Dino Buzzati via o que pintava e pintava o que via
Por María José Calvo Montoro
“Como sempre me interessei muito
pelo pintor Hieronymus Bosch, durante uma viagem à Holanda visitei sua cidade
natal”: assim começa o texto que Dino Buzzati publicou como introdução às obras
completas do pintor flamengo na famosa coleção Clássicos da Arte. Esta é a
história em que narra o seu encontro com um velho descendente do grande mestre
que, muito contrariado com o apego habitual do seu antepassado ao fantástico,
recorda ao escritor: “Se não houve pintor mais realista e diáfano do que ele…
que fantasias, ou que pesadelos, ou que magia negra! A realidade objetiva e transparente
que estava diante dele! Só que ele era um gênio que via o que ninguém mais era
capaz de ver. Aí reside o seu segredo: era alguém que ‘via’ e pintava o que via”.
Ora, nesse enunciado poético,
Buzzati delineia aspectos essenciais de sua escrita, encenando o próprio olhar
de um pintor. Os olhos de falcão que Buzzati descobre no retrato de Bosch, “penetrantes
e maliciosos”, a ironia burlesca que lhe atribui na sua história, são modos de
ver que lhe permitem representar a realidade sem camadas que a disfarça: as casas
sem telhados e sem paredes que escondem seu conteúdo, a realidade descoberta
mostrando “inumeráveis coisas vivas como celenterados, ostras, girinos,
peixes ávidos, salamandras raivosas” que nada mais eram do que “criaturas
humanas, a própria essência da humanidade que nos cerca” se fragmentando e se dilacerando
“enquanto nos despedaçamos dia e noite uns aos outros, talvez sem saber”. Ou
seja, o mundo observado e descrito por um pintor que retrata essa descoberta
com a precisão de um entomologista.
Invariavelmente considerado um
escritor de literatura fantástica, reconhecido pela crítica como discípulo de
Poe e Kafka, e resgatado entre os contemporâneos por Borges, Buzzati é, acima
de tudo, um extraordinário contador de histórias. Nas palavras de Italo
Calvino, o fantástico em Buzzati é indiscutível, mas ele especifica que sua “veia
fantástica” é “extremamente cuidadosa e racional”, especialmente em seus
primeiros “contos frios”. Assim, para o autor de Os nossos antepassados,
o verdadeiro significado da escrita buzzatiana está na eficiência e na precisão
de uma refinada técnica narrativa, algo que o próprio Calvino se interessou e
também propôs como método, mesmo em seus textos mais fantásticos.
Da mesma forma, o crítico Giacomo
Debenedetti destacava a maestria de Buzzati, fundamentando-se no singular
processo de decantação do elemento fantástico que o autor opera em sua escrita.
Um processo que traduz a construção de todo um programa estilístico codificado
na sua “capacidade de ilusionismo, no virtuosismo das minuciosas descrições
que, graças à sua afetação paródica, alcançam um tom leve e dinâmico, e o
exoneram de uma das regras capitais de seu gênero, que consiste em propor o
absurdo como déjà vu. Ao contrário, ele nos dá o impulso de ir além das
aparências, amalgamando fragmentos da realidade em algo nunca visto”.
É possível traçar um percurso pela
obra de Buzzati partindo dos vínculos que se estabelecem entre narrativa e
biografia do autor. As experiências do escritor são um elemento fundamental na
configuração de seu estilo, no sentido que lhe outorga Debenedetti, que
descobriu a operação que está na base de seus contos: de ascendência burguesa
abastada, o escritor parte de suas confortáveis experiências cotidianas em
busca de lugares inexplorados numa espécie de “nostalgia dos espaços
vertiginosos, dos grandes precipícios, dos sombrios vales românticos”.
