A redescoberta de Halldór Laxness
Por Salvatore Scibona
Halldór Laxness. |
Durante os meses finais da Segunda
Guerra Mundial, o editor Alfred A. Knopf encomendou um relatório do leitor,
consistindo em um formulário em papel azul com algumas perguntas, sobre um
romance traduzido de um islandês chamado Halldór Laxness que entrava no seu radar
de considerações. A seção B do formulário instruía o leitor: “Se você nos
recomenda a publicação do livro, apresente seu principal motivo em uma única
frase”. O leitor respondeu: “Aqueles que lerem este livro jamais o esquecerão”.
O romance, Gente independente,
conta a história de um camponês islandês Bjartur que se renomeia Bjartur de Sumarhúsum em
homenagem à miserável propriedade rural que conseguiu comprar após dezoito anos
de servidão. Nenhum obstáculo de Deus ou do homem o separará de sua
independência, mesmo que ele e sua família se destruam no processo. Diante
desse cenário sombrio, o leitor observou: “Certas passagens são de tamanha
beleza, tão repletas de compreensão da dignidade humana e pathos, tão
ricamente imaginativas, que as quero permanentemente disponíveis para mim,
minha família e meus amigos”. No entanto, se projetavam baixíssimas vendas. O
estilo, os personagens e a atmosfera certamente não eram familiares ao leitor estadunidense.
Knopf publicou o romance mesmo assim.
Em seu primeiro ano, Gente
independente vendeu mais de quatrocentos mil exemplares nos Estados Unidos.
Nove anos depois, Laxness ganhou o Prêmio Nobel de Literatura por “seu vívido
poder épico que renovou a grande arte narrativa da Islândia”. Mas, mesmo depois
do Nobel, o romance que ninguém esqueceria não foi relançado nos Estados Unidos.
Dos sessenta outros livros de Laxness, muitos deles ferozmente admirados em
todo o mundo, quase todos permaneceram indisponíveis no país pelo resto do
século XX.
Como explicar esse longo eclipse?
Alguns estudiosos argumentam que Laxness foi parar, embora involuntariamente,
na lista dos excluídos. Socialista convicto e defensor da independência da
Islândia (conquistada em 1944, quando, após séculos sob a monarquia
dinamarquesa, se declarou república), Laxness condenou a entrada do país na
OTAN, em 1949. Um documentário que examinou sua reputação nos Estados Unidos, Anti-American
Wins Nobel Prize, foi produzido em 2011, tirando o título da manchete
de um jornal estadunidense da época. O estudioso Chay Lemoine demonstrou que J.
Edgar Hoover autorizou uma investigação sobre os royalties de vendas de
Laxness na casa editorial de Knopf, sob a suspeita de que ele os estava usando
para apoiar os comunistas islandeses.
Outros sugerem explicações mais
prosaicas. A esmagadora maioria das vendas de Gente independente
resultou de sua seleção pelo Clube do Livro do Mês, e não de uma chama de
entusiasmo espontâneo nas livrarias.
Tudo isso mudou em 1995, quando o
escritor Brad Leithauser publicou um ensaio sobre Gente independente na The
New York Review of Books que significou no âmbito da língua inglesa um renascimento do trabalho de
Laxness, algo ainda em curso. “Existem bons livros e ótimos
livros”, começou Leithauser, “e pode haver um livro que é algo ainda mais: é o
livro da sua vida”.
Dois anos depois, a Vintage
International publicou uma nova edição de Gente independente que está
agora [n.t. em 2022] em sua trigésima sexta impressão. Uma nova edição em capa
dura foi lançada em 2020. Desde 1998, quando Laxness morreu, em uma casa de
repouso na Islândia, aos 95 anos, Vintage publicou seus romances Heimsljós,
Paradísarheimt, Íslandsklukkan, Kristnihald undir Jökl e Brekkukotsannáll
em edições padronizadas, cada uma com sua própria cor brilhante, como os
telhados de ferro pintado das aldeias costeiras da Islândia.1 Mais
recentemente, a Archipelago publicou as traduções de Philip Roughton dos romances
Vefarinn mikli frá Kasmír e Gerpla.2 Quando Leithauser
escreveu seu ensaio, quase todo o trabalho de Laxness permanecia inédito nos Estados
Unidos ou estava esgotado havia décadas. Mas desde quando
Archipelago publicou a nova tradução de Roughton para Salka Valka — uma
maravilha emocionante e a ficção mais substancial de Laxness — todos os
principais romances do escritor ficaram disponíveis pela primeira vez para os leitores de língua
inglesa.
