O avesso da pele, de Jeferson Tenório
Por Pedro Fernandes
Jeferson Tenório. Foto: Carlos Macedo |
Foi com O avesso da pele
que Jeferson Tenório se fez reconhecido no meio literário brasileiro em 2020; no
ano seguinte, obteve com este que é seu terceiro livro o Prêmio Jabuti. Antes
publicara outros dois romances, O beijo na parede (2013) e Estela sem
Deus (2018), este último reeditado pela mesma casa editorial que o projetou.
Grande parte da boa recepção do premiado romance se deveu a maneira como
examina a partir de circunstâncias e ângulos diversos as complexas relações
raciais num país onde durante muito tempo apostou na ideia de convívio livre e
franco das raças. Num momento quando as questões raciais importadas da tradição
estadunidense, seja a partir da própria literatura, seja a partir do pensamento
articulado no interior dos estudos culturais, reabrem o exame sobre o modelo de
silenciamento forjado no Brasil, a escolha pelo tema, aliás, tem fomentado o
restabelecimento de uma interessante linha criativa na nossa cena literária. Isto
é, Jeferson Tenório não se encontra entre outros oferecendo uma novidade, mas o
refazimento de alguns paradigmas por uma leitura desconstrutora e o instauro de
outros.
O romance do escritor carioca
Jeferson Tenório se organiza a partir da tentativa de relato de um jovem que,
depois da morte do pai, quer compreender, diríamos, menos as circunstâncias do
acontecido e mais a identidade deste homem e por conseguinte também a sua,
considerando, para tanto, as relações de convívio coletivo em âmbitos diferentes,
ora na suas individualidades, ora nos amores, ora no interior do agrupamento
familiar, ora nos vários ajuntamentos sociais, como o ambiente de trabalho, a
escola, a universidade, os espaços de convívio etc. A proposta parece ser a de
compor um rico afresco em que se privilegie os dramas raciais numa sociedade
incapaz de admitir que é racista. Também não existe novidade nenhuma aqui, uma
vez que esse interesse se mostra visível em variados romances da literatura
brasileira desde o apogeu do nosso romantismo a outros escritores contemporâneos.
A vida de Henrique e a vida de
Pedro, pai e filho, singularizam duas gerações — uma que começa a tatear numa
descoberta sobre a sua condição social e outra que, apesar de todo aparato
crítico ou conceitual estabelecido de numa prática que demonstra o exato avesso
do que se defende nos modelos vigentes se vê ainda envolvida nos mesmos e
velhos dramas, modificando-se, assim, apenas certa percepção da população negra,
que substitui a perversa lógica do destino pela perversa lógica da história. No
final, todos aparecem incapazes de romper com um ciclo que mesmo quando
aparenta libertar devolve os sujeitos para prisão da raça — um dilema forjado,
como sabemos, pelo imperativo de um modelo colonial cuja ideologia transformou
o negro em carrasco do próprio negro, da mesma maneira que o modelo patriarcal
submeteu as mulheres a elas mesmas, aspecto, aliás, vislumbrado também em O
avesso da pele. A chaga do racismo é uma linha a mais na extensa lista do
patriarcado.
Assim, a novidade parece então
recair na maneira como Jeferson Tenório se dispõe a compor esse amplíssimo
painel que vislumbra ainda testemunhar as transformações das questões raciais
no Brasil na passagem do século XX para o século XXI. De maneira que, deixemos
o tema e seus desdobramentos à parte para observar melhor como é engendrada a
narrativa. E o elemento que mais chama o leitor à atenção é certamente o
narrador, seu modo e o ponto de vista adotado. Quem tenta contar a história do
pai e a sua é Pedro, assumindo certo modo acusativo, no sentido de quem, de
fora, aponta episódios e acontecimentos que uma vez organizados podem oferecer
certa imagem coerente do outro e de si. É uma boa alternativa para escapar ora
do fastioso confessional (tudo agora é isso), que poderia empurrar a ficção
para um tom melodramático e piegas, ora ainda do narrador onisciente, talvez indevido
às poéticas que visam a desconstrução dos modelos narrativos herdados de uma
tradição toda ela derivada da mesma engenharia cultural que se baseia no
domínio superlativo de uma minoria de privilégios sobre uma maioria ignorada. Os
motivos, portanto, são coerentes, mas há problemas com essa escolha.