De fato, já em Barnabo das
montanhas, que data de 1933, se funda o significado alegórico que Buzzati
dá à paisagem dos verões de sua infância meio milanesa, meio montanhosa. O
valor da dignidade humana está ligado à presença silenciosa das montanhas, que
podem estar encobertas pela névoa, mas que acompanham incondicionalmente os homens
como testemunho de suas ações. Para tanto, a narrativa desenvolve um conflito
moral em que um renovado Lord Jim, o protagonista guarda-florestal, se opõe ao
ato de covardia que permitiu que alguns bandidos assaltassem o paiol de pólvora
que ele devia vigiar, a serenidade e o rigor das montanhas “imóveis e solitárias,
afundadas nas nuvens”.
O efeito perturbador na escrita de
Buzzati reside em sua capacidade de produzir inquietação pelo efeito de nitidez
e transparência que lhe são característicos. O seu estilo simples e contido
esconde sempre um limiar que conduz ao desassossego, uma brecha no inesperado
que se abre no mundo real. É o que acontece em O segredo do bosque velho,
que continua sendo para muitos uma das melhores obras de Buzzati. A partir de
1935, vincula-se à história anterior por sua abordagem moral, propondo, neste
caso, uma fábula em que imaginação e realidade se fundem sem que exista
possibilidade de estabelecer fronteiras. Uma operação — apesar de neste caso
coexistirem gênios da floresta, animais falantes e personagens reais — não
muito diferente da obra que o tornou famoso: O deserto dos tártaros, continuamente
reeditado como um clássico essencial. O jovem tenente Giovanni Drogo é
transferido para a distante Fortaleza Bastiani, olha para o deserto e aguarda a
chegada do exército inimigo. Enquanto isso, o tempo passa sem que a batalha
desejada chegue. Como explica Jorge Luis Borges, Buzzati, valendo-se do método da
postergação de Franz Kafka, descreve a espera “indefinida e quase infinita” do
protagonista através da imagem do deserto, que assume um valor simbólico, mas
também real: Drogo, que espera “multidões”, apenas conquista o vazio.
Se a riqueza das imagens inspirou
um grande filme como o de Valerio Zurlini, é porque Buzzati predetermina no
texto o seu impacto visual: “Por um instante ainda ficou nos olhos de Drogo a
imagem das muralhas amareladas, dos bastiões oblíquos, dos misteriosos redutos,
dos penhascos laterais, negros por causa do degelo. Pareceu a Giovanni — mas
foi por um milionésimo de segundo — que as muralhas se alongavam repentinamente
para o céu, rebrilhando de luz, depois toda a visão foi cortada brutalmente
pelas rochas relvosas, entre as quais se aprofundava a estrada. Chegou por
volta das cinco a uma pequena estrada”.1 Olhar vertiginoso para o
céu que, no entanto, remete ao ocultamento do ponto de vista e, portanto, à
sensação de solidão absoluta. Esse era o sentimento do jovem Buzzati na redação
do jornal Corriere della Sera em que trabalhava, quando explicava as
raízes autobiográficas de seu romance. Consciente da passagem do tempo nos
rostos dos seus companheiros tocados por uma imobilidade sufocante, se via em
seu espelho e se rebelava, não só contra a maneira como os sonhos da juventude
atrofiam à espera da chegada da grande ocasião, mas intuindo de forma quase
profética o grande desastre que estava por vir.
Como afirma Giulio Carnazzi,
contrariando a corrente do neorrealismo que se afirmava por meio de uma
linguagem documental ou como uma amarga crônica da vida real, Buzzati publicou
em 1945 a reformulação de um conto infantil, que já havia apresentado em
fascículos no Corriere dei piccoli, suplemento infantil de seu jornal.
Trata-se de A famosa invasão dos ursos na Sicília. Assumindo a ideia das
montanhas como espaço feliz, contrapõe o mundo ideal das alturas onde vivem os
ursos ao mundo degradado da cidade. No fundo da fábula está uma mensagem de paz
que se identifica necessariamente com a tragédia da guerra apenas vivida, como
se traduz nas palavras do rei Leôncio, nas últimas páginas da narrativa: “Volta
para as montanhas […]. Deixa esta cidade onde você encontrou riqueza, mas não
paz de espírito. Livre-se desses vestidos ridículos. Joga fora o ouro. Joga
fora os canhões, os fuzis e todas as outras coisas diabólicas que os homens lhe
ensinaram. Volta para o que você era antes.”2
Apesar de o conto ser um meio
expressivo privilegiado para Buzzati, a escolha de As noites difíceis
não mostra o momento mais interessante do contista, talvez melhor representado
por suas primeiras coletâneas Pânico no Scala (1949), A queda da
Baliverna (1954) ou, em todo caso, por Sessenta histórias (1958) uma
seleção do próprio Buzzati vencedora do prestigioso prêmio Strega, cuja crítica
deu origem às lúcidas páginas de Giacomo Debenedetti acima mencionadas.