O pai de Halldór Laxness foi criado numa congregação:
se você fosse filho de pais carentes, as autoridades locais o entregaria a
uma família mais abastada, que o colocaria para trabalhar em sua propriedade.
Como muitas coisas na Islândia do século XIX, onde o vidro estava apenas
começando a substituir a placenta de vacas como material para vidraças, tais
arranjos permaneceram praticamente inalterados desde a Idade Média.
Aos vinte anos, o menino pobre
havia se tornado um “homem livre”, um diarista disponível para trabalhar por um
salário. Sua diligência numa equipe de construção de estradas o promoveu a feitor.
Conheceu uma jovem empregada como lavradora cujo pai havia morrido quando ela
tinha dez anos. Dos seis filhos de sua mãe, apenas esta menina sobreviveu até a
idade adulta.
O homem livre e a mulher se
casaram e se estabeleceram em Reykjavík. Em 1902, ela deu à luz um menino em
quem um gato pulou no berço para arranhar seu rosto. Por sua ofensa, o gato foi
enforcado. Quando o menino, chamado Dóri, tinha três anos, a família mudou-se a
cavalo para cerca de dezesseis quilômetros a leste, para uma fazenda chamada Laxnes.
O menino contraiu poliomielite, mas se recuperou, embora isso o tenha deixado
com uma gagueira permanente. Quando seu pai chegava do trabalho, ele se sentava
perto da janela e ao crepúsculo tocava violino.
O menino tinha uma paixão
diferente: escrevia sem parar. Durante dez horas por dia. Ele não demonstrava interesse pelo trabalho agrícola e, por motivos que ninguém conseguia explicar,
seus pais o deixavam ficar em casa, em sua escrivaninha.
Um dia, em Laxnes, um homem bateu à
porta, procurava instruções para chegar a uma cachoeira próxima. Ninguém
respondeu. Ele continuou batendo até que um menino de doze anos apareceu.
“Infelizmente não tem ninguém em casa”, disse o menino, para surpresa do homem.
Afinal, o próprio menino estava em casa. Todo mundo estava fora na lida com o
feno. O homem perguntou por que o próprio menino não estava trabalhando com os
outros. “Eu?” o menino perguntou, perplexo. “Estou escrevendo!”
O menino se chamava Halldór
Guðjónsson. Aos treze anos, terminou de escrever um romance de seiscentas
páginas. Guardou o manuscrito. Aos dezessete anos, terminou outro romance e arranjou alguém
para imprimi-lo. Um dia antes de revisar as provas, voltou para casa de
Reykjavík, onde estudava, para um serviço comunitário na igreja local e se
encontrou com o pai. Quando eles se separaram, o pai estendeu a mão. “Deus te
abençoe agora, querido Dóri”, ele disse. Em duas semanas, seu pai morreu de
pneumonia.
Um mês depois, o menino embarcou
em um navio a vapor com destino a Copenhague. Quando chegou à cidade, carregava
consigo alguns cartões de visita impressos. Ele prendeu na porta de morada. Dizia
“HALLDÓR DE LAXNES, POETA”.
Apenas uma grande biografia do
escritor que se autodenominaria Halldór Laxness existe em inglês: The
Islander, de Halldór Guðmundsson, publicada em 2008 no Reino Unido, mas
nunca nos Estados Unidos. Embora seja uma versão resumida do original islandês, a
biografia fornece um relato vívido, incluindo a estonteante sequência de
viagens que Laxness começou depois de quando saiu de casa.
