Dez poemas de Wang Fan-chih
Por Pedro Belo Clara
(Seleção e versões)*
I.
vento e poeira
entram por esta cabana adentro, pequena e de palha
há uma manta rasgada sobre a cama
se alguém vier, será convidado a entrar
posso fazer dois montes de terra para nos sentarmos
II.
não tenho carvão para me aquecer
com um sopro, avivo o fogo alimentado
por hastes de salgueiro e cânhamo
tenho sake no jarro e o pote de três pernas
ainda tem uma para se apoiar
III.
muitos são os que desejam altos cargos
um trabalho que pague o suficiente para encher
duas tigelas de arroz é o quanto me basta
o fogo que ferve o arroz no pote
também aquecerá os meus pés
IV.
sou pobre, então riem de mim
sou tão pobre que o riso alheio encanta-me
nenhum boi, nenhum cavalo
nenhum ladrão me preocupa
V.
ando há tanto tempo esfomeado
caído no buraco do próprio estômago
uma criança perdida, sofrendo
— oh, mãezinha, como pudeste dar-me vida?
VI.
aquele homem e a sua mulher, tão românticos ao crepúsculo…
sem arroz para comer nem madeira com que cozinhar
um homem e a sua mulher de barrigas vazias
que bom o jejum ser uma coisa sagrada!
VII.
não desejo ser verdadeiramente rico
não quero ser verdadeiramente pobre
deixa que o ontem se transforme em hoje
e que o hoje se torne no amanhã
se puderes aprender a nada querer
talvez te tornes num homem de verdade
VIII.
caos e miséria nunca vistos
ladrões por toda a parte, tão poucos os homens bons
cheios de grandeza, arremetem o mediano e o reles
os grandes espancam os mais pequenos
IX.
poderão algum dia regressar a casa?
labutam sem fim à vista:
esposas em trabalhos forçados
maridos reunidos à força, rumando à guerra
X.
escuta bem: desfruta do teu tempo
na verdade, não te sobra muito
ainda há pouco nascias
e em breve terás partido
* As versões são a partir da
tradução inglesa elaborada por J.P. Seaton em Cold Mountain Poems (Shambhala
Publications, 2009).
Ilustração: Ma Yaun |
vento e poeira
entram por esta cabana adentro, pequena e de palha
há uma manta rasgada sobre a cama
se alguém vier, será convidado a entrar
posso fazer dois montes de terra para nos sentarmos
não tenho carvão para me aquecer
com um sopro, avivo o fogo alimentado
por hastes de salgueiro e cânhamo
tenho sake no jarro e o pote de três pernas
ainda tem uma para se apoiar
muitos são os que desejam altos cargos
um trabalho que pague o suficiente para encher
duas tigelas de arroz é o quanto me basta
o fogo que ferve o arroz no pote
também aquecerá os meus pés
sou pobre, então riem de mim
sou tão pobre que o riso alheio encanta-me
nenhum boi, nenhum cavalo
nenhum ladrão me preocupa
ando há tanto tempo esfomeado
caído no buraco do próprio estômago
uma criança perdida, sofrendo
— oh, mãezinha, como pudeste dar-me vida?
aquele homem e a sua mulher, tão românticos ao crepúsculo…
sem arroz para comer nem madeira com que cozinhar
um homem e a sua mulher de barrigas vazias
que bom o jejum ser uma coisa sagrada!
não desejo ser verdadeiramente rico
não quero ser verdadeiramente pobre
deixa que o ontem se transforme em hoje
e que o hoje se torne no amanhã
se puderes aprender a nada querer
talvez te tornes num homem de verdade
caos e miséria nunca vistos
ladrões por toda a parte, tão poucos os homens bons
cheios de grandeza, arremetem o mediano e o reles
os grandes espancam os mais pequenos
poderão algum dia regressar a casa?
labutam sem fim à vista:
esposas em trabalhos forçados
maridos reunidos à força, rumando à guerra
escuta bem: desfruta do teu tempo
na verdade, não te sobra muito
ainda há pouco nascias
e em breve terás partido
______
Encontramo-nos diante duma figura envolta
em aura obscura, não pouco misteriosa, algo até comum de se verificar na poesia
chinesa de séculos há muito idos.
O mistério de que falamos chega a
ser tão denso que, a par da famosa dupla de poetas-eremitas da célebre “montanha
fria”, Han Shan e Shih Te (século VIII, ambos), certos estudiosos consideram o
trabalho de Wang não o resultado duma só pessoa, mas, imagine-se, de várias. De
facto, conforme se verá mais adiante, determinadas contradições no teor dos seus
poemas alimentam essa dúvida: tanto é capaz de trabalhos de profunda dimensão
como se mantém numa superficialidade banal.
É um tipo de incongruência,
crê-se, que melhor sugere a presença de indivíduos distintos no acto da criação
do que meras fases do pensamento duma só pessoa, registando a sua evolução
intelectual. Seria uma prática usual naqueles tempos, é certo: escrever a
várias mãos sob um nome em comum. E não necessariamente mãos contemporâneas. Por
vezes, seria quase como se novas gerações se encarregassem de levar avante um
certo legado duma personagem imaginada por outros.
O trabalho poético de Wang surge
usualmente coligado ao dos anteriores poetas, em antologias que recuperam a
poesia escrita naquele icónico lugar, a “montanha fria”, sendo assim
considerado um seu digno sucessor. E esse facto oferece-nos pistas fiáveis.
