Sátántangó, de László Krasznahorkai
Por Pedro Fernandes
A obra de László Krasznahorkai é
vasta. Situa-se especificamente na prosa e desde 1985 tem se desenvolvido pelo conto,
pela novela, pelo ensaio e pelo romance. Sátántangó é, aliás, o seu
primeiro livro publicado. Esses dados são importantes não apenas porque falamos
sobre um escritor há muito esperado em língua portuguesa mas de quem quase nada
conhecemos, nem da sua obra e porque qualquer leitor dedicado a conhecer os
livros publicados nas últimas décadas, principalmente as estreias de alguns que
o mercado editorial se apressa em vender como a obra mais revolucionária de sempre,
em nada acrescentam à literatura.
É que na Era de Imediatismos — inimigo
fatal para o fazer literário — se tornou cada vez mais raro um escritor já no
seu primeiro trabalho oferecer um objeto singular e consistente. As qualidades
essenciais de Sátántangó respondem por isso, quando reparamos na sua complexidade formal e
estrutural, linguística e sobretudo simbólica, ao convocar, seja pelo
subtendido, seja pelo intertexto, seja pela metáfora, vários expedientes, quais
os da história, os da cultura, os da literatura e os do mito.
Estruturado em duas partes que funcionam
como dois movimentos ora distintos ora intercruzados, o romance é composto por
doze capítulos; os seis primeiros se organizam de maneira ascendente enquanto o
restante perfazem um percurso ao contrário. Essa estrutura cumpre ajustadamente
os princípios da narrativa e isso está entrevisto desde o título. A tradução brasileira
preferiu se manter pela alternativa inglesa — e também pelo recurso empregado
ao nomear o filme de Béla Tarr que contribuiu para a popularização do livro — e
preferiu manter a expressão original que não deixa de remeter para o que, ao pé
da letra, designa, tango de Satã. Os movimentos de ascensão e queda no
tango, que ora apontam para uma elevação ora para a queda trágica, envoltos na
sensualidade peculiar, constituem o tom da narrativa de Sátántangó,
feito de idas e vindas, expectativas e descidas.
Se na primeira parte do romance encontramos
qualquer coisa como uma ordem da narrativa depois que conseguimos determinar
seus fios principais, na segunda acessamos sua caixa de máquinas; o efeito
proposital, como se um avesso, é confrontar a verdade do narrado — ainda que isso
se note sub-repticiamente na parte anterior. Mas nesta ocasião, isso se nota
melhor pela variação do ponto de vista sobre o que lemos e se oferece pelo
menos quatro posições: a do possível autor do relato, um médico que aparece no
primeiro momento enredado por contar o que observa pelo ponto vista estratégico
armado na cozinha de sua casa; a que considera o gesto de salvação de Irimiás
de um grupo de desvalidos no assentamento rural onde se fixam parte dos
acontecimentos; a que desconsidera essa possibilidade; e a em que o relato é
integralmente reescrito por agentes (supostamente da censura) interessados em
tornar politicamente correta a linguagem do narrado.
Obviamente que, se fizermos um
exercício de releitura considerando uma a uma dessas possibilidades
encontraremos sentido para cada uma delas, mas isso não resolverá sobre a verdade
do que se conta, ora pelo relativismo da noção de verdade, ora porque esta seja,
como sabemos, um produto heterodoxo constituído pela variedade de sentidos e
pelo lugar ocupado pelo sujeito da enunciação, isto é, por quem relata. Nos
quatro casos, notamos que esse ponto de vista aparece submetido a algum aspecto
contraditório ao valor da verdade como o acontecido. O médico não tem
acesso a tudo o que passa com os outros; sua visão é limitada ao que vê pela janela
e disso com o que conhece dos vizinhos estabelece uma conjectura mediada por
exageradas doses de álcool. O segundo ponto de vista encontra-se enredado numa perspectiva
niilista, a que, destituídas de tudo, essas personagens habitantes do que
sobrou de um assentamento rural soviético na Hungria, esperam o inevitável fim
presas cada uma nos seus terríveis vícios — o individualismo, a inveja, a
cobiça, a ganância, entre outros. O terceiro é turvado por certo messianismo, a
perspectiva o retorno do alguém capaz de conduzir seu povo para uma condição
restaurada de plenitude; e a última, escrito sobre escrito, é o falseamento
lapidado, muitas vezes a versão que passa para a história oficial.