Na Dinamarca, Laxness cobria suas
despesas com histórias que escrevia para jornais e com alguma remessa enviada pela
mãe do que ganhava fazendo tricô. Ele foi para a Suécia para ler Strindberg, se
fez passar por barão na Alemanha e na Áustria e navegou para Nova York, onde
foi impedido de entrar por falta de documentos. Teve um filho ilegítimo na
Dinamarca, embora não soubesse disso até já ter ido para Luxemburgo, onde se
converteu ao catolicismo, entrou para um mosteiro beneditino e parou a formação pouco
antes de receber as Ordens Sagradas. Passou algum tempo na França, Inglaterra,
Noruega, Roma, Sicília, Canadá. Aos 25 anos, já havia publicado quatro livros. Sabia
dinamarquês, inglês e alemão e estava aprendendo sozinho russo, francês e
latim. A sua escrita íntima dessa época revela duas recorrências: a grandeza
narcísica e a autodúvida aniquiladora. Numa carta, declarou: “Eu me tornarei um
grande escritor aos olhos do mundo ou morrerei!” Em seu diário, escreveu: “Com
exceção de ser orgulhoso e ter sonhos vazios de ser um super-homem, não sou
nada”.
Determinado a entrar no cinema, foi
para Hollywood, onde escreveu um roteiro chamado “Salka Valka” ou “A Woman in
Pants”, com Greta Garbo em mente para o papel-título. O filme tinha boas
perspectivas de ser produzido pela M-G-M, até que Laxness desentendeu-se com o
estúdio sobre a ideia de ambientar o filme não na Islândia, mas em Kentucky.
A quebra da economia estadunidense
em 1929 convenceu Laxness sobre a verdade do socialismo. Ele desistiu de
Hollywood e voltou para a Islândia. Algo parecia ter amadurecido nele. Tendo
viajado e estudado as línguas das grandes potências, começou a escrever com
expansividade e confiança, na língua de sua pequena nação, os romances épicos, seriados
e tragicômicos de islandeses em dificuldades que fariam seu nome.
O destaque entre as obras desse
período é Gente independente, ambientado em meio a uma pobreza chocante
que engendra nos personagens uma dureza que beira a crueldade. Quando, por
algum milagre, a velha vaca solitária em Sumarhúsum dá à luz um bezerro, a
família de Bjartur se apega ao animal e parece ter esperança pela primeira
vez, até que uma manhã depois Bjartur a mata de maneira prática e acorda as
crianças com uma ordem para limpar suas tripas da calçada enquanto se dirige à
cidade para vender sua carcaça.
As descrições severas de Laxness
da vida rural não lisonjeavam a autoimagem modernizadora da Islândia. Quando o
romance foi lançado, um dos políticos mais proeminentes do país acusou o escritor de “levantar velhas e perdidas bandeiras de opressão” e “trabalhar contra seu
próprio povo”. Por sua grafia pouco ortodoxa e uso de neologismos, outros
acusaram Laxness de ser um “abusador da linguagem”. Isso não era uma questão insignificante
em um país cuja defesa da independência da Dinamarca se baseava em parte no uso
praticamente inalterado da antiga língua dos vikings.
Em 1954, ele se casou pela segunda
vez, teve quatro filhos, construiu uma casa para sua família nas antigas terras
de seu pai em Laxnes e tornou-se famoso fora do país. No ano seguinte, quando
ganhou o Nobel, tinha apenas 53 anos. Um trabalho notavelmente variado ainda
estava por vir. Tanto seus compromissos ideológicos quanto os gêneros em que
trabalhou continuaram a evoluir. Na década de 1960, ele renunciou ao stalinismo
e se identificou mais intimamente com o taoísmo. Ele se voltou para a
dramaturgia, depois para as memórias. Para qualquer escritor propenso a
bloqueios criativos, Laxness é um exemplo assustador. Ao longo da vida,
escreveu com a força incansável de um tubarão nadador.
