Aniquilar, de Michel Houellebecq
Por Pedro Fernandes
Michel Houellebecq. Foto: Barbara d'Alessandri. |
Michel Houellebecq tem lugar fixo
entre as vozes mais interessantes na literatura do entre-séculos XX e XXI. A
combinação entre uma boa narrativa e a análise crítica, sempre por um ponto de
vista fora da linha majoritária, não é uma qualidade nova para o romance, mas o
que deveria ser uma obviedade deixa de ser quando encontramos o romanesco ora
tomado pelos discursos que certos coletivos querem ler ora interessado em superar
pela subversão mas desastradamente os recursos técnicos da arte de narrar. Aniquilar
está perfeitamente situado nos modelos tradicionais, flertando mesmo com expressões
que para alguns foram há muito superadas, como o folhetim, ou ainda com formas
de narrar reduzidas pela crítica como mainstream ou literatura de massa,
como o romance especulativo.
A qualidade de um escritor,
sabemos, não se mede apenas pelas inovações técnicas na forma e na estrutura da
narrativa e sim — talvez mais — pela maneira como se aproveita do convencional
para oferecê-lo não renovado mas um outro. Sobram exemplos na literatura, mas
vejamos o que fez Cervantes com Dom Quixote: o escritor repete a fórmula
gasta da novela de cavalaria sem fazer — especificamente — uma novela de
cavalaria. Reside nesse pequeno impasse toda a renovação que seu livro instaura
para a narrativa moderna. A demonstração é um tanto exagerada porque Michel
Houellebecq não repete o gesto criativo do escritor espanhol. Mas queremos
demonstrar como este romance publicado no Brasil em 2022 reaviva determinados
procedimentos do romanesco parasitando qualidades controversas ao meio literário.
Além da narrativa de especulação,
Houellebecq recorre a movimentos da pulp fiction, como os thrillers,
as narrativas cor-de-rosa, esotéricas e o drama familiar. O elemento que
estabelece o papel modificador é a reflexão crítica situada entre planos igualmente
diversos, como a ciência do comportamento, a filosofia existencial e a
análise cultural, política e histórica. Aniquilar é, em todos os
sentidos, um romance expansivo, e por isso, a sensação que acessamos todos os seus
meandros numa primeira leitura é falsa, porque entre a simplicidade como a
narrativa se organiza e mesmo por sua objetividade na linguagem, escondem-se
detalhes que, num convívio mais amplo do leitor com texto, favorecem outras
descobertas.
Um exemplo disso é a rica vida
onírica do protagonista. Apesar de situado numa época que, segundo a
psicanálise, a atividade sonhadora permanece inibida, em quase toda
oportunidade de sono Paul se vê envolvido num sonho, algo que só deixa de acontecer
quando a vida, aparentemente transformada num sonho galga caminhos do pesadelo.
Essa contraditória característica da personagem participa no funcionamento de
outra dimensão da narrativa, sua profundidade. Por vezes, se oferecem como
antecipações cujo sentido se viabiliza apenas depois do acontecido — e para o
leitor, não para a personagem, refazendo sua condição de alheado às
determinantes simbólicas para a vida prática. Os sonhos oferecem ainda, indiretamente,
o contato com as múltiplas camadas do interior do indivíduo: seus recalques, os
medos, as angústias, os dilemas existenciais etc. Uma leitura detida dessas
narrativas oníricas certamente amplifica essas variantes, seja pela riqueza dos
campos simbólicos, seja pelas dimensões metafóricas que nelas se encerram.
Mas o sonho, em Aniquilar,
encontra um correspondente inusual fora do plano onírico, nos acontecimentos
sem quaisquer explicações lógicas que também subterraneamente emergem na ordem
social registrada pelo romance: a sequência em crescendo de ataques cibernéticos
com vídeos manipulados em perfeita qualidade real seguidos de atentados contra
alguns epicentros econômicos globais. Esses acontecimentos ligam-se
profundamente com o protagonista do romance por pelo menos duas dimensões: Paul
é funcionário de confiança do ministro da economia francês; é filho de um
figurão que no passado trabalhou para o serviço secreto, um mistério que só
ganha proporções mais complexas devido a situação de saúde deste Edouard.
