Um homem só, de Christopher Isherwood

Por Pedro Fernandes

Christopher Isherwood. Foto: Michael Childers


 
Depois das experiências romanescas de Virginia Woolf e de James Joyce, multiplicaram-se os romances que se utilizam de uma narração cujo tratamento de dilatamento do tempo se mostra propícia ao testemunho sobre as experiências comuns de uma circunstância ou um dia corriqueiro na vida de uma personagem trivial à maneira de evidenciar simbolicamente toda uma existência. De alguma maneira, Um homem só, de Christopher Isherwood dialoga, chamemos assim, com essa tradição, uma vez acompanharmos um dia na vida de George, tempos depois de quando recebe a notícia sobre a morte trágica de Jim, com quem estabeleceu longos anos de convívio.
 
Como nos outros casos reconhecidos na literatura, por entre o itinerário que se inicia com o despertar de George e finda com a hora de dormir, passa-se a rotina recorrente na vida dessa personagem, seu trabalho como professor, as trivialidades exercidas por qualquer pessoa e os encontros desenvolvidos nesse dia; por entre esses episódios se desenvolvem, em fluxos de consciência ou através dos diálogos estabelecidos com outras personagens, o ponto de vista de George sobre os seus arredores, incluindo os estranhamentos com o mundo heteronormativo, os afluxos de desejos por outros homens, certa repulsa para com um mundo em complexa transformação, e alguns acontecimentos do passado, especificamente o primeiro encontro com Jim, algo da convivência dos dois, o desenvolvimento do acaso que o levou para a morte e as tentativas do protagonista em superar certo vazio que de alguma maneira se amplifica aquando da morte.
 
Mas, para uma leitura acertada do romance — entre as várias possíveis para os verdadeiros produtos literários — é importante recorrer não especificamente a esse modelo de romance marcadamente interessado no dia de uma figura comum e sim noutro livro citado a meio da narrativa durante a aula de George. O professor inicia a discussão com seus alunos acerca de Também o cisne morre, de Aldous Huxley. O cerne da sua provocação é que eles possam descobrir qual o assunto desse romance a partir da exploração de outras referências sugeridas pelo texto. O título de Huxley é proveniente de um verso do poema “Tithonus”, de Lord Tennyson; a figura-título deste texto, por sua vez, remete para o mito grego. Depois de várias sugestões atiradas pela turma, a aula toma outro rumo e finda sem descobrirmos a resposta buscada por George.
 
Ora, isso parece o melhor indício de leitura deixado pelo narrador de Um homem só; tal como George para os seus alunos, este romance espera que alcancemos, através dessas pistas, qual seu sentido essencial. Primeiro, esclareçamos a narrativa de Também o cisne morre, embora isso seja de alguma maneira explicada pelo próprio romance: um milionário californiano dos anos 1930 que tem medo de morrer busca numa espécie de charlatão inglês que descobriu uma maneira de prolongar a existência; à maneira de Titono, por quem Aurora se apaixona e recorre a Zeus pela eternidade do amante deixando de lhe pedir a eterna juventude, o fim dessa personagem de Huxley também se é feito com uma nota de horror. A leitura de Sérgio Augusto apresentada no prefácio da edição brasileira do romance de Aldous Huxley esclarece que esta é “acima de tudo uma parábola da loucura americana, do delírio arquitetônico de Los Angeles”, isto é, seria essa uma obra que examina detidamente um modelo cultural que mexeu demais com a percepção do escritor inglês recém-chegado aos Estados Unidos: fosse o narcisismo, a superficialidade e a obsessão com a juventude daquela sociedade. Recordemos que Também o cisne morre foi publicado em 1939, apenas dois anos depois de quando seu autor se mudou para o novo país fixando-se, tal como Christopher Isherwood na Califórnia.
 