Se muitos leitores chegam a
Laxness pelo cenário de uma terra exótica, geralmente permanecem com ele pelos
personagens, mais especificamente pela qualidade de sua atenção para com eles —
perto o suficiente para simpatizar com seus anseios mais íntimos, mas de alguma
forma distante o suficiente para rir deles. Todo mundo faz coisas tolas e todo
mundo tem uma alma. Uma de suas frases mais citadas ocorre depois que uma
garota desesperada em Gente independente dá lugar aos soluços, e seu
irmãozinho, ao confortá-la, vê pela primeira vez o labirinto de outra alma: “A
fonte da grande canção é a simpatia.”
Mas quando um leitor que conhece
Laxness apenas de Gente independente se depara com sua escrita política
contemporânea, na qual meros seres humanos parecem não valer nada em comparação
com o sucesso do projeto socialista, a dissonância cognitiva é suficiente para
derrubar o sistema operacional da mentalidade.
Inúmeros intelectuais ocidentais
compartilhavam de sua paixão pela União Soviética, mas poucos haviam
testemunhado os expurgos em primeira mão, como ele. Laxness compareceu aos
infames julgamentos-espetáculo de Moscou em 1938, onde todos, exceto três dos
vinte e um réus, incluindo Nikolai Bukharin, foram considerados culpados e
condenados à morte.
Um dia depois dos veredictos,
Laxness foi convidado para jantar no apartamento de sua amiga Vera Hertzsch,
uma devota comunista. Por volta da meia-noite, bateram à sua porta. Enquanto
Laxness assistia, a filha bebê de Hertzsch foi tirada dela com a promessa de
que seria enviada para um orfanato. A própria Hertzsch foi levada para o gulag.
A filha desapareceu dos registros públicos e presume-se que tenha morrido pouco
depois. Hertzsch morreu em um campo de trabalho cazaque em 1943.
No entanto, diante do que vira,
Laxness ainda voltou para casa na Islândia e terminou de escrever Gerska
æfintýrið [The Russian Adventure], um diário de viagem da propaganda
stalinista que incluía seu relato maravilhado dos julgamentos. Ele está tão
maravilhado com a luta política que os julgamentos representam, escreveu ele,
“questões como a ‘culpa’ legal ou moral dos conspiradores ou a punição que
esperava cada um deles pessoalmente torna-se uma questão menor, sem interesse
para mais debate.” Este é um homem ironicamente zombando de um espetáculo
assassino ou aplaudindo? Ou ele manteve os sentimentos que havia escrito em uma
carta alguns anos antes: “O que são as massas senão barro nas mãos de mentes
superiores? Eles não passam de matéria-prima, no máximo ferramentas para
iniciar eventos de importância mundial.”
Sua posição política afetou sua
carreira e levou a erros em sua reputação que persistem até hoje. Ernest
Hemingway ganhou o Prêmio Nobel um ano antes de Laxness. O Times
escreveu sobre os dois favoritos: “O fato de o Sr. Laxness ter recebido o
Prêmio Stálin de Literatura pode ter influenciado a votação no Sr. Hemingway.”
A alegação de que Laxness havia ganhado o Prêmio Stálin ganhou popularidade. O Times
repetiu isso em seu obituário, em 1998. Susan Sontag o incluiu em sua
introdução da Vintage de seu romance tardio Kristnihald undir Jökli [Under
the Glacier].
Laxness não ganhou tal prêmio. Ele
também não ganhou o Prêmio Stálin da Paz, como outros alegaram erroneamente.
Nenhuma fonte russa disponível, incluindo o Pravda, que parecia relatar
todos os seus movimentos na época, o liga a qualquer um desses louros.
Guðmundsson insiste que os prêmios são uma ficção e aponta para uma medalha que
Laxness aceitou em Viena de um conselho de paz afiliado aos comunistas como uma
possível fonte do boato.
