Malraux, Eisenstein e A Condição Humana: o filme virtual, o roteiro invisível
Por Guilherme de Almeida Gesso
André Malraux e Eisenstein. Foto: D. Debaboya. Arquivo Cinemateca Francesa. |
Breve nota
Foi no ano de 2015 que, graças às
pesquisas de Jean-Louis Jeannelle, um texto há muito esquecido saiu das
prateleiras empoeiradas dos Arquivos de Arte e Literatura do Estado da Rússia.
Refiro-me a um roteiro escrito por ninguém menos que André Malraux e Sergei
Eisenstein durante a estadia do romancista em solo soviético, por ocasião de um
congresso de artistas de esquerda.
As 35 páginas datilografadas em
francês, seguidas por desenhos e notas de Eisenstein, só eram citadas en
passant pela crítica, mas nunca de fato lidas, visto que a sonhada
adaptação da Condição Humana não se concluiu. Malogrado em sua aspiração
à imagem, o roteiro nunca recebeu o devido enfoque. O ímpeto de Jeannelle foi
portanto trazer a lume o trabalho conjunto dos artistas e afirmar que uma
“inadaptação” também possui valor estético.
Traduzindo a sequência final do
roteiro, contribuo para renovar a vida desse texto fantasma, pioneiro na
tentativa de levar às telas um romance cujo estilo suscitou várias analogias com
a linguagem do cinema. Passo inicial de uma série de fracassos sempre repondo a
maldição: além de Eisenstein, Fred Zinnemann, Costa-Gavras e Michael Cimino,
por razões que não cabe aqui detalhar, não conseguiram, por seu turno, adaptar
o livro de Malraux.
Na sequência final que ora
apresento, os insurrectos de Xangai estão presos num pátio de colégio. Eles
serão mortos nas caldeiras de uma locomotiva, fecho trágico após o ensaio de
revolução proletária. Ao longo do roteiro, Malraux e Eisenstein suprimem tanto
as críticas à Terceira Internacional, quanto as marcas de trotskismo, ambas
evidentes no romance.
É por esse motivo que Katow agora
se chama Kataro: para driblar a censura, o nome russo vira japonês,
transformação que busca apagar os rastros do acordo catastrófico entre as
lideranças stalinistas e o Kuomintang, partido que viria a massacrar os
revolucionários da China. Esforço em vão: já persona non grata aos olhos
do regime, Eisenstein teve o projeto barrado e penaria cada vez mais para
produzir.
A condição humana: fragmento do
roteiro
Pátio
Camadas de fumaça, do teto até as
vastas janelas já sombrias: cai o dia. O aparelho desce: quatro baionetas que
avançam (as dos soldados) refletem o que resta do dia (elas estão na frente;
atrás, duas outras na escuridão, as silhuetas sobre as janelas). O aparelho
desce mais: duzentos feridos deitados num pátio de escola.
Muitos estão fumando.
Ao
longo das paredes, um espaço de 3 metros de largura está reservado.
KATARO
(entre os feridos cerrados uns contra os outros) — Tem espaço, ali.
Ele
se levanta se apoiando no muro (está machucado nas pernas) e para, ainda
curvado:
Close
de quatro rostos, um após o outro.
Expressão
de estupefação e terror.
VOZ
— Você está louco?
KATARO
— Por quê?
Silêncio.
Close do guarda. Surpreso também.
KATARO — Por quê?
VOZ
— Ele não sabe...
OUTRA
VOZ: Em breve.
3ᵃ
VOZ — Volte a deitar.
Kataro
se deita perto do último que falou.
O
horror — coloca-se lá aqueles que vão ser torturados (voz baixa).
Silêncio.
Gemidos. A porta se abre. Os carregadores de maca trazem os feridos que eles
deixam cair como pacotes ao lado de Kataro.
Silêncio.
Close das baionetas. (Cortar de tal maneira que apenas as armas estejam nítidas
e saiam de uma massa de sombra.) Ao mesmo tempo, som: barulho dos sapatos dos soldados
que marcham. No fim do movimento das baionetas, apito de uma locomotiva.
Silêncio total. Um dos prisioneiros (vizinho de Kataro) deitado sobre o
ventre, crispa suas mãos sobre as orelhas e grita.
Faces
muito confusas. Está cada vez mais escuro. Terror.
Aquele
que gritou se apoia nos cotovelos.
—
Crápulas, assassinos!
A
baioneta que avança.
O
homem que acabou de gritar leva um chute e cai de costelas. O passo do
sentinela se afasta. Enquanto ele vai embora, o homem balbucia sons entre os
dentes que batem. Ouve-se enfim!