Mas, o que se narra em Sátántangó?
Sua narrativa se abre com uma circunstância fortuita; também este não é um
romance de grandes acontecimentos e o que projeta para o campo do
extraordinário é efeito das consciências — em nada normais como vimos —
dos seus indivíduos. Fatuki desperta ao som de sinos e, intrigado pela ausência
deles nas redondezas do povoado onde vive, não consegue retornar ao sono. Esse
repicar reaparecerá noutra experiência imaginária, a do médico antes de
descobrir a motivação de suas longas anotações sobre os seus vizinhos. Nos dois
casos, a projeção imaginativa interfere na vida desses homens: no primeiro, os
devaneios pela descoberta dos sinos, salva-o de ser flagrado com a sra. Schmidt
— Fatuki é o amante da vez dessa mulher folgazã; no segundo, afasta-o da
loucura definitiva favorecida pelo isolamento ao levá-lo ao mergulho na escrita
há muito titubeada em anotações diversas.
Aos dois acontecimentos junta-se uma
perspectiva de nascimento, para assinalar outra qualidade simbólica do elemento
em evidência. No caso do médico, a escrita se apresenta para ele como a
materialidade que constitui a vida; nota que tudo que escreve encontra sua
realização demiúrgica fora do tecido verbal. Enquanto escapa do flagra, Futaki
descobre os planos de fuga do casal Schmidt carregando o dinheiro que deveria
ser repartido entre os demais colonos do assentamento, circunstância que se oferece
como possibilidade da almejada vida nova que circula em maior ou menor intensidade
entre os desejos da maioria das personagens na diegese.
O anúncio primordial, entretanto,
é o do retorno de Irimiás. Desaparecido há um ano e meio do povoado e dado como
morto a partir de um boato que se espalha pela boca de Sanyi Horgos, um menino que
se tornará com Petrina, no desfecho do romance, em espécie de seu discípulo. Num
mundo constituído pela falta total de perspectiva, em que mesmo a vontade de
busca e de partida é continuamente transformada em matéria do adiamento, num
mundo feito de espera sem se saber pelo quê, mas por uma vida nova, a novidade
é, em grande parte, aceita como uma oportunidade de novo destino. Uma boa-nova.
E no sentido grego mesmo — εὐαγγέλιον. Irimiás é uma figura complexa e para
alguns, como a crente fervorosa sra. Halics, é um messias ressurrecto; na
opinião de outros, e no movimento da própria tessitura narrativa, a personagem
transita entre o trapaceiro e o salvador, o bom moço e o individualista esperto
aproveitador, entre o líder comunitário e o desonesto de pouca confiança.
Simbolicamente, entre o juiz do juízo final e o próprio Satã.
Toda a narrativa principal de Sátántangó
se desenvolve nesse entorno. Entre o anúncio, a chegada e a partida de Irimiás.
Eis, então, a dimensão principal do tango de satã. Principal porque não
é única. Enquanto esse grupo de desesperançados e maltrapilhos entram em
vigília na única taverna do vilarejo, entre bebida, conversa fiada e outros
passatempos, alguém executa um tango dançado pela sra. Schmidt para a perdição
de todos os homens aí reunidos; espécie de femme fatale, ela é
entrevista e descrita de maneira acusatória como Satã. O leitor não deixará de
notar que ao sentido literal, a narrativa o expande para o simbólico, um jogo
vivaz da prosa romanesca de Krasznahorkai. Voltemos a Irimiás.
No Tanach e no Antigo Testamento,
Jeremias é um dos profetas; seu nome significa o exaltado por Javé, o que
faz nascer. É de sua autoria o livro que carrega seu nome e nele
encontramos as profecias, advertências e doutrinas de seu ministério no sul do
Reino de Judá. Entregues ao pecado e à ignorância dos seus ensinamentos,
Jerusalém é destruída e muito do povo judeu feito cativo dos babilônios. O
evento simbólico encontra-se profundamente relacionado ao que se passa em Sátántangó.
O Livro de Jeremias atesta que a mera presença de Javé com seu povo é
insuficiente se este não cumpre sua parte, a de ouvir a palavra Dele. Também os
habitantes desse assentamento em ruínas submetidos às condições precárias em
que se encontram padecem do conúbio com seus vícios enquanto apostam numa
redenção descarnada.