Em nenhum lugar dos romances de
Laxness o conflito entre o brilhante ideal do socialismo e a dignidade individual
das pessoas é mais claro do que em Salka Valka, escrito depois que o
filme de mesmo nome fracassou. Agitando com “vitalidade indisciplinada”, a
jovem Salka chega com sua mãe uma noite em uma vila costeira. Salka tem uma
“voz profunda, quase masculina”. Alta e forte, ela está determinada a comprar
em breve para si um par de calças “e deixar de ser uma menina”. Quando o
mestre-escola pergunta quem é o ministro que governa todos eles na Islândia,
ela responde: “Ninguém vai me governar!”
Para leitores cujo apego a
Offred, em O conto da aia, os levaram a tatuar “NOLITE TE BASTARDES
CARBORUNDORUM” em seus braços, Salka Valka é para vocês. Nunca ocorre a
Salka que os bastardos possam esmagá-la.
Todos falham com essa garota,
especialmente sua mãe, Sigurlína, que se esquece de protegê-la das predações de
um bêbado vaidoso, Steinþór Steinsson, com quem Sigurlína está desesperada para
se casar. Depois que Sigurlína engravidou dele, Steinþór tenta agredir Salka e
é descoberto. Ele escapa da aldeia, apenas para retornar alguns anos depois.
Sigurlína o quer de volta e planeja um grande casamento, mas Steinþór está lá
apenas para atacar Salka, agora com catorze anos. Depois que Salka luta com ele
outra vez, ele deixa a mãe dela para sempre. Desesperada, Sigurlína se afoga e
Salka fica sozinha.
A única outra versão em inglês de Salka
Valka, que saiu em 1936, teve que ser preparada uma adaptação da tradução
dinamarquesa. Laxness não gostou. “Cinquenta por cento do meu estilo
desapareceu”, reclamou. No entanto, Salka Valka foi um sucesso no Reino
Unido, onde o Evening Standard escreveu que estava “repleto de capa a
capa com a beleza da perfeição”; no entanto, nenhuma edição ficou disponível nos
Estados Unidos desde a Grande Depressão.
Roughton fez sua versão do
islandês. Mesmo em momentos de grande drama, ele se move com calma e segurança,
lançando as descrições inventivas e sempre certeiras de Laxness como se fossem
lugar-comum, como quando, em um penhasco, os papagaios-do-mar “agachados com a
dignidade de oficiais da igreja na frente de suas tocas.” Ele capta o tom
singular e divertido de Laxness com uma graça incrível. Depois da morte de sua
mãe, Salka caminha sozinha sob as montanhas e enfia uma bala de menta na boca
para se consolar “neste clima de Páscoa cinza, nada fantástico e sem sentido”.
Salka Valka foi publicado na
Islândia em dois volumes, em 1931 e 1932. Quando a segunda parte saiu, trazia o
subtítulo “Fuglinn í fjörunni” [A Political Romance]. Um jovem intelectual
local, Arnaldur, foi para a escola no sul e voltou para casa para incitar uma
revolução comunista na pequena aldeia. Salka, apesar de sua autossuficiência,
fica caída por este homem que promete liderar uma ditadura do proletariado.
Aqui o leitor se prepara para o agitprop.
Evidentemente que, também os
nazistas, depois que Laxness assinou um contrato para publicar Salka Valka
em alemão, o consideraram “sinistro” e o baniram. Os soviéticos também se
recusaram a publicá-lo, alegando que Arnaldur era um covarde da causa. Após a
guerra, os pretensos editores do romance na Alemanha Oriental comunista pediram
a Laxness que mudasse o final por uma questão de conformidade ideológica. Ele
se recusou, dizendo que os editores em Moscou haviam lhe dito: “‘Nosso povo
nunca viu comunistas como Arnald.’” E respondi: ‘Claro que sim, mas vocês os
enforcam.’” (O romance acabou saindo em alemão, russo e pelo menos outras vinte
línguas.)