—
... Não fuzilam, eles os enfiam vivos na caldeira da locomotiva. É por isso que
estão apitando...
A
porta. É noite completa. As novas baionetas são iluminadas de alto a baixo por
uma lanterna. Entra um oficial. Todos esperam com angústia. O oficial dá ordens
a um sentinela.
Ele
se aproxima, busca.
Para
diante de Kataro.
Manda-o
levantar, quase polidamente.
Ele
consegue com dificuldade.
O
soldado se coloca à sua esquerda, e lhe mostra à direita do fuzil, o espaço
vazio e o muro branco.
Sorriso
amargo de Kataro. Avança.
O
outro o segue com a lanterna. Kataro se aproxima de sua sombra sobre o muro,
até encontrá-la.
Sai
o oficial.
A
porta continua aberta.
VOZ
DE FORA — Seção A!
Um
civil entra.
Porta
fechada.
Os
sentinelas apresentam as armas.
Um
sentinela acompanha o civil, mas agora o xinga: é um prisioneiro. Os outros
sentinelas o xingam também. Ele se aproxima.
É
Kyo.
KATARO
— Você sabe o que nos espera?
KYO
— Eu não ligo, tenho meu cianureto. E você?
KATARO
— Também.
KYO
— Machucado?
KATARO
— As duas pernas. Mas consigo andar.
KYO
— Dá pra sair daqui?
KATARO
— Não. Quase todos os companheiros gravemente feridos. Soldados por todo lado.
Metralhadoras na frente da porta.
Fora,
através dos ramos, o céu com as nuvens que correm.
Xangai
iluminada.
___________________
Os
guardas chegam, 3 Chineses, do lado da porta, multidão de prisioneiros, nenhum
no lado da tortura.
UM — Kataro
KATARO — Quê?
UM — O fuzilamento é perto ou longe daqui?
KATARO — Não sei. Em todo o caso, não se ouve.
VOZ
MAIS DISTANTE — Parece que o executor, depois, tira seus dentes de ouro.
OUTRO — Tanto faz, eu não tenho.
Os
três chineses fumam, nervosamente.
VOZ — Vocês têm muitas caixas de fósforo?
— Sim.
— Me envia uma.
O
primeiro envia a sua. Murmura:
— Morrer não é fácil.
A
porta se abre.
SENTINELA — Enviem um!
Os
três homens se apertam uns contra os outros.
GUARDA — E então, decidam-se!
Um
deles avança, joga o cigarro quase apagado, pega um outro, quebra o primeiro
fósforo, pega o segundo, o acende enfim, e parte com o passo apressado em
direção à porta, abotoando um a um os botões de seu casaco.
A
porta se fecha.
Um
ferido reúne os pedaços de fósforo caídos. Ele e seus vizinhos quebraram os da
caixa enviada pelo primeiro Chinês e tiram a sorte.
Reabrem
a porta.
SENTINELA — Um outro!
O
primeiro e o segundo chinês avançam juntos, se segurando pelo braço.
SENTINELA — Qual?
Silêncio.
SENTINELA — Um dos dois, certo?
Ele
os separa com um golpe de vara. O primeiro está mais próximo dele, que o pega
pelos ombros. O prisioneiro livra seu ombro e avança. Seu companheiro volta ao
seu lugar e se deita.
KYO — Na cidade, há um milhão de homens que pensam em nós com a mesma afeição que
recebem os mortos...
Pega
o cianureto, o segura na mão.
Reabrem
a porta, o guarda avança em sua direção.
Morde
o cianureto.
* * *
Em
Xangai, a vida continua.
Organização
de uma seção de combate com os revólveres roubados do barco.
O
exército revolucionário avança sobre o campo.
* * *
Trazem
dois novos feridos para o lado de Kataro. Apito.
PRIMEIRO
FERIDO — Queimado. Os olhos também, os olhos, você compreende. Ser queimado
vivo...
KATARO — Podemos sê-lo por acidente.
O
segundo soluça.
PRIMEIRO
FERIDO — Não é a mesma coisa.
KATARO — Não, é pior.
PRIMEIRO
FERIDO — Os olhos também, os olhos também... cada um dos dedos, e o ventre, o
ventre.
SEGUNDO
FERIDO — Chega!
O
rosto não pode mais chorar. Ele crispa os dedos sobre o braço do primeiro, bem
perto de uma ferida.
Perto
da lanterna, um dos guardas conta aos outros uma história. Seus corpos fazem
sombra, e Kataro e seus vizinhos são cercados pela noite.