Ora, os estreitamentos entre a
figura romanesca e a bíblica são variados, extrapolam o plano das personagens e
participam mesmo da própria estruturação do romanesco. No Livro de Jeremias,
o relato, contraditoriamente, se desenvolve na terceira pessoa; de Jeremias mas
escrito por Baruc e os acontecimentos não se encontram em ordem cronológica. Se
admitimos que o relato de Sátántangó é do médico, notamos que ele terá
escolhido também a terceira pessoa, Futaki, enquanto seu plano também não se desenvolve
no tempo do relógio. É singular nesse sentido, a abolição da cronologia pela
destruição do relógio que adquire apenas para satisfazer a vontade de seu médico
que exige constância nos remédios receitados contra sua dependência alcoólica.
Irimiás não é o redentor como esperam
os que se dizem seu povo. Como o profeta bíblico, ele se faz aquele que aponta
a conduta do seu povo. Dizíamos como este romance lida com um efeito de
verdade. E isso, em parte, se deve a um desvio dos sentidos do que se diz. É o
que se encontra num mundo de censura e num mundo sem perspectiva; no último
caso, a ausência impele os indivíduos para o engano que assumem como a última e
única verdade irremediável. Os sentidos obnubilados depositam no além o que se
encontra no próprio ser ou no seu entorno. Isso se passa nesse assentamento
rural. Quando seus habitantes tomam Irimiás como redentor, deixam de notar que
a redenção residia neles e entre eles e foi continuamente subjugado ou negada. É
o que figura a menina Estike, personagem de um dos episódios mais marcantes dos
configurados pela literatura.
A depender de como lemos o papel
de Irimiás nesse romance, é possível que Estike seja apenas o ponto no qual ele
se apoie para convencer os refugiados na taverna a tornar possível sua trapaça.
Mas, na perspectiva contrária, não é gratuito que Irimiás a transforme em vítima
de uma incapacidade de todos, autocentrados ou entregues a certo
transcendentalismo. É notável que nada existe fora do plano das atitudes e
convenções humanas. O mundo de László Krasznahorkai é desfigurado pela ausência
de Deus. Para não escapar ao complexo de símbolos engendrados na obra, os sinos
repicam imaginariamente porque a capela mais próxima do povoado há muito
encontra-se destruída. Mas não é pela ausência de Deus que o mundo do prosador
húngaro se encontra em ruína; é pelo lento e progressivo afastamento do homem
dele próprio e dos outros seus semelhantes.
Krasznahorkai amplia com Sátántangó
essa constatação que a literatura inicia desde o seu alvorecer; afinal, toda literatura
é uma tentativa de compreensão do homem pelo homem e para o homem. Como notará
o médico na febril descoberta que faz do seu “trabalho longo, sofrido, absorvente,
de anos”: com a escrita “seria capaz de se opor ao desafio das coisas que se
apresentavam sempre da mesma forma, mas até certo ponto seria capaz de decidir
acerca do mecanismo elementar dos acontecimentos que aparentavam rodar em
liberdade”. Embora isso não signifique salvação, talvez seja mesmo loucura,
como sonda essa personagem, é essa nossa maneira de estar no mundo não apenas
de passagem. Vale uma palavra a mais, agora, de Irimiás: “há pouco compreendi
que entre mim e um besouro, entre um besouro e um rio, um rio e um grito, com
um grande arco acima dele, não há nenhuma diferença. Tudo funciona num vazio e
sem sentido, numa obrigatoriedade atemporal e num fluxo selvagem, e somente a
nossa imaginação, e não o fiasco eterno dos nossos sentidos, nos levou à crença
de que somos capazes de nos erguer acima da podridão da miséria.”
Bom, os que essas anotações pontuaram foi apenas um milímetro da riqueza que é este romance de László Krasznahorkai. Vale a leitura. Principalmente para o leitor que se conforma (ou se conforta) com certo discurso que virou lugar-comum nos mercado editorial nos nossos dias: o de que o primeiro romance de um autor de seu catálogo é a última das revoluções na milenar arte de narrar. Sátántangó nada tem de revolucionário, mas é um desses excelentes livros que serve muito bem para desarmar certas concepções falsas (ou ingênuas) do que é, verdadeiramente, uma grande estreia literária ou um grande livro.
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Sátántangó, László Krasznahorkai
Paulo Schiller (Trad.)
Companhia das Letras (2022)
Sátántangó, László Krasznahorkai
Paulo Schiller (Trad.)
Companhia das Letras (2022)
232 p.
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