Um novo dispositivo visual, desta
vez relacionado com a atmosfera perturbadora que poderia recordar algumas
imagens da pintura metafísica de De Chirico, está na base de O grande retrato.
Considerada uma narrativa de ficção científica, mostra a impossibilidade do
amor fora do âmbito do humano, algo impossível de substituir até mesmo pelo
mais sofisticado sistema de inteligência artificial: a grande máquina que,
isolada no meio de uma paisagem cercada por magníficas montanhas, tenta
substituir o amor verdadeiro. No entanto, a infelicidade que produz perdura
apesar da sua destruição: “Já não existia a mulher, o amor, os desejos, a solidão,
a angústia. Apenas a imensa máquina infatigável e morta, como um exército de
cegos contadores, curvados em milhares de bancos, escrevendo números sobre
números sem fim, dia e noite, por uma eternidade vazia”.
E, finalmente, seu retorno ao
romance em 1963 com Um amor expôs Buzzati a uma autobiografismo que para
muitos foi admiravelmente corajoso, como escreveu Carlo Bo. De fato, seu
conteúdo erótico foi considerado pela crítica como um caso raro no panorama
literário italiano, assim como sua proximidade com um acontecimento real da vida
do escritor levou Eugenio Montale a qualificar o romance como um “psicologismo
patológico”. Un amor narra a relação do protagonista com a jovem
prostituta Laide, uma daquelas criaturas que povoavam Milão e que, como numa
pintura de Bosch, será descrita como um labirinto, como um formigueiro. Laide e
Milan se fundem em um espaço borrado no qual está preso o próprio alter ego de
Buzzati, um homem maduro que se apaixona perdidamente pela jovem em graus
insuspeitados de humilhação. Mas na história de amor não há vencedores nem
vencidos: ninguém se salva. A lucidez do escritor consiste nessa grande derrota
do mundo burguês e de seus parâmetros comerciais. O essencial é a profunda
solidão dos protagonistas, que se manifesta no autorretrato de Buzzati e no
cenário desolado que configura as ruas de Milão.
Por meio de enumerações caóticas e
ironias, referências aos personagens “ineptos” de Federigo Tozzi e até mesmo de
Italo Svevo, valendo-se da conjectura típica dos romances policiais e disseminando
referências de uma cultura compartilhada com o leitor, como os acenos a O
anjo azul de Josef von Sternberg, ou ao meio jornalístico que tão bem
conhece, Buzzati constrói uma espécie de torvelinho que acompanha o
protagonista até o fim, ora representando o turbilhão da cidade, ora remetendo
ao mundo interior do escritor-personagem.
Fiel a um estilo preciso e limpo,
Buzzati afila a agudeza do olhar ao longo de sua carreira narrativa e
intensifica sua forma de penetrar no cotidiano para transgredir os limites do
transitável, desse espaço limitado e vulgar que, no entanto, prenuncia e
propicia vertiginosos espaços. E tudo isso é possível em sua escrita porque
Buzzati pintou com palavras, explicitando os procedimentos e técnicas do pintor
que o descendente de Bosch descobrirá para ele como chave para sua própria
poética: ser alguém que “vê” e que pinta o que vê.
Notas da tradução
1 A tradução citada é a de Homero
Freitas de Andrade.
2 Esta e a tradução dos demais
excertos é realizada a partir do texto em língua espanhola.
* Este texto é a tradução livre para “Todo Buzzati”, publicado aqui, na Revista de Libros.
Comentários