quanto o mundo: ver A obra-prima ignorada, de Balzac). Não há
um minuto, se acreditarmos nos jornais, em que não morra uma maravilha de
alguma das artes ou em que não nasça uma obra-prima ou em que não estejamos
vivendo um acontecimento verdadeiramente histórico, como a Batalha das
Termópilas. Isso tem a ver, claro, com o mercado e a arma que usada por ele, a
propaganda. O século XX é o da propaganda. Sem propaganda, ou seja, sem
prestígio, é impossível entender o sucesso dos totalitarismos, do nazismo, do
fascismo e do comunismo, apoiados por massas inflamadas. Sem propaganda e
mentira, envoltas na cartola do mágico, não se explicaria hoje o fascínio que
milhões de pessoas sentem pelos diferentes tipos de populismos e nacionalismos.
Sem a propaganda (fornecida nas universidades, na internet e na mídia) grande
parte das obras que hoje são visitadas nos museus de arte contemporânea
estariam num lixão, sem manuais e livros didáticos a maior parte da literatura
universal teria acabado, como a Biblioteca de Alexandria.
A Propaganda (e a Fundação Nobel,
a maior empresa de marketing contemporâneo no que diz respeito à Literatura)
colocou Miguel Ángel Asturias no ápice da literatura de seu tempo, e como ele outros.
Quando revisamos a lista de escritores que ganharam esse prêmio tão
prestigioso, ficamos um tanto chateados e perplexos. Tenho que consultá-la agora
para poder copiar aqui alguns dos que constam na lista de vencedores:
Bjørnstjerne Bjørnson, Paul von Heyse… Basta. Terminaremos dizendo que dos mais
de cem escritores que o obtiveram, da metade não se leu uma única linha, entre
outros motivos por alguns deles nem sequer serem lembrados ou seus nomes
reconhecidos. Vamos dar um exemplo: o poeta italiano Salvatore Quasimodo.
Devido a um compromisso inevitável (o editor que iria publicá-lo em Trieste,
Valentín Zapatero, morreu quando se preparava para fazê-lo), publiquei sua obra
completa em La Veleta trinta anos atrás e coube a mim, é claro, corrigir as
provas. Não me lembro de um único poema dessa leitura que tenha me chamado
particularmente a atenção. Podemos pensar que quem concedeu este prêmio cem
anos atrás tinha menos gosto ou sabedoria do que os de hoje, mas daqui a cem
anos a perplexidade que sentimos agora será sentida por outros, de modo que
García Márquez acabará talvez por ser tão lido quanto Miguel Ángel Asturias e
Vicente Aleixandre tanto quanto Jacinto Benavente e Echegaray, se não menos.
E assim como se supõe que os
prêmios Nobel possam ser uma escala para estabelecer o que é uma obra-prima (“há
algo na água quando ela é benta”), o caso inverso é frequentemente lembrado: o
daqueles, apresentados como autores de “obras-primas absolutas”, que não o
obtiveram, de Tolstói a Galdós, de Proust a James Joyce. Anna Kariênina e Fortunata
e Jacinta, À procura do tempo perdido e Ulysses não são todas
comparáveis ou consideras em nossa época “obras-primas”?
Tentei ler Ulysses algumas
vezes na juventude e não consegui passar das primeiras páginas, e li À la
recherche... três vezes, sem que esta última tivesse reafirmado minha ideia de
que a obra de Proust é uma obra-prima. As obras-primas são feitas por cada um à
sua medida, pelo mesmo motivo que todos precisamos de professores, não só nos
anos formativos; mesmo aqueles chamados para serem outros tiveram professores
que muitas vezes eram menos talentosos do que seus discípulos. Todos nós também
lemos mais livros considerados menores do que grandes obras, e temos
consciência disso, pelo mesmo motivo que tendemos a comer mais alimentos comuns
do que iguarias. E não só pela sua raridade e falta ou preço elevado, mas
porque o nosso corpo necessita deles para funcionar melhor. Ninguém
sobreviveria intelectualmente lendo apenas obras-primas, e aquelas consideradas
obras menores costumam ser mais proveitosas e enriquecedoras para nós. Damos
valor até mesmo às obras-primas que passam despercebidas pela maioria. Quando o
pintor Ramón Gaya notou o Nu de Eduardo Rosales, não o equiparou a Las
Meninas nem o comparou a nada; simplesmente o considerava uma obra-prima e,
como tal, difícil de comparar com as outras, pelo que Nietzsche dizia sobre as
montanhas: vistas de baixo ou de cima, todas se parecem um pouco.