O
rosto de Kataro, sem expressão.
A
sombra.
KATARO — Coloque sua mão no meu peito, e pegue assim que eu tocá-la: vou te dar meu
cianureto.
Só
tem para dois.
A
mão de Kataro com o cianureto. A outra mão que se lança sobre ela como um
animal.
Um
segundo de silêncio.
VOZ
DO PRIMEIRO FERIDO — Perdi. Caiu.
Rosto
de Kataro, sem expressão.
KATARO — Quando?
SEGUNDO
FERIDO — Atrás do meu corpo. Não consegui segurar quando ele me passou: também
estou ferido na mão.
As
mãos que procuram no chão.
Elas
se encontram. A mão do primeiro ferido toca a de Kataro, a aperta (por baixo,
não como um aperto de mão)
VOZ
DO PRIMEIRO FERIDO — Mesmo se não encontrarmos nada...
As
duas mãos se unem. Ao mesmo tempo.
VOZ
DO SEGUNDO FERIDO — Aqui está.
VOZ
DO PRIMEIRO FERIDO — Você tem certeza que não são pedras.
KATARO — Dá!
Ele
pega sua mão que treme. É o cianureto. Ele o devolve.
O
ferido pegou novamente a mão de Kataro. De súbito, a mão se retorce, ele ofega.
Ela relaxa.
Kataro
retira sua mão.
Ele
deita sobre o ventre. Agitação dos ombros.
*
O
exército revolucionário que avança.
As
armas do barco, close.
*
O
oficial volta. Lanterna. Os homens deitados. Massas confusas como túmulos
(projetar túmulos, protuberâncias de terra, dispostas do mesmo modo.) O oficial
segura Kyo, os dois feridos. Os braços caem. Rumor entre os prisioneiros.
Kataro
se levanta.
O
oficial pega uma perna, ela cai.
Cresce
o rumor.
OFICIAL — Mortos!
Ninguém
responde.
OFICIAL — Isolar os 6 prisioneiros mais próximos!
KATARO — Inútil, fui eu que lhes dei o cianureto.
OFICIAL
(depois de um segundo) — E você?
Kataro
dá de ombros.
Rumor
cada vez mais forte.
O
oficial recuou alguns passos, está refletindo.
KATARO
(a seu vizinho, voz baixa) — Vou tentar estrangular um. Eles serão obrigados a
me matar. Vão me queimar, mas morto.
Mas
um dos soldados se aproximou por trás e o agarra com força. Luta — prendem suas
mãos.
KATARO
(voz alta) — Suponhamos que fui morto num incêndio!
Ele
avança.
Silêncio
absoluto.
A
lanterna projeta a sombra de K sobre as paredes e o teto.
Ouvem-se
seus pés, que tocam o chão; ele avança lentamente por causa das feridas.
A
cada vez que seus pés tocam o chão, todas as cabeças dos prisioneiros tremem de
alto a baixo.
Close
dessas cabeças, enquanto o som continua.
Expressões
muito diferentes: afeição, admiração, pavor, resignação.
A
porta se fecha.
Todas
as cabeças tensas.
Silêncio.
Apito.
Adendo
Em entrevista a Jean Vilar
e Françoise Verny publicada na Magazine Littéraire (1971), Malraux revela como Eisenstein
planejava decupar a marcha de Katow/Kataro em direção à morte: “Vocês se
lembram: os prisioneiros vão ser jogados vivos numa locomotiva que tem um forno
enorme [...] São chamados um por um e se dirigem à locomotiva. E Katow, por seu
turno, vai à locomotiva. Ora, ele está machucado e mancando. Havia um plano em
que Katow, mancando com a perna direita mais curta, inclina-se à direita, e o
plano seguinte mostrava um dos exércitos revolucionários marchando sobre Xangai
a partir da direita; Katow faz o passo seguinte [...] e então o outro exército
revolucionário toma Xangai a partir do lado esquerdo. Toda a sequência era
assim, um passo de Katow, um exército, outro passo, outro exército, e
Eisenstein na montagem acelerava o movimento até o momento em que não veríamos
Katow lançado na locomotiva, mas apenas alçado; aí o som do apito significava
que a locomotiva tinha recebido sua presa, e simultaneamente ao apito os dois
exércitos se encontravam e entravam em Xangai. Essa seria a última sequência”.
Referência
JEANNELLE, Jean-Louis. Films sans
images: une histoire des scénarios non réalisés da ‘La Condition humaine’.
Paris: Seuil, 2015.
Comentários