O sussurro do dragão
Por Gisela Kozak Rovero
Qualquer professor de literatura
que tenha ministrado aulas em diversos países sabe que se repete a mesma
situação de desconhecimento da literatura nacional e do cânone, em nítido
contraste com a presença de Star Wars, do universo Marvel, da obra de J.
R. R. Tolkien e, desde então, da apoteótica série Game of Thrones,
baseada na saga As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin. Não
podemos nos livrar de Martin e Tolkien, tampouco de J.K. Rowling, com o fácil expediente
de literatura para jovens e crianças, ao estilo das bem-sucedidas sagas de
vampiros e lobisomens. Estes são universos literários altamente complexos que
excedem em muito a facilidade dos best-sellers no estilo do outrora
bem-sucedido Código Da Vinci de Dan Brown. Em Tolkien, Rowling e Martin,
o grande drama de fundo é o problema do poder, a partir de um olhar que resgata
mitos para explicar o presente e prefigurar uma esperança futura.
Tolkien e Martin resgatam o gênero
épico, sobretudo na vasta escala de representação que inclui grandes confrontos
entre povos e culturas, sem contar a existência de heróis e a subordinação da
vida pessoal ao futuro coletivo. Ambos abominam a modernidade industrial e se
interessam pela gestão política, deixando de lado aquele diabólico produto
iluminista chamado democracia liberal. Preferem que o rei não seja o líder mais
popular, mas o mais justo, o predestinado cujo sentido de vida é descobrir sua
condição, como no caso de Jon Snow, ou aceitá-la, no caso de Aragorn. Têm em
comum o interesse pelo universo simbólico e cultural desse período curiosamente
inesgotável conhecido, sem entrar em detalhes, como a Idade Média.
Tolkien mal toca na presença das
mulheres em O Senhor dos Anéis, um verdadeiro épico homossocial, uma
teia de lealdades masculinas que dura três volumes e tem milhões e milhões de
leitores ao redor do mundo. Seja pelo cinema ou pela lenta construção de
afinidades literárias, Tolkien vive com seu amor inveterado pelo homem comum,
capaz da verdadeira bondade. Inteligência, magia e talento militar são apenas o
instrumento do destino para o pequeno hobbit, vindo de uma idílica
comunidade rural, salvar a humanidade de si mesma. Uma próxima série de televisão
nos levará mais uma vez a esse universo antimoderno em que o sentido da
existência passa pela coragem e pelo heroísmo. Os fãs têm a última palavra, os
simples leitores e os muitos e muitos escritores de fanfiction, assim
como os espectadores dos filmes.
Enquanto isso, As Crônicas de
Gelo e Fogo poderiam começar com as mesmas ressalvas da série de sucesso delas
originada: muito sexo, violência extrema, sangue aos borbotões. E acima de
tudo, um sem-fim de traições e deslealdades, com o condimento picantíssimo de
uma grande história de amor que não é outra coisa que um incesto convicto e
confesso entre dois dos Lannister, uma das famílias que se mete em guerras pelo
trono de ferro. Ao contrário de Tolkien e Rowling, Martin concede um grande
espaço à sexualidade e seu universo não faz concessões em relação à condição
humana, como faz a criadora de Harry Potter e o de O Senhor dos Anéis.
Embora estejamos falando de mundos fictícios pagãos que evitam o cristianismo,
pelo menos Tolkien e Rowling se curvam às virtudes da bondade, reminiscentes de
um mundo de mitologias inglesas tocados pela literatura de cavalaria. Martin é
muito mais cético quanto a isso, convencido de que sua obra é voltada para
adultos, o mais distante possível de qualquer puritanismo ou espírito de
defesa.
As mulheres que atravessam os
sucessivos volumes tornaram-se as mulheres míticas do nosso tempo. Graças à
série televisiva, Cersei Lannister, Arya Stark e Daenerys Targaryen estabelecem
um olhar sobre o poder e a construção da feminilidade que ora tensiona de
maneira extrema o imaginário europeu medieval e sua absoluta predominância
masculina e ora repete antigas representações de mulheres com poder político e
militar presente em várias mitologias. Compreender as motivações sombrias dos
personagens, dos quais ninguém é poupado, nem mesmo Jon Snow e Sam, desafia as
sensibilidades contidas de uma época entre puritana em nome do progresso e
reacionária em nome da ordem.
Embora a série e os romances não
sigam trajetórias idênticas, eles se unem pelo objetivo malsucedido de mostrar
que a Terra está ameaçada por uma catástrofe ambiental, intenção sintetizada na
frase “winter is coming”. Nada está mais distante da literatura do que
os propósitos didáticos. Quem escreve isso se interessava pela série de
televisão que me levou aos romances de Martin pela visão devastadora do ser
humano como criatura que precisa matar para não morrer, além de desfrutar da
maravilhosa catarse produzida pelas sucessivas mortes de personagens infames ou
imbecis. As soberbas atuações, a encenação de um mundo cujas inexistentes
coordenadas históricas e geográficas recuperam a vontade milenar de fugir da
realidade para a vê-la melhor, a maravilhosa música de Ramin Djawadi e o
encanto das narrativas de ação, fizeram-me esquecer as temporadas francamente
medíocres da série para chamar a atenção para suas virtudes.
Encerro a série “A literatura
não é mais o que era”¹ com uma reflexão sobre esse desejo planetário de
criar narrativas transmídia ambientadas em tempos inexistentes, embora possam
ser localizadas devido ao seu poder imaginário baseado no passado. O épico
ainda está vivo nas narrativas transmídia, assim como a poesia lírica ainda
está viva na canção; o romance moderno, aquele que se dedicou a indagar a vida
de homens e mulheres contemporâneos em espaços contemporâneos, dirige-se a
minorias cultas cada vez menores, tal como o cinema de drama adulto que
maravilhava os nossos pais, para não falar da poesia.
Ainda é irônico que as políticas
culturais e educacionais dos Estados no século XX tenham fracassado em sua
tentativa de massificar práticas culturais consideradas elitistas, enquanto
narrativas audiovisuais para todos os públicos foram refinadas para alcançar
sucessos mundiais como Game of Thrones. Essa ironia é ainda maior quando
se verifica a força dos mitos heroicos contra a vontade férrea da história da
literatura e da arte dos dois últimos séculos. Não há dúvida de que a história
sussurra no voo dos dragões de Khaleesi, Daenerys Targaryen, mas o que ela
sussurra soa mais como O conto da aia, de Margaret Atwood, do que a
pregação bem-intencionada de tanta narrativa transmídia que corta as veias pelo
amor à inclusão.
Notas da tradução:
1 A série de textos é composta por este texto e pelos títulos “Literatura, heróis e rebeldia”, “Literatura: censura e boas intenções”, “Século XX: a épica do escritor”, “Literatura e revolução”, “Literatura no século XXI” e “Literatura e ativismo: as novas gerações”; esses textos podem ser lidos também no blog.
* Este texto é a tradução livre para “El susurro del dragón”,
publicado aqui, em Letras Libres.
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