Uma pesada mão ideológica paira
sobre a segunda parte do livro. Mas, se o problema com a ideologia em um romance
é sua tendência de arrastar os personagens pelas rotas que ela prescreve, Laxness
permite que sua heroína escolha que a luta é uma chance de melhor escolher seu próprio caminho. Os argumentos revolucionários que galvanizam sua
aldeia são tão violentos quanto a neve que inunda as casas em ruínas; Salka
leva essas ideias a sério, mas, apesar do que pode parecer o desejo de Laxness
de que ela consiga com o programado, ela nunca age como qualquer ideologia
exige. Ela passa a possuir uma parte de um barco de pesca, e seus interesses
competem com os dos trabalhadores em terra. As apostas agora são mais do que
seu próprio ganho. Ela tem que sustentar um bando de crianças desnutridas que
acolheu. O porta-estandarte comunista Arnaldur teria deixado as crianças
morrerem, e diz isso. “Não passa de sentimentalismo burguês e hipocrisia para
ajudar os indivíduos”, declara. Salka o acusa de ser nada além de uma doutrina,
“e uma doutrina falsa além disso. Quando você abrigou sentimentos humanos por
uma única alma?”
É impossível separar qualquer
romance de Laxness do legado das sagas islandesas, as grandes histórias
selvagens escritas em prosa sobre couro de bezerro durante o início dos anos
1200, antes que muitas línguas modernas tivessem qualquer literatura. Não
conhecemos os autores de quase nenhuma das sagas. Entre os dispositivos que os
distinguem está um ponto de vista que parece vir do conhecimento compartilhado
da humanidade aplicado a determinados agricultores em determinados fiordes. Laxness
é um herdeiro da forma e de seus tropos, que ele pode usar para rir ou sentir
pena. Sobre a primeira chegada de Salka e Sigurlína à aldeia, ele escreve: “A
neve caiu direto em seus rostos, como sempre acontece com essas pessoas”. Sobre
o momento em que Salka descobre que a mãe gastou todo o seu dinheiro, ele
escreve: “Poucas visões são tão peculiares quanto a de uma garotinha em uma
jaqueta masculina esfarrapada, com um cordão em volta da cintura, chorando em
um lance de escadas em uma pequena aldeia à beira-mar quando o crepúsculo
começa a cair.” Quem está dizendo isso? Nenhum dos personagens. Mas também não
é o próprio Laxness. Lê-lo é lembrar que o narrador de qualquer romance é uma
invenção tanto quanto seus personagens. Mas um tipo engraçado de invenção.
Longe de fazer parte da mente do escritor, participa de uma genialidade, quando
as coisas vão bem, que o próprio escritor não possui.
Uma vez que o narrador inventado
começa a falar na página, qualquer ponto que um escritor possa ter esperado
dramatizar pode parecer desesperadamente secundário. Laxness parece ter feito
essa mesma descoberta várias vezes. Suas opiniões eram menos interessantes e,
paradoxalmente, menos verdadeiras do que os produtos fictícios de sua
imaginação.
Laxness certa vez escreveu em uma
carta que se sentia “como um homem que está remando para salvar sua vida em um
pequeno barco em mar aberto”. Se essa imagem transmite a solidão fundamental do
romancista, bem como sua estranha crença de que, sentado em uma sala silenciosa
enquanto o radiador quente bate e a neve cai lá fora, ela está envolvida em uma
questão de vida ou morte, também transmite a sensação que você tem de ler
Laxness: que, apesar de sua demonstração de facilidade travessa, ele está dando
a seu livro tudo o que tem na esperança de que o exceda.
Notas da tradução:
1 Em língua inglesa World Light, Paradise Reclaimed, Iceland's
Bell, Under the Glacier e The Fish Can Sing, respectivamente.
Possivelmente, apenas dois títulos de Halldór Laxness estão traduzidos no
Brasil: o citado Gente independente e A estação atômica.
2 “The Great Weaver from Kashmir” e “Wayward Heroes”.
* Este texto é a tradução livre
para “The Rediscovery of Halldór Laxness”, publicado em The New Yorker no dia 4 de julho de 2022.
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