Importa compreender que esse lugar
de retiro recebeu por vários anos eremitas de toda a espécie e de diversas
raízes religiosas, sendo as principais o Budismo e o Taoísmo. Muitas figuras,
que foram permanecendo anónimas, subiam a montanha e erguiam as suas cabanas
toscas nos lugares mais remotos, tudo por amor a um estilo de vida mais simples
e muito, muito modesto — diriam, no fundo, “mais puro”. Outros, seriam monges
que se confinavam nos templos aí existentes. Nos seus eremitérios, longe das azáfamas
mundanas, em plena comunhão com a natureza, era comum a escrita de poemas, em
muitas ocasiões como simples desabafos do momento, registando-os em diversos
locais que a própria zona oferecia, alguns tão inusitados quanto uma rocha ou um
tronco de árvore. Era, pois, difícil atribuir uma autoria a tais trabalhos,
quase todos compostos em anonimato e, literalmente, espalhados por toda a parte.
Mas certos nomes foram ficando nas mentes da época, e as bocas falavam deles.
Fossem figuras imaginadas ou reais, era-lhes conferida uma certa substância e,
com isso, ligava-se facilmente a suposta pessoa com a produção poética. Com o
tempo, somente adquiriram uma aura mítica.
Tal como os poetas antes
referidos, cujos nomes são somente títulos, Wang Fan-chih decifra-se por “Wang,
leigo budista”, algo tão bizarro que de pronto se aceita trocar a designação de
nome pela de título (entenda-se “leigo” não como ignorante, mas como secular,
isto é, um monge que não tomou votos). Embora seja possível alguém naquele
tempo ter assinado todo um conjunto de poemas sob tal epígrafe, é igualmente
credível tratar-se duma personagem fictícia, cuja produção poética se
incrementou devido à contribuição dum certo número anónimo de poetas.
Seja real ou ficcional, é certo
que o poeta terá vivido algures no século IX da nossa era, sendo por isso testemunha
dos derradeiros anos da dinastia Tang (618 – 907 d.C.), um governo de começo
áureo, onde eclodiram alguns dos maiores poetas chineses de sempre. Contudo, o
seu colapso inaugurou um período de imensas conturbações, assolado pela guerra
e graves crises sociais e económicas, com os surtos de peste e uma grande
escassez de alimentos à cabeça do rol.
De linguagem simples e muito
directos, os poemas de Wang foram bastante populares na sua época. Menos de uma
dúzia, porém, sobreviveram ao suceder dos séculos — e somente graças à inclusão
de certos trabalhos, por parte doutros poetas, nas suas antologias pessoais. Só
no século XX, quando se procedeu à abertura da biblioteca monástica de
Tun-huang, encerrada por volta do ano 1000, por força da guerra que lavrava no
território, vários poemas seus foram redescobertos, assim como de muitos outros
autores. Mais de três pergaminhos se outorgaram a Wang, cuja tradução para uma
língua ocidental se deveu ao francês Paul Demiéville, algures por 1950.
Nem tudo o que se atribuiu a Wang
Fan-chih é de extraordinária qualidade, o que nos leva à questão de abertura
deste texto: várias mãos os escreveram, justificando assim a disparidade de
valor artístico, ou seriam os menos conseguidos poemas de verde idade, pobres
ou pouco significativos porque imaturos? Os próprios temas e modos de
construção dos textos tendem a divergir um pouco, como antes referimos, sendo
aqui onde se imiscua a dita incongruência. Um exemplo: ora se louva as virtudes
da pobreza ou dá-se azo a lamentos pela escassez monetária pessoal (veja-se os
poemas IVº e Vº da nossa mostra).
Sem prejudicar o que se afirma, traçando
uma linha geral por todo o trabalho do enigmático poeta, verificamos uma coesão
temática na referência a preceitos tradicionalmente budistas (com inclinação
para o zen), numa preferência por uma vida de recluso, simples e
modesta, celebrada como um elogio à pobreza (embora essa fosse, na época, tão
comum que vivê-la era mais imposição que escolha), num tom de discurso irónico,
por vezes cruel, num negrume de sentido algo lúgubre e numa moralidade
corrosiva para com falsidades de diversos calibres, mesmo as de índole
religiosa. Há ainda a acrescentar o uso frequente dum vocabulário vernacular,
característica que o terá tornado realmente célebre, sendo tal prática uma
novidade na época.
Como se verifica, Wang era senhor
dum olhar atento e aguçado. Vários poemas espelham o seu lado mais crítico
sobre a sociedade e o mundo, constantemente regado pela tal ironia que o
caracteriza. Expõe o ridículo, a injustiça e a incoerência humana de modo
simples e directo, sem lugar para desculpas ou hesitações. Graças a isso, uma
imagem mais clara do tempo que viveu é-nos dada com uma limpidez louvável,
fazendo brotar a incómoda constatação que muito pouco terá mudado na sociedade
humana com o render dos tempos. Mesmo assim, ainda encontrou espaço para partilhar
a sua visão do mundo e das coisas, para deixar a sugestão de trilhos e escolhas
pessoais rumo a uma existência mais pacífica e tranquila.
Considerando o exposto, e somando
as peculiares experiências da desafiante época em que viveu, compreende-se como
as vozes (será?) que de Wang Fan-chih emanam são deveras singulares, um
testemunho crítico dum tempo cruel e obscuro. Embora algo danificado pelo
esquecimento provido pela natural passagem do tempo, tal contribuição torna-o
dos mais importantes poetas desse período histórico, talvez dos primeiros a
viver verdadeiramente na pele o princípio primordial dessa religião, “a vida é
sofrimento”, num autêntico teste à sua crença budista, tão serena e
apaziguadora, por anos de verdadeira provação — onde tão fácil seria renegar
toda uma filosofia e optar por um activo modo de sobrevivência, desprovido de
respeito e compaixão pelas demais formas de vida.
Decerto, por tudo isto, estaremos
perante um autor merecedor da nossa melhor atenção.
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