Sei que se o esporte preferido do
século XX tem sido designar obras-primas e apontar gênios, o segundo esporte
preferido do século XX tem sido despojar uns e outros de sua condição, se
possível em praça pública, como quem arranca os galões de um general na praça
de armas ante a tropa, e tanto quanto exaltam alguém, a turba se diverte
arrastando os antigos ídolos pelas calçadas das cidades e levando-os à
guilhotina.
Foi-me dado este espaço hoje para
realizar uma dessas execuções, mas não me sinto apto para a cerimônia. Além
disso, não está alguém seguro de não está fazendo papel de ridículo. O provável
é que dentro de cem anos, os preceitos e códigos segundo os quais procedi a
esse belo auto-de-fé tenham sido rompidos ou sejam muito diferentes. Como o
próprio cânone da beleza significa que passamos das mulheres de Rubens às de
Modigliani, sem nenhuma garantia de que um dia as jovens com formas opulentas
voltarão a ser a moda.
Nem mesmo os autores têm um critério
confiável para suas próprias obras. Quando Galdós escreveu suas pouco memoráveis
memórias, ele não teve memória para Miau. Falou, claro, de muitas outras
obras suas, mais queridas ou importantes para ele, mas nem uma palavra sobre Miau,
apesar de ser considerado hoje não só por um dos seus melhores romances, mas um
dos melhores de sempre e o melhor retrato que já se fez da figura do
desempregado. Miau está para essa condição assim como O avarento
de Molière está para a ambição.
Poderia falar de Miau
agora, mas preferi falar de O terror de 1824, um dos quarenta e seis
episódios de Galdós. Esta obra narra a repressão absolutista que deu origem à década
sinistra e, entre outros acontecimentos, o enforcamento de Riego na Plaza
de la Cebada. Pode ser lido sem ter que ler os capítulos anteriores, embora
possa valer a pena ler pelo menos os seis que o precedem nessa segunda série.
Tudo nesta obra impressiona, a imaginação, a precisão dos acontecimentos
narrados, o humor inefável, tão Cervantino, os personagens, o maravilhoso e
inesquecível Patricio Sarmiento... Torna-se um fractal do imenso talento
daquele homem. Os seis romances anteriores dessa segunda série foram escritos
em alguns anos, este de O terror de 1824 em poucos meses.
Verdadeiramente maravilhoso.
Não sei se é uma obra-prima
absoluta ou não, extravirgem, excepcional ou virgem lampante, pelo que
vejo diz-se também assim um tipo de azeite...
Só posso dizer que realmente me
acompanhou muito mais do que tantas obras-primas consideradas há quinhentos
anos ou agora. Leitor, leitora: você pode ou não acreditar em mim, pode ou não
compartilhar comigo o critério de uma obra-prima (tudo que ainda está vivo e
transforma nossa vida, tornando-a melhor), mas não posso fazer mais por você ou
tentar convencê-lo. Certamente você tem seus próprios critérios sobre o assunto
e nada do que eu disser irá convencê-lo ou fazê-lo mudar de ideia. Mas os happy
few podem saber do que estou falando.
Ligações a esta post:
* Este texto é a tradução livre
para “El terror de 1824. La obra
maestra desconocida”, publicado aqui, em Jot Down.
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