Localizado ora fora dos
acontecimentos — aos quais acessa apenas por um conjunto invenções que supomos incorporadas
a partir dos restos de memória sobre um pai que mesmo antes de morto era já
ausência — ora dentro dos acontecimentos, quando estes envolvem o próprio
narrador desde as suas primeiras consciências de si, resulta sempre uma série
de mal-entendidos entre os dois principais fios narrativos que tanto correm
juntos como separados. Aqui faltou a depuração do escritor ou a mão do editor. É
comum que o próprio narrador se perca e fira o pacto de verossimilhança que
busca construir para o seu narratário como a estratégia que encontra para se
convencer sobre o outro, o pai, e sobre si; leitor este que, na sua reclusão,
parece ser o mesmo narrador. Quer dizer, é de discurso íntimo, de si para si, que
falamos.
E de que maneira, se organiza o
narrador? Ao adotar o acusativo, a voz narrativa prefere designar o outro, o
pai, como você, um modo ainda de se distinguir no âmbito do discurso eu
e outro. Tal uso instaura certa impessoalidade na narração, falsa,
porque como dissemos a história de Henrique confunde-se com a de Pedro. Quando
falar de si, o narrador virará a chave para o eu. E é nesse procedimento
de acende e apaga da primeira pessoa, que a narrativa às vezes recai sobre um tu
ou um ele quando seria o eu. Um exemplo colhido aleatoriamente na
narrativa pode ser reparado no excerto a seguir:
“Então, quando vocês [o pai
e a mãe] me colocaram numa creche, minha mãe vivia falando mal
das professoras, que elas não sabiam cuidar de mim, e você [o pai] nunca
esqueceu do dia em que ela chegou para me pegar e viu minha roupa
manchada de chocolate, porque ela queria saber que mancha era aquela, e por
que estão dando chocolate para o meu filho?, e não adiantou as professoras
dizerem que aquilo era uma mancha de tinta porque ele
estava fazendo uma atividade.”
O destacado em vermelho sinaliza que
ele é o próprio narrador; como não se trata do discurso da professora
absorvido pela voz de quem narra, o ele devia, aqui, ser eu, como
se nota nas demais distinções entre a segunda e a primeira pessoa no restante
do período. Sem querer fazer o papel de revisor do livro, o exemplo apenas
ilustra como a adoção desse modelo de narrar, retrabalhada a partir do nouveau
roman, resulta limitado pelo próprio funcionamento da nossa língua. No
francês, tu e vous possuem significações próprias nos jogos
comunicativos; no Brasil o distanciamento do você perde-se para seu uso informal
e, consequentemente uma intimidade entre os envolvidos na comunicação. No
final, o que se exercita são falseamentos de ordem diversa e a impessoalidade é
um deles. E outro problema da impessoalidade no caso desse romance é sabermos
que por trás de quem diz você está um eu que, por vezes, assume as
rédeas do contar.
Outro incômodo é a repetição. Tal como as canções sertanejas em voga, se
cortássemos os usos repetidos do você, com algum exagero, talvez
sobrasse metade do texto romanesco. Para o leitor, tanta reiteração da segunda
pessoa se torna cansativa, além de interferir significativamente na
progressão e desenvolvimento do narrado. Na maioria dos casos, a simples
oclusão do você imprimiria outro ritmo que não o de uma redação de aluno
da quinta série, um pressuposto que até valeria significação se esse narrador
fosse uma criança ou adolescente que se visse diante de uma redação entre as
muitas provas escolares deixadas pelo pai professor. Mas nem isso se
sustentaria pela idade e formação cultural do narrador. Ou seja, nada dicção se
ajusta a quem narra. Uma premissa desperdiçada pelo escritor seria a deriva do
texto escolar com o qual o próprio narrador se cruza em certo inventário das
coisas deixadas pelo pai.
À falsa impessoalidade, podemos
acrescentar ainda o seu contrário, visto que o imperativo da onisciência, o
recurso que se quer negar, finda predominante. Existe aqui um cacoete que se
repete cansativamente, o de utilizar o discurso do possível e uma vírgula
depois preferir o discurso do acontecido. E isso garante a Pedro tecer
afirmativas sem sabermos de onde as colheu e descrever minúcias de situações
que não viveu, fosse porque estava ausente, fosse porque essa ausência resulta
de sua própria inexistência, como a vida dos pais desde a tenra infância e a
interminável lista das pessoas que participaram em menor ou maior grau das suas
vidas. Isto é, o que se conta é também falseado, é a verdade que o narrador
inventou para si, comprometendo, inadvertidamente, o interesse de crônica
de antepassados ou denúncia das circunstâncias que o romance pretende
assumir. Muitas vezes isso recai sobre o papel do que se conta na construção do
próprio imaginado pelo narrador.
