The happy few: lendo Stendhal
Por Pablo Sol Mora
Stendhal. Arte: Jean-Louis Ducis. |
A anedota, contada pelo próprio
autor em Roma, Nápoles y Florencia, é bem conhecida: ao contemplar os
afrescos da Basilica di Santa Croce, em Florença, Stendhal vê-se tomado de
grande emoção; seu pulso se acelera, ele sente vertigem, tontura e está a ponto
de desmaiar. Assim nasce o que a psicologia batizaria mais tarde como a
Síndrome de Stendhal, ou seja, uma reação psicossomática extrema diante de uma
grande obra de arte.1 Contudo, creio que poderíamos falar de outra
Síndrome de Stendhal: a causada por ele mesmo e a fascinação por sua obra. Eu a
contraí quando li O vermelho e o negro pela primeira vez e espero dela
jamais me curar.
Li O vermelho e o negro relativamente
tarde, ou seja, não na adolescência, quando lia, em estado de febre, os
romancistas russos, mas só um pouco depois, aos vinte dois ou vinte e três
anos. Um belo dia, em um sebo que havia na esquina da minha casa e na qual
adquiri muitos livros, La Rueca de Gandhi, apareceram dezenas de volumes
encadernados em couro da velha editora Calpe (Compañia Anónima de Librería y
Publicaciones Españolas), antes de sua fusão com a Espasa. Comprei vários,
entre eles O vermelho e o negro (Madrid, 1919), que há pouco completou
cem anos. É um volume grosso, com encadernação espanhola, dividido em dois
tomos e do qual se desprende um inconfundível cheiro de couro e papel velho.
Desnecessário dizer, todo verdadeiro amante dos livros ama também seu cheiro e
é capaz, nos melhores casos, de distingui-los por este; ainda hoje, cada vez
que compro um livro, mesmo que seja novo e sem qualquer valor material, a
primeira coisa que faço é abri-lo no meio e cheirar suas páginas.
Pouco tempo depois de publicar O
vermelho e o negro, em 1830, Stendhal escreveu que apostava em uma loteria
cujo maior prêmio era ser lido em 1935. Esse prêmio ele já ganhou com sobra e,
de fato, está a ponto de duplicá-lo, pois o romance, não há qualquer dúvida,
será lido em 2035. Stendhal é um homem de, pelo menos, três séculos: há um
Stendhal oitocentista, ilustrado e libertino; há um Stendhal novecentista,
romântico e realista; e o Stendhal plenamente moderno, o ganhador da loteria,
do século XX. Poderíamos nos perguntar se conseguirá abarcar também o século
XXI, mas a pergunta correta seria antes esta: será o século XXI digno de
Stendhal? Acredito que sim.
Os leitores de romances poderiam
ser muito bem classificados em três tipos segundo a Santíssima Trindade do
romance francês: os que preferem Balzac, os partidários de Flaubert e os que
amam Stendhal. Eu sou, desde aquela primeira e fervorosa leitura do Vermelho,
um stendhaliano incondicional.
Henri Beyle, verdadeiro nome de
Stendhal, foi um romancista bem tardio. Poderíamos dizer, parafraseando
Píndaro, que lhe custou tempo transformar-se no que era. Antes de adotar o nom
de plume que o faria famoso, ensaiou muitos outros: Dominique, Salviati,
Barón de Cotandre, William Crocodile... Pioneiro da heteronímia, havia nele uma
vontade tenaz de se ocultar e ser outro. “Com gosto usaria uma máscara e
mudaria de nome”, uma vez escreveu. Publicou O vermelho e o negro quando
tinha quarenta e sete anos. Antes havia publicado livros de diletante sobre
música (Vidas de Haydn, Mozart2 e Metastasio),
pintura (Historia de la pintura en Italia) e livros de viagens (Paseos
por Roma). No entanto, é o típico caso do escritor que, sendo um narrador
de raça, precisou de um longo tempo de maturação para dar seus melhores frutos,
que logo foram aparecendo, um atrás do outro, sem aparente esforço: O vermelho
e o negro,3 Vida de Henry Brulard e A Cartuxa de Parma.4
Leonardo Sciascia, romancista italiano e eminente stendhaliano, disse em seu
livro Adorable Stendhal5
que o standhalianismo tem três etapas: na primeira prefere-se O vermelho e o
negro, logo se passa à Cartuxa de Parma e finalmente se reconhece que o
melhor é Henry Brulard. Gostando das três, talvez eu ainda não tenha passado da
primeira, porque sigo pendendo ao Vermelho, embora esteja claro para mim que o
futuro pertence ao Henry Brulard — este será, assim creio, o Stendhal do século
XXI — essa autoficção anterior à autoficção.
Julien Sorel, o protagonista, é o
primeiro herói de romance plenamente moderno: complexo, contraditório, problemático.