Enquanto em Aldous Huxley esse modelo cultural é transportado para um narrativa que estabelece diálogo com a ficção científica, em Um homem só, todas essas fixações são colocadas sob o  ponto de vista de seu protagonista, um inglês que não guarda quaisquer resquícios do modelo cultural de origem, quem, chega mesmo a simpatizar com o senso prático da vida estadunidense e a redução deste país a certo senso de praticidade — que ele interpreta como uma condição muito à frente do europeu de ressimbolização da existência, mas não deixa de reparar com inquietação política as aceleradas transformações experimentadas na periferia de Los Angeles, inicialmente pensada como um “sonho utópico” “de um vilarejo inglês subtropical com artes de Montmartre”.
 
Quer dizer, se impõe outro dilema bastante recorrente na literatura; ainda que a narrativa não se desenvolva nesse sentido, uma das bases de desajuste entre as matérias de sua identidade encontra-se no impasse entre tradição e modernidade. O exemplo maior é como George reconhece a universidade onde trabalha. Em franca expansão, interessada em ampliar ao máximo a formação de mão de obra qualificada para alimentar o sedento mercado, o professor avalia a instituição como um dos aparelhos sociais de uniformização de indivíduos que muitas vezes sequer sabem quais os motivos das suas estadias no banco de ensino superior; ou ainda, a universidade como o reduto dos frustrados, ao perceber noutros colegas toda a incompetência do acomodatício porque foram incapazes de seguir os modelos selvagens admirados pela nova sociedade e logo admitidos no seu topo, tais como os capitalistas, os ambiciosos, os especuladores, os corruptos, os aproveitadores. Essa uniformidade social anterior aos outros dois livros aqui mencionados, não esqueçamos, encontra-se materializada no reconhecido romance de Aldous Huxley no de Isherwood, que agora comentamos.



 
A preocupação de George com a juventude — ainda que essa não seja uma ideia fixa como em Jo Stoyle —, é dada em várias situações desse dia principal de sua existência: na agilidade com que busca executar suas atividades cotidianas, sobretudo aquelas que são públicas, como dirigir; como se preocupa com a restrita alimentação para não escapar do peso calculado diariamente na balança do banheiro; nos jogos que estabelece consigo para adiar uma possível perda de memória; na comparação com os jovens alunos ou na especulação sobre o que os da sua vizinhança acham dele; na ida a academia e como se observa no espelho ou no laço de alteridade que estabelece com os outros frequentadores; no medo de findar sozinho, decrépito num hospital; na escolha da roupa, percebendo se vestir algo desagradavelmente jovial; nos estreitamentos que manterá, como o belíssimo diálogo de pura potência erótico-simbólica estabelecido com seu aluno Kenny no último encontro do seu dia.  
 
Isto é, falamos de uma recorrência que mobiliza boa parte dos sentidos nesse romance; George é de alguma maneira Stoyle e Titono, se pensarmos, claro está, que o mito grego simboliza exatamente a impossibilidade da juventude eterna. Em Huxley, o tema se estrutura como uma sátira do indivíduo no epicentro dos afloramentos do capitalismo feroz; em Um homem só, a questão se amplia. Não aparece como parte de um modelo social apenas, mas como um traço natural desapropriado pelo capital, que o transformou em necessidade ou objeto uma marca da nossa individualidade.
 
Agora, a descoberta essencial feita por essa personagem de Christopher Isherwood, a partir da morte repentina do companheiro, ou que tentará desenvolver em prática nesse dia principal, é a tentativa de colocar outra vez em prática certo Carpe Diem experimentado pela juventude e que entra em estado de dormência quando a vida se estabelece entre as responsabilidades da vida adulta. É exatamente essa a primeira memória da nossa personagem: como a chegada na pequena casa de arquitetura original da periferia de Los Angeles significa o encontro do lugar definitivo; mais tarde isso se deixa notar ainda na inquietação de George com o seu entorno, marcadamente repetido, com os mesmos gestos, como se a vida fosse apenas uma monótona circularidade que, sabemos, não coincide com as potências do jovem. O final de seu dia, propiciará isso, na maneira como assume alguma autenticidade de si para com o jovem Kenny ou nas atitudes propiciadas por esse encontro casual.
 
