A arte de adaptar: Ruído branco
Por Cristina Aparicio
“Coloque o filme.”
Assim começa Ruído branco, o
mais recente longa-metragem de Noah Baumbach: com um imperativo, um pedido que
serve de ponto de partida para a tradução cinematográfica do romance homônimo
de Don DeLillo. Embora talvez “traduzir” não seja o verbo adequado para se
referir ao trabalho inusitado e milagroso de adaptar para a (grande?) tela um
livro cuja natureza ziguezagueante tornava improvável que se transformasse com
sucesso em um objeto cinematográfico. Mas é justamente a condição imersiva e
rizomática do texto original que permite ao cineasta compor um filme atípico
que transita por gêneros de natureza muito diferente como um ousado
equilibrista. Embora seja verdade que existe uma fidelidade quase absoluta ao
romance, as verdadeiras façanhas do filme se encontram em algumas de suas
mudanças mais notórias. E é no início da narrativa fílmica que ocorre uma
dessas grandes características.
Um professor no escuro, com a
única luz do projetor que reproduz múltiplas imagens de acidentes de carro, oferece
uma aula magistral para um grupo de universitários. “Acidentes de carro em
filmes não são violência”, explica. “Eles fazem parte de uma longa tradição de
otimismo estadunidense. Uma reafirmação de valores e crenças, uma comemoração.
Vejam esses confrontos como o Dia de Ação de Graças ou 4 de julho. Portanto,
não lamentamos os mortos nem louvamos os milagres. São dias de otimismo laico,
de exaltação de si mesmo.” Baumbach situa essa palestra universitária antes que
surja na tela a imagem com que DeLillo inicia seu livro: uma fila de carros
avançando em caravana.
Dessa maneira, cria-se um prólogo
que sintetiza a essência de tudo o que está para acontecer. Uma espécie de
otimismo ingênuo, naif, anestesiado. Uma descrição elevada à cátedra que
prega os modos de vida estadunidenses com base em suas preferências de consumo.
Assim, na relação absurda entre os acidentes simulados e a forma como são
consumidos pelo público, surge também a questão cinematográfica. Afinal,
Hollywood codifica a realidade através da maneira como os diretores estadunidenses
mostram certos eventos reais para agradar ao público: “Finge-se em qualquer uma
dessas colisões nos filmes americanos. É um momento de euforia (…). As pessoas
que as encenam transmitem despreocupação, um gozo despreocupado que os filmes
estrangeiros não alcançam. Podem dizer: ‘Mas e o sangue e os vidros, os gritos,
os corpos esmagados? Que otimismo há nisso?’ Eu digo, vejam além da violência. Existe
um espírito maravilhoso repleto de inocência e diversão.” Ver além da
violência, da espetacularização, do drama, do realismo... Esse é o desafio, cruzar
a fronteira do racional, triste ou doloroso para chegar ao puro entretenimento.
A sociedade do espetáculo
Don DeLillo publicou Ruído branco
em 1985 — uma obra que disseca o american way of life enquanto critica o
rumo da sociedade de consumo, capitalista, agnóstica, descrente, hiperinformada
e pré-Trump, prevendo um cenário distópico que hoje, quase quatro décadas
depois, revelou-se mais histórico do que fantástico. Porque os anos oitenta
foram precisamente a porta de entrada para o mundo moderno. Ou melhor, para o
pós-moderno: radical uma transformação das estruturas sociais, intelectuais e
artísticas, que resultou no aumento das neuroses, da individualidades e do
espetáculo. E se DeLillo se distanciava da crítica contundente por meio da
sátira, Baumbach por sua vez opta por não banalizar um tempo que, na verdade,
também é seu, mas o faz por meio de imagens. Aí estão, de fundo, as grandes
narrativas que são hoje também os centros de interesse de um ser humano
angustiado, massificado, até histriônico, que vive em uma persistente
contradição alimentada pela sociedade capitalista. O ser humano como
resistência.
É essa contradição que funciona
como catalisador do absurdo em Ruído branco: a dissonância que se produz
entre o que deveria ser e o que é; a assunção de papéis dentro de uma família,
de um sistema. Sim, de um sistema. Porque embora Baumbach pareça se
especializar em retratar a família disfuncional da classe média, aqui ele se
vale dela para poder compor um discurso sobre as massas, sobre a luta dos indivíduos
para manter sua identidade: uma luta que aqui se materializa em uma tensão
contínua dos elementos formais que se sobrepõem em tela.
Assim, na cena mais impactante do
filme, as imagens do confronto dialético entre professores (que igualam a vida
e a obra de duas figuras notórias, mas opostas, como Elvis e Hitler) se
intercalam com as do acidente de trem que serve de epicentro do segundo
capítulo. “Vazamento tóxico para atmosfera”.
Uma combinação frenética, até caótica, onde não há indício de nitidez. Pelo
contrário: a paixão de ambos os discursos se funde com o pânico diante da
iminência da catástrofe ambiental.
E a coisa não acaba aqui, porque
quando são introduzidas as imagens das câmeras de televisão que registram o
debate acadêmico, aparece aquele outro elemento tão característico dessa
espetacularização: o simulacro. Trata-se, então, do equivalente visual do ruído
acústico. O cineasta constrói um impressionante artefato fílmico para
exemplificar essa presença que, ao deixar de lhe dar atenção, por acúmulo,
insistência, superexposição, acaba se tornando um pano de fundo, um contexto.
Ondas e radiações que fazem parte do background, mas desta vez em
formato visível.
“E se a morte não for mais que
um som ouvido para sempre?”
Mas qual é o verdadeiro ruído branco?
Para Don DeLillo, seu romance era uma comédia sobre medo, a morte e a
tecnologia: três conceitos inter-relacionados que também são a espinha dorsal
do filme. Como vimos, desde os primeiros momentos o filme se instala em uma
posição muito específica: a banalização da morte. Baumbach introduz uma
corrente de pensamento com a qual identifica a psicologia das massas, mas o faz
com a convicção de que é uma posição tóxica, tanto quanto como a sociedade de
consumo a concebe.
Assim, o medo, um sentimento tão
verbalizado no romance, surge aqui seguindo os códigos do terror, com cenas que
remetem diretamente ao gênero (incluindo jump scares), revelando a
importância que acaba tendo na narrativa. A morte será a espada de Dâmocles que
não impede que o filme se agarre ao seu estatuto de sitcom familiar,
sátira social, crítica de consumo ou conto costumbrista. É o abismo que sempre
faz parte da paisagem e que converte em estranhamento as cenas cotidianas, os
diálogos e os vínculos entre esses pais e filhos.
A esta altura, com a morte sempre
presente, as contradições como ideologia e o espetáculo como estética
cinematográfica, nada mais resta senão aceitar o presente com suas ondas
radioativas, com seu acúmulo de imagens, histórias e neuroses. Aceitar que o
cinema, que se toma tão a sério como os seres humanos e suas misérias, deve se
tornar um pastiche irônico, retrô e pop que valoriza a produção da
nostalgia. Aceitar que talvez a melhor forma de resistir a esse mal tão humano,
a essa vertigem, a esse ruído branco que é o medo de morrer, seja dançando
pelos corredores de um supermercado.
* Este texto é a tradução livre para “El
arte de adaptar: ‘Ruido de fondo’”, publicado aqui, em Jot Down.
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