Poesia completa, de Samuel Beckett
Por Eduardo Galeno*
Poesia completa, de Samuel Beckett (1906-1989), lançado pela
editora mineira Relicário, talvez seja a publicação mais necