Charles Simic, contra os monstros da solenidade
Por José Pulido
Alguém poderia compor uma autobiografia com cada uma
das comidas memoráveis de sua existência e talvez resultaria mais interessante
que as autobiografias comuns. Com toda honestidade, o você preferiria ler: a
descrição de um primeiro beijo ou a de um repolho recheado feito à perfeição?
— Charles Simic
Charles Simic. Foto: Scott Cook. |
Fazia dois anos que estava na
Cidade do México quando, em 2014, vi no Bellas Artes uma homenagem pelo
centenário do nascimento Octavio Paz. Tratava-se de uma leitura de poesia onde
participaram amigos do poeta homenageado. Estavam Wole Soyinka, Derek Walcott,
Valerio Magrelli, Lasse Söderberg, Ida Vitale, Pura López Colomé, José Luis
Rivas, Fabio Morábito, o grande David Huerta, Rafael Vargas e Charles Simic.
Ainda hoje recordo meu entusiasmo.
Eram escritores que admirava, e admiro. Ante a comum solenidade dos mexicanos
se impôs a poesia jocosa e as anedotas vívidas de Söderberg e Simic. Noutro
tempo, eu lera Simic com uma alegria e ingenuidade que felizmente não me
acompanham mais. Para mim, vê-lo lendo, significava uma espécie de triunfo
pessoal ante o mundo, uma espécie de batalha vencida dentro do campo de jogo da
literatura, porque sua poesia sempre me pareceu esclarecedora, cheia de
pequenas iluminações e uma ironia que apenas os que precisaram de deixar seu
país natal para escrever foram capazes de elaborar, fora da pátria e das
modas em curso.
Inteirei-me de sua morte em Madri.
A diferença de horários fez com a notícia chegasse com algum atraso, quando
vários leitores já compartilharam poemas de Simic nas redes sociais, quando a
notícia já circulava nos principais veículos de comunicação. No princípio
deixei passar, como se tratasse de qualquer outro acontecimento. Mas no correr
dos dias, a morte de Simic foi tomando outro cariz, algo mais próximo. Pensei
na sua poesia, nos seus ensaios e textos biográficos, no que nos deixa e no que
leva consigo. Talvez, por isso, agora, no metrô, senti que ficáramos um pouco
mais sozinhos que antes (desculpe pelo lugar-comum, mas foi assim). Por sorte,
de imediato me veio à memória sua leitura no Bellas Artes e um par de anedotas
sobre sua relação com Paz, sua infância, a poesia e a literatura como um jogo
em que, ante tudo, alguém deve aprender a se divertir.
A primeira situação ocorreu
durante a Copa do Mundo de 1994. Charles Simic visitava o México e encontrou-se
com Octavio Paz num restaurante. Durante a refeição, o poeta mexicano iniciou
uma conversa sobre Heidegger. A cidade estava um deserto, pois naquele dia
jogavam Itália e México. No início, o futebol não estava entre os interesses de
Simic (ou fingia isso) e estranhava que neste país existisse alguém que não
estava atento àquele jogo. Simic conta em Confessions of a Soccer Addict:
“Quando estávamos entabulando uma
discussão sobre Heidegger, lembro os gritos afogados de desespero que nos
chegavam da multidão nas ruas. Curioso de me inteirar como a partida transcorria, ia várias vezes ao banheiro para poder bisbilhotar pela cozinha, onde os cozinheiros
e os garçons viam o jogo. Não recordo nada do que Octavio disse àquela noite, e
lamento isso sinceramente, porque ele era um dos homens mais inteligentes e
eloquentes que conheci na minha vida. Mas lembro sim o resultado da partida:
México 1 x Itália 1.”
A confissão é divertida e não
precisa do reconhecimento pelo seu semelhante, mas sobretudo nos oferece o
instantâneo de um Charles Simic que reconhece na quebra do protocolo — porque
prefere conhecer o resultado da partida igual aos garçons e cozinheiros — um
ato libertador que nos anima, nos salva das angústias existenciais
heideggerianas e na qual também nos divertimos. O mesmo acontece com certa poesia,
e em especial com a sua, lúdica mas alusiva, avessa ao solene mas não rude e
grosseira, alegre sem ingenuidades. “O melhor da poesia é que incomoda muito
aos professorais, aos pastores e ditadores, e alegra a todo o restante”, aponta
em O flautista no poço. Ensaios escolhidos (1972-2003).1
Essa atitude do poeta que está
longe dos pódios é uma luta contra a mistificação da poesia e do mundo. Para
Simic, o verdadeiro poema estava atravessado pelo estrito contato com a
realidade e a experiência que dela deriva, como lemos neste exemplo:
Dezembro
e mesmo assim os mendicantes
seguem
carregando placas de sanduíche —
o fim do mundo
e outra
os preços da barbearia próxima.
para as galinhas que picotavam no terreiro,
ou me sentava na latrina escrevendo para uma aranha
que emendava sua teia sobre minha cabeça.
Foi quando minha esposa me trocou pelo carteiro.
Também, os vizinhos foram embora.
Sua porca e seus leitões guinchavam
enquanto corriam atrás do caminhão da mudança,
como fez aquele espantalho que uma vez amarrei à árvore
para que me escutasse.2
Talvez, por isso, Seamus Heaney,
amigo e contemporâneo de Simic, dissesse que este era um poeta “surrealista, e por
isso cômico”. Um poeta que dá mostra de uma “imensa confiança criativa, bufona
e elegante, mas que às vezes suas idealizações têm uma seriedade específica
capaz de contornar a infração surrealista da leveza. Suas metamorfoses e posições
em cena se submetem sempre ao fator do sofrimento humano. Se mantém a dança mágica
é para manter a clareza sob controle”. Tudo isso transparece não apenas em seus
versos como também na sua prosa com uma grande congruência, como toda pessoa
que leva o humor a sério. Por exemplo, quando rememora sua infância na Sérvia
em O monstro ama o seu labirinto, escreve:
“Comíamos melão sob um enxame de aviões que voavam à grande altura. Enquanto
comíamos, as bombas caíam sobre Belgrado. Víamos a fumaça se erguer ao longe. O
calor do jardim nos sufocava e pedíamos permissão para tirarmos a camisa. Toda vez que minha mãe cortava uma fatia com a faca da cozinha, o melão fazia um som
como um clique de máquina fotográfica. Também ouvíamos o que nos pareciam
trovões, mas quando levantávamos a vista, o céu azul estava limpo”.
A atrocidade da guerra frente a um
céu azul e limpo, o ruído dos aviões contra um estalido amoroso do melão
partido pela mãe. É esse contraponto que habita os poemas de Charles Simic,
porque para o autor de O mundo não se acaba (livro que mereceu o Prêmio
Pulitzer em 1990): “A poesia se alimenta dessas contradições […] A poesia é o
momento, a experiência do momento desnudado”.
Agora, enquanto termino de
escrever essas linhas, penso na possibilidade do poema (e da literatura em
geral) como uma luta contra a solenidade do mundo, contra minha própria
solenidade autoimposta no momento de escrever, porque Charles Simic nos
aproxima do antissolene do poema para contar a dor de uma realidade que, muitas
vezes, pode resultar atroz. Lê-lo é como bater de frente contra uma porta de
vidro que não vemos, apenas para que, com o impacto palpitando em nosso rosto, dobremos
ao riso, maldizendo, divertidos, nossa estupidez. Mesmo quando o vidro seja uma
guerra monstruosa.
* Este texto é a tradução livre
para “Charles Simic (1938-2023), contra los monstruos de la solemnidad”, publicado aqui em Nexos.
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