Embora não seja da alçada do protagonista a descoberta do que parece ser uma
intricada rede contra o sistema político e econômico vigentes, é dele o interesse
pelo desenlace das investigações dado o momento crucial no seu país. Trata-se
das eleições presidenciais que podem garantir a continuidade de um projeto político
do qual Bruno — e indiretamente Paul — é seu representante ou a ascensão da extrema
direita ao poder.
O que o romance de Michel
Houellebecq testemunha é como o sistema democrático se converteu num teatro de
títeres, em que a política colocada a serviço dos interesses das grandes
corporações capitalistas se tornou ineficiente no alcance mínimo do povo. E não
é especificamente, como se nota em países como Brasil, de uma ausência do
Estado — este se nota quase onipresente em todas as camadas sociais pelas quais
transita a lente desse narrador; é, sim, da insustentabilidade de sua natureza
provedora, uma vez tirar com as duas mãos o que oferece com uma. Isso a princípio
se traduz como um certo cansaço ou fadiga da mesmidade, mas logo notamos a teia
de controle do estatal muitas vezes esgana as individualidades dos seus
cidadãos.
Dos vários casos singulares neste
sentido podemos sublinhar dois deles. Sequelado por um ataque cardíaco que o
levou ao coma, Edouard é submetido à política do cuidado num sistema de saúde
que não oferece o serviço adequado porque sua pauta antes da saúde e do
bem-estar é a produtividade e o custo tampouco permite à família a autonomia
para cuidado do paciente. O fossilizado direito ao divórcio, por exemplo, encontra
manobras desafiadoras entre os interessados em submeter o outro ao seu jugo
capaz de transformar a linearidade do processo num vertiginoso labirinto sem
saídas para uma das partes.
Encontradas as saídas clandestinas
— afinal toda lei e toda ordem existem apenas para seu descumprimento —,
esbarramos noutro dilema cuja responsabilidade deixa de ser meramente estatal e
passa a ser individual. Por causa disso, não é possível dizer que o romance de Houellebecq
se situe numa apologia da abolição do Estado porque seu desencanto está
implicado na ineficiência da política frente algumas garantias inalienáveis
para a comunidade agora corrompida pelos interesses de uns poucos, geralmente
bilionários com ideias superlativas em nada interessados no bem-comum. É
singular no romance a reiteração da tecnologia de ponta e o acúmulo desenfreado
de capitais, dois vasos capilares que se expandindo no interior do sistema
social empurra as massas para o mesmo precipício da aniquilação. O romance de
Houellebecq explora isso literalmente e simbolicamente quando o corpo de Paul é
tomado silenciosamente pelo mal que o arrastará para o fim, visto que sua chance
de vida é subtraída sempre que adia para a ocasião oportuna a atitude de
procurar um novo dentista para saber das dores de dente repentinas que o
afligem.
O romance singulariza
metaforicamente como as dinâmicas coletivas encontram-se enraizadas na vida dos
seus indivíduos e o contrário, por isso mesmo embora tais dinâmicas sejam
repetíveis nunca são as mesmas porque circunstanciadas. Isto é, o Estado ignora
isso porque se mostra submetido ao rito circular da ordem. Enquanto ignora seus
parasitas, parece-lhe suficiente entreter a claque com a alternativa de se
descentralizar à proporção de uma política das pluralidades; o que, em parte,
só contribui para ampliar seu esfacelamento. O achatamento do campo político resulta
numa Babel, em que muitos dos representados se queixam da ausência de representatividade
ou ainda os infinitos modos corretos de viver que pouco a pouco apagam as
culturas pela igualação e aniquilam com a própria estrutura coletiva. Ou seja,
são dois movimentos de entropia: a conivência com o aparelho tecnológico-capitalista
e a manutenção da aparência de bem-estar social.
