Entre fantasmas: “A baleia”, de Darren Aronofsky
Por María José Furió
Todos nós já vimos a cena: as
luzes se acendem e o público da estreia do Festival de Cinema de Veneza 2022
irrompe em aplausos enquanto seu protagonista, Brendan Fraser, que parece ainda
concentrado nas imagens do filme, permanece sentado até que os aplausos se
transformem em ovação; à sua volta, este e aquele pede-lhe que se levante, ele o
faz, demora um pouco para que a perna enrugada da calça do terno adquira uma
compostura de noite de gala. Com um sorriso incrédulo, olha em volta e, com
aparente timidez, agradece o reconhecimento do público profissional, de seus
colegas de elenco e do diretor Darren Aronofsky.
A imprensa e os meios de
comunicação têm repetido até a saciedade: esse papel protagonista de um
professor que sofre de obesidade mórbida marca o retorno ao cinema de qualidade
pela porta de entrada de um ator que experimentou duas descidas ao inferno
reservadas aos atores de Hollywood, o dos filmes menores e o descarte físico.
Como Marlon Brando, mas sem uma carreira como Marlon Brando, quando deixou de
ser o protagonista hot de comédias românticas e aventuras onde suava a
camisa justa ao seu torso musculoso, procurando múmias entre saltos e sorrisos,
depois de alguns percalços com algum acerto, Brendan Fraser protagonizou em sua
carne o estereotipado enredo de declínio físico incontrolável, depressão
profunda e forçada mutação. Hollywood gosta de repetir o esquema do herói
resgatado do abismo quando parecia irrecuperável, a mensagem falaciosa do
sujeito maduro que renasce das cinzas fortalecido pelas trevas do fracasso.
Assim como há obituários, convém dar nome àqueles artigos de ressurreição em que
o editor resgata o elogio fúnebre que escreveu para enterrar o artista de
plantão e, corrigindo o tom de certas frases, mudando alguns tempos e
adjetivos, anuncia que o mister X, que você, espectador frívolo ou
cinéfilo cínico, deixou para morrer, ainda tem ar nos pulmões.
É uma estratégia de marketing
repetida e que tem funcionado. Brendan Fraser está entrando na casa dos cinquenta
anos com o andar firme de um homem corpulento e o sorriso brando de um tipo
derrotado. A íris azul continua a tocar na tela. É incrível como um excelente
diretor de fotografia — Matthew Libatique — pode ser expressivo do rosto de um
bom ator enterrado em gordura protética; e tirar do rosto de uma boneca, o de
Sadie Sink, ainda verde demais para modular sua voz de forma convincente, primeiros
planos em que vemos a batalha de emoções contraditórias; no caso de Ellie, as
crianças abandonadas na primeira infância que encontram seus pais transformados
em adultos solitários e indefesos.
Não é preciso saber das
desventuras do ator para apreciar sua atuação em A Baleia; ele é o
melhor de todos, tanto pela condição veterana quanto porque sua aparência é em
si um discurso. Nos Estados Unidos, correm rios de tinta contra a suposta
gordofobia que emerge do filme. É estranho não encontrar notícias de quaisquer
protestos em 2012, quando foi lançada a obra teatral de Samuel D. Hunter na
qual o filme é baseado. As fotografias da obra acessíveis na internet revelam o
protagonista com um traje obeso bem menos natural que o de Fraser.
Vamos direto ao ponto. Trata-se de
Charlie, um professor de inglês que dá aulas pelo Zoom sem se mostrar na tela,
alegando problemas com a câmera do computador. Ele vive recluso em seu
apartamento, sem conseguir superar o luto pela trágica morte do namorado, aluno
em um dos seus cursos, e afastado da mulher e da filha, que abandonou pelo rapaz.