Em Um homem só, o drama da juventude perdida é parte noutro drama maior, nascido também em Huxley e no mito grego: o da identidade. Isherwood esclarece como assumimos, propositalmente, as transitoriedades do ser de acordo com o indiretamente determinado pelos modelos sociais pelos quais circulamos. Como a roupa que nos veste, George percebe o convívio social — sobretudo no trabalho como um grande teatro em que por hora o ator se sente confortável no papel desempenhado, mas aqui é continuamente questionado sobre as razões disso. Vale cada palavra do seu quase monólogo com Kenny no final da narrativa: aí o professor (se) confessa o peso do fingimento e o desejo de abortar esse modelo que precisa vestir diariamente porque assim a sociedade quer em nome de seus princípios.
 
O que os outros pensam de nós, o que pensamos dos outros, o que achamos que os outros pensam de nós — essas três linhas se cruzam na formação de um romance que também é sobre o ponto de vista, ou melhor, sobre as mobilidades da nossa identidade e como essas participam na dinâmica social ou como essa age sobre a nossa identidade. Os impasses entre velhice e juventude são, portanto, apenas uma camada nesse emaranhado de complexidades, porque o ficcional em Um homem só se utiliza do material simbólico para estabelecer sobre o material histórico e subjetivo outras camadas de sentido. É assim que no interior desses impasses se juntam o aparecimento da consciência sobre a velhice e a evocação de um rapto amoroso, talvez puramente imaginativo assumido entre essa figura solitária e os mistérios de um jovem que o acaso coloca numa hora propícia às elucubrações desse homem.
 
Isso, nos leva a admitir, em proximidade ao mito grego, que este não é um romance sobre a velhice ou a solidão, nem apenas sobre a identidade, mas um canto ao amor e à sua força capaz de mobilizar a movimentação das tectônicas da identidade. O último e simbólico terceiro movimento da narrativa de Um homem só é integralmente conduzido sob os auspícios de Eros, força que não zela pela manutenção das regiões fronteiriças desenhadas pelos modelos sociais que cultivamos e aqui se assume como uma virada positiva sobre a dor e a morte. Esse movimento supera ainda o passado pelo presente, confirmando o que parece ser uma crença radical de George. Entretanto, a força de Eros, sabemos, sempre cobra um preço além dos nossos próprios limites, mas isso o leitor precisará seguir os passos dessa personagem para descobrir melhor. Saibam apenas que as marcas de Eros são as mesmas do tempo, ou como diz George ao seu jovem aluno — o futuro é a morte.
 
O fragmento 58 de um poema de Safo — também marcado pelo mito do amor entre Titono e Aurora — bem poderia servir de modelo estrutural para o romance de Christopher Isherwood. O poema é constituído pelos mesmos três movimentos de Um homem só: primeiro é o tema da velhice, uma vez notarmos as transformações e como estas se implicam também no corpo ou na consciência da personagem — também aqui se interpenetram passado e presente, destacando-se os impasses da velhice; depois, esse próprio dilema é interpretado para um público de jovens, isso quando George introduz a discussão de um romance de Aldous Huxley circunscrito exatamente no mesmo mito tema do poema de Safo — foi essa comunicação que utilizamos como chave de leitura para o próprio romance de Isherwood, pensando que a performance ficcional encena o próprio tema da ficção; o último movimento do romance, como reparamos, recai especificamente sobre o corpo exposto não puramente em conflito mas em função de uma descontinuidade entre o jovem e o velho. É quando a narrativa alcança a união entre os dois temas aqui evidenciados. George está arrebatado pelo amor e pelo desejo, encantado por Eros; Kenny, encantado por George, é outra vítima da força de Eros. Ou seja, Um homem só é talvez um romance sobre o nascimento do amor. E como este caminha sempre nas direções alheias aos modelos sociais impostos pela sociedade da forma e da repetição.


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Um homem só
Christopher Isherwood
Débora Landsberg (Trad.)
Companhia das Letras, 
160p. 

Ligações a esta post:
>>> Christopher Isherwood, a memória alegre


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