Além da política no seu sentido
mais estrito, em que a indispensável escola francesa da República e da Democracia
se encontra afetada por uma inconstância entre Estado e indivíduo, o romance de
Michel Houellebecq avança sobre os aspectos mais íntimos da vida. Sem
saudosismos ou preciosismos ainda que não deixe de alfinetar pela ironia várias
culturas rivais, isto é, com a dose extra de autoestima dos franceses, o
narrador aplica-se em observar as modificações dos modos de ser do seu povo ou
de certos elementos que constituem um imaginário sobre tais modos: a culinária,
a vida amorosa, o pensamento filosófico, o espírito revolucionário… Nada escapa
e tudo se apresenta corrompido pela escravidão dos indivíduos ao trabalho e ao
virtual e a adoção de uma fajuta vida prática que, agora se reveste de
discursos de retorno ao orgânico, ao natural, ao saudável. Duas coisas parecem
se impor: certa fascização dos comportamentos, quando apenas o correto
são os que se enquadram no imperativo de grupo; e amplificação do estamento
político submetendo todas as demais dimensões sociais a uma só dimensão, o que
é, uma alternativa fundamental para o estabelecimento do capitalismo predatório,
visto que o político se encontra submetido ao econômico.
Acontece que esse território é
bastante fértil para o vigor das ideias extremistas e estas embora tenham suas
raízes no interior do poder político nascem e florescem entre as pessoas comuns
que ora se percebem peças de um sistema redutor ora não encontram nesse sistema
seu campo de representação porque ofuscado pelos discursos que se colocam como a
verdade indissociável dos modelos de direito. O resultado dessas discrepâncias?
A aniquilação. Em certa passagem da narrativa o protagonista se encontra tomado
por uma dessas inflexões que assaltam qualquer indivíduo quando se coloca um pouco
fora das paixões que regem as ideologias: “para Paul era evidente que todo o sistema
ia entrar em colapso, um colapso gigantesco, cuja data e cujas modalidades
ninguém podia prever no momento — mas essa data podia ser em breve e as
modalidades, violentas.” No campo do poder político, em vários países tivemos uma
amostra desse colapso.
E nada é animador. Às tintas apocalípticas
Michel Houellebecq acrescenta outras que alguém pode ler como saídas radicais:
a invalidez do sujeito para a vida comum, quando uma circunstância do acaso
submete o homem a uma prisão de si, como acontece com o pai de Paul; ou a morte,
imprevisível ao lance do tempo ou comandada pelas nossas próprias mãos, quando
se é possível a libertação definitiva desse mundo cada vez mais fragmentado,
encerrado e incomunicável, uma máquina de ampliar as matizes do sofrimento existencial,
como se marca algumas vezes durante a narrativa de Aniquilar. Quer
dizer, não existe redenção, mas sabemos algum caminho, como também nos demonstra
o protagonista, e só resta a nós reencontrá-lo.
Este romance de Houellebecq é um testemunho
do crepúsculo de uma civilização que investiu incansavelmente no seu próprio
fim mas há algum tempo deixou de ser inconsciente do seu gesto. Talvez por isso
Aniquilar ainda que se mostre envolto na turbidez não aposta no fim definitivo;
talvez porque esse seja sempre imprevisível, ou como tem demonstrado os
estágios de crise, uma ponta contínua. Mesmo assim, no interior do niilismo
galvaniza-se um fio que nos cobra certo regresso ao ócio e ao convívio carnal,
quando sobrava mais tempo para o amor e para as coisas que garantem nossa
continuidade como espécie. Quando acordaremos do sonho ou do pesadelo, da
anestesia do futuro, para o presente e a nossa realidade material? Não existem
apostas, nem respostas, e é possível que esse gesto deva ser individual, a
morada ainda possível no conflito de existir.
______
Aniquilar, Michel Houellebecq
Ari Roitman (Trad.)
Alfaguara Brasil (2022)
480 p.
Ari Roitman (Trad.)
Alfaguara Brasil (2022)
480 p.
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