Alguém poderia qualificá-lo de egoísta, ambicioso, hipócrita e oportunista, e
teria razão, e outro poderia dizer que é generoso, nobre, franco e
desinteressando, e também teria razão, porque é todas essas coisas e muitas
outras. Julien — rapaz de origens humildes, devoto admirador de Napoleão, cujo
talento e inteligência lhe permitem uma ascensão meteórica, ainda que breve, na
França da Restauração — representa, antes de tudo, a energia e ambição da
juventude. O vermelho e o negro — Stendhal por inteiro — é, nesse
sentido, eminentemente juvenil. E que jovem com sangue nas veias não terá sido,
em um momento ou outro, como Julien? A primeira vez em que aparece no romance o
vemos sobre uma viga na serraria de seu pai, lendo. É uma imagem emblemática do
seu destino: Julien estará sempre sozinho, porém no alto. É precisamente essa
singularidade que o faz se sobressair, mas que também o torna vítima de ódio e
inveja.
Em seu Diário, Stendhal uma
vez escreveu que seguramente jamais seria um bom romancista porque não gostava
de descrever. A descrição, por vezes morosa, de personagens e objetos — pace
Flaubert — é, de fato, uma das principais características do romance realista
do século XIX. Paradoxalmente, é essa aversão às descrições e a inclinação
decidida à narração que, assim penso, torna Stendhal tão moderno. Porque
Stendhal, como romancista, é, antes de tudo, um extraordinário narrador de
ações, que se sucedem uma à outra com um ritmo vertiginoso. Por isso, Ortega y
Gasset acertadamente o chamou de “o arquinarrador ante o Altíssimo”. Poucas
obras exercem com tamanha intensidade os encantos do romance.
Contudo, o que mais amo em
Stendhal é sua filosofia vital, o beylismo, que cintila em cada uma de
suas obras. Em outra entrada do seu Diário, a respeito de um amigo que padecia
excessivamente de amores, escreveu: “Crozet segue enamorado de A... está triste
e entristece aos demais. Digo-lhe a todo instante para tornar-se um pouco beylista,
mas ele resiste. A voluptuosidade nunca encontrará nele um adorador verdadeiro.
Parece-me quase irrevogavelmente consagrado à tristeza.”
O que é o beylismo? Antes
de mais anda, a procura da felicidade, le bonheur, palavra com um
significado muito especial na obra Stendhaliana. Começa, a propósito, por uma
recusa categórica aos encantos da tristeza, da melancolia, da gravidade e do
sofrimento (todos eles ídolos do Romantismo) e por uma afirmação não menos
categórica da alegria, do entusiasmo e do prazer. O beylismo é um epicurismo e
um hedonismo. Quais são as fontes da felicidade stendhaliana? Os prazeres
sensuais da natureza, da comida e da bebida; os intelectuais da imaginação e da
criatividade; a emoção estética propiciada pela literatura, pintura ou música;
a amizade, o amor e o sexo. A felicidade seria uma mescla afortunada de
sentidos, imaginação, intelecto e vontade (esta última faz-se fundamental, pois
há que se buscá-la ativamente e não esperar indolentemente por ela), e o beylista
uma pessoa radicalmente individual, independente, que forma seus próprios
juízos, autêntica, franca, introspectiva e resoluta.
Stendhal sabia que seu público
ideal era forçosamente minoritário, que as almas afins à sua não abundavam. Por
isso, a partir de certo ponto, pôs em todos os seus livros a mesma dedicatória:
“To the happy few”. Essa minoria feliz é o autêntico público
stendhaliano. A frase foi provavelmente tomada por ele do Henrique V de
Shakespeare. O rei instiga suas tropas na iminência de uma dura batalha: “We
few, we happy few, we band of Brothers”.6 E os leitores de
Stendhal, em todas as partes do mundo e através do tempo, também constituem uma
espécie de fraternidade.
Quando vou a Paris, gosto de dar
uma volta pelo cemitério de Montmartre, onde está enterrado Stendhal, que
morreu fulminado em plena rua por um derrame — como ele havia pedido em Os Privilégios,7
uma morte rápida e sem dor — em 23 de maio de 1842. Seu epitáfio, máscara
derradeira, reza: “Arrigo Beyle. Milanese”. Depois, três verbos: “Escreveu. Amou.
Viveu.” O jazigo está sempre florido.
Notas
1 Sobre a Síndrome de Stendhal,
ver essa reportagem.
2 Publicado no Brasil pela
LP&M com tradução de Marcos Santarrita.
3 Publicado no Brasil pela
Cosacnaify e republicado pela Penguin-Companhia, com tradução de Raquel Prado.
4 Publicado no Brasil pela Penguin-Companhia,
com tradução de Rosa Freire D’Aguiar.
5 O autor possivelmente remete à
edição argentina, publicada em 2012 pela Adriana Hidalgo Editora.
6 Na tradução de Bárbara
Heliodora: “Só nós, bando feliz, poucos irmãos.”
7 Publicado no Brasil pela Ateliê
Editorial com tradução de Jerusa Pires Ferreira.
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