Seu peso, que o deixa com um pé na cova, é resultado da autopunição que ele
inflige ao se empanturrar de fast-food; a chegada do entregador que lhe traz suas
pizzas todos os dias parece marcar a noite, enquanto o dia é pontuado pelas
visitas regulares de sua amiga, a enfermeira Liz. Como se trata de um filme de
Aronofsky, não é de se estranhar que Ellie (Sadie Sink) grite mais do que
interprete, uma pena porque seu papel é o mais complexo. É difícil encarnar uma
jovem de 17 anos cheia de ressentimentos, que por um lado expressa
ressentimentos e por outro verbaliza a repulsa da pessoa comum perante a
obesidade, camadas de espessura psicológica às quais os roteiristas acrescentam
a pulsão destrutiva, essencial para gerar atrito com o ambiente e mover a ação
em direções intrigantes. Samantha Morton, aqui uma envelhecida quarentona, é
uma escolha muito sólida para assumir um papel curto baseado no que (mal) se diz
dela como uma típica mãe vingativa. Os outros dois personagens principais estão
bem, a enfermeira Liz — a tailandesa Hong Chau —, que vai cuidar e envenenar
seu amigo, medindo seus sinais vitais e imediatamente dando a ele a comida
hipercalórica que o outro engole em seu já longo projeto de imolação, e o jovem
missionário, Ty Simpkins, na minha opinião melhor que Chau, até porque o
desenvolvimento da trama do personagem é mais profundo.
A filmografia de Darren Aronofsky
ajuda a colocar em perspectiva seu tratamento da peça que inspirou A Baleia.
O resultado causou divisão de opiniões: alguns o descreveram como miserável,
outros elogiaram com base na atuação do protagonista e se deixaram conquistar
pela mensagem do happy togehter. Na América do Norte, a cara bem-humorada
de melancia de Charlie um tanto caricatural irritou alguns críticos. Para mim,
o todo parece desequilibrado e o entrecho final pouco convincente. É difícil
saber se a colaboração com o dramaturgo Samuel D. Hunter serviu para moderar a
tendência de Aronofsky para o histrionismo; um histrionismo que, quando sustentado
por ousadia visual, boa música e boas atuações, se enquadra na categoria de
espetáculo bastante agradável. É mais fácil entender o que poderia tê-lo
atraído para a peça premiada: temas semelhantes sobre culpa e expiação, doença
mental, solidão, a crueldade estrutural da sociedade estadunidense e os
paliativos aos quais as pessoas se apegam quando o declínio se acelera. Conecta,
então, com Réquiem para um sonho, um excelente filme de 2000 estrelado
pela então veterana Ellen Burstyn junto com os muito jovens e convincentes
Jared Leto e Jennifer Connelly. O papel dissolvente que em Réquiem tinham
a televisão e as drogas desempenham sua equivalência em A baleia com a
igreja Mórmon e o fast-food.
A introdução com a voz do
professor de inglês online que não se vê é muito hábil. Uma certa autoridade
intelectual é transmitida às novas gerações por meio da literatura e da escrita
criativa, entendida como um instrumento recorrente de conexão genuína com o eu
profundo. Este tópico gerou e ainda gerará tantos livros, nem todos bons, que o
espectador faria melhor não se debruçar sobre uma verdade tão triste. Por que o
que resta do eros pedagógico que tanto faz, fez e fará para que os jovens
reprimam a vontade de fugir em qualquer direção e se integrar na sociedade por
meio de um de seus instrumentos de persuasão — da perversão, da sublimação —
mais realizados, a literatura, se quem analisa esses versos e essas metáforas é
um obeso de mais de 200 quilos, incapaz de se locomover sem a ajuda de um
andador, que usa um sistema de roldanas para se deitar, um mastodonte que
precisa de um respirador e mora sozinho em uma casa não totalmente
apresentável, em Idaho, um estado do chamado Corredor Mórmon? Que legitimidade
te ajuda a falar sobre beleza?
Charlie, à beira de um colapso, se
recusa a ser hospitalizado, alegando que não pode pagar a conta; seu remédio
milagroso é a leitura em voz alta de um pequeno texto, um comentário escolar
sobre um certo romance sobre uma baleia; naturalmente, trata-se de Moby Dick,
romance icônico da cultura estadunidense. O texto em questão é um comentário
quase inédito sobre a solidão e as emoções ocultas, escrito por sua filha e
que, em uma das tantas cenas patéticas, ele não consegue pegar do chão até que,
oportunamente, alguém bate à porta, que, oportunamente aberta, dá lugar a um
menino de apenas vinte anos, um missionário com Bíblia na mão, que faz
proselitismo para a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias,
entidade e nome que, por incrível que pareça, não foram inventados por Thomas
Pynchon.