Um caso singular nesse sentido é a
recorrência do seu interesse pela vida íntima de suas personagens. Entenderíamos
a razão se encontrássemos um elo no interior do exercício exploratório a que se
dedica: o da recomposição das peças que constituem a identidade do pai e
deslindar o que se oculta no avesso de certa compreensão do seu assassinato
como uma fatalidade. Se esse interesse se sustenta como parte na leitura sobre
as estereotipias para com a raça, como quando discorre sobre negro como bem-dotado
para o sexo, ou das recorrências na vida desfigurada, como a violência
doméstica pelo abuso sexual, ou ainda de sua própria descoberta do corpo, entendemos.
Mas, por que se interessar repetida e às vezes repentinamente pelas miudezas da
vida sexual? O romance não nos responde.
Miudezas à parte, o que se desenha
é certa tentativa de compor uma épica negativa dessas vidas; o narrador quer
contar todos os altos e baixos, as muitas reviravoltas, as lutas, os muitos
dilemas, os muitos dramas, as mais diversas questões. Se trai sua própria
memória, porque inventa o que não viu e nem ouviu, tampouco se interessa nos
possíveis documentos a partir dos quais se poderia formar o que diz, demonstra-se
incapaz de se aprofundar num tema que seja, mesmo o do racismo, condição que
irrompe desde sempre na vida de todas as personagens e é dilucidada
simplesmente como um recurso proposital de parte da sociedade sobre suas
margens. Os impasses e as soluções — e estas sempre existem — são pífios.
Jeferson Tenório comete o mau exemplo de uma parte dos alunos de pós-graduação
em estudos literários: tem em mãos um bom tema, situações interessantes, mas
não os explora, caindo por vezes num didatismo e em reduções empobrecedoras, contendendo-se
em mostrar, como quem aponta aqui e acolá o acontecido, sua circunstância e sua
causalidade.
O melhor do romance é quando se
insinua superar as certezas e insinua algum dilema: quando se desapega do
motivo ideológico para examinar as incongruências das questões suscitadas, por
exemplo. Mas daí a pouco estamos noutra correnteza de acontecimentos e o exame
se perdeu em qualquer parte. A última das quatro partes — a narrativa é
organizada em “A pele”, “O avesso”, “De volta a São Petersburgo” e “A barca” — é
nesse sentido a mais interessante da obra. A linguagem precisa, jornalística,
discorre em duplo tempo, os instantes imediatos que culminam na morte de
Henrique. Ainda que esse desenlace não consiga perturbar o leitor, é quando o
narrador consegue escapar de certo regime Eles-nós.
É na última parte do romance que
se vislumbra a objetividade ansiada, porque até então, embora o narrador busque
por isso, cai sempre no excesso quando trata de mostrar e não desenvolver
circunstâncias. E esse excesso, de personagens, de situações, de dilemas,
resulta na ruína da própria narrativa. Acontece que esse não é o propósito do
romance. Se o leitor não esqueceu, o interesse é recompor a silhueta de uma
identidade e compreender a própria identidade de quem narra.
Saímos de O avesso da pele com
a sensação de que vivemos um século, mas quando procuramos o que vivemos
descobrimos que não vivemos nada. A questão central do romance se faz por
diversos matizes, como dissemos, mas a circunstância a partir da qual o
escritor busca examinar — a de um filho que perdeu o pai e procura-o por meio
da escrita — suscita uma abordagem interior e não exterior com adota; não
deixaríamos de alcançar as demais camadas, como a social, que parece sempre
como a preocupação primeira, mas as implicações interiores melhor diriam os
impasses das questões suscitadas e melhor se correspondem com o lugar discursivo
ocupado por esse narrador.
Sem isso, o que temos é um
daqueles romances paradidáticos, em que o escritor sacrifica o literário em
favor de um propósito educativo específico. Já perto do desfecho da narrativa, ao
pensar sobre a possibilidade de o pai escrever um livro, o narrador diz que o
pai não sabia fazer literatura — “E, se um dia tentasse, teria dificuldade em
distinguir as coisas, porque não saberia se o que pensava era literatura ou uma
observação precária sobre a vida”. Os termos, curiosamente, explicam o romance
e projetam uma consciência que ainda esperamos encontrar na prática literária de
Jeferson Tenório anterior a O avesso da pele ou futura.
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O avesso da pele, Jeferson Tenório
O avesso da pele, Jeferson Tenório
Companhia das Letras, 2020
192p.
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