Para entender completamente os
personagens, se não toda a trama, é importante saber que a ação — ou falta de
ação — ocorre em um estado chamado Corredor Mórmon, que inclui Idaho, Nevada e
Utah, onde exerce sua influência, desastrosa como deixam ver Aronofsky e
Hunter, esta igreja milenarista. A influência do movimento, integrado por
várias igrejas cristãs, se espalhou para Wyoming, Califórnia e Arizona, e teria
dezesseis milhões de fiéis. Fundada em 1830, ou seja, há quase duzentos anos de
acordo com o calendário gregoriano, seu conceito de “últimos dias” deve ser
entendido sob a perspectiva da física quântica. Sarcasmos à parte, em A
Baleia são recusadas diferentes abordagens da busca de redenção.
A começar pela irrupção do menino
mórmon com sua mensagem messiânica, e a orquestração bem calculada de entradas
e saídas de personagens, revelações dramáticas ou catárticas, silêncios e
imprecações, lágrimas, abraços e frases para recordar, a base de estrutura
teatral oferece a solidez que falta em outras decisões de direção,
especialmente, infelizmente, na música. Algumas palavras, então, em favor de
Samuel D. Hunter, um jovem talento nascido em Moscow, Idaho. Enquanto a
subtrama do impacto fatal da igreja mórmon na vida dos protagonistas,
especialmente no romance de Charlie e seu aluno, tem suas raízes no
enquadramento geográfico, na concepção do espaço doméstico como tumba pessoal,
como mausoléu do namorado morto, como um teatro de revelações e sentimentos de
desespero e vergonha, parece ser legado de Sam Shepard e seu inovador Criança
enterrada (Pulitzer na categoria de drama em 1979 e imediatamente convertido
num clássico estadunidense). A criança enterrada era um grande símbolo de um
segredo vergonhoso que dissolve o mito da família estadunidense. O mito que A
Baleia discute é o da imagem da masculinidade; como a imagem do homem é
construída e destruída. É uma negociação entre si mesmo e um ambiente social e
histórico concreto.
Que os roteiristas — Hunter e
Aronofsky — tenham optado por essa forma de realismo naturalista que renuncia a
colocar reflexões políticas na boca dos personagens, deixando ao espectador
interpretar o que veem de acordo com sua experiência e cultura, explica que na
imprensa se fale de gordofobia ao invés de falar de trauma e como a experiência
específica vivida por Charlie provoca um daqueles duelos que Freud chamava de
melancolia. Charlie é, literalmente, um homem desfeito, que integra na forma do
ódio a si mesmo a condenação do grupo, esse poder da igreja milenarista. O fato
de a enfermeira se relacionar com o rapaz morto proporciona a habitual
concentração dramática que um trabalho em espaço fechado necessita, mas a
relação que mantém com o seu suposto melhor amigo é carregada de ambivalência.
A Baleia é uma história
estadunidense muito boa, que Aronofsky leva para o seu terreno, o da
dilaceração, da ênfase melodramática, do confronto entre indivíduo e grupo. Consegue
que esses excessos não desmoronem o todo graças à boa escolha do protagonista e
a um material base bem construído. Surpreende que não transforme algumas linhas
narrativas em episódios filmados exteriormente, de modo que mal deixa respirar
uma história tão sufocante com imagens de um Charlie mais jovem à beira-mar. O
dinheiro, grande fetiche do sistema capitalista, é o macguffin da trama:
uma economizada quantia significativa de dinheiro devolve a sua dignidade
àqueles que o abandonou? Quando o eu íntimo se desintegra, ainda é possível
resgatar entre as ruinas um último reflexo de um homem provedor.
É significativo o papel de talismã
e tábua de salvação que atribui à literatura como ferramenta de
autoconhecimento e emancipação. Diante dos resultados, essa fé no poder da
literatura tem muito a ver com superstição, não muito diferente daquela
cultivada pelo menino mórmon, e é claro que todo ato de autoafirmação tem um
custo.
A Baleia é o tipo de
filme que o espectador deve assistir com alerta em suas habilidades analíticas.
Diante de problemas de saúde mental e física como os de Charlie, o calor humano
é maravilhoso, mas é apenas um paliativo se falta a atenção médica
profissional.
* Este texto é a tradução livre para “Entre fantasmas: ‘La
ballena’, de Darren Aronofsky”, publicado aqui na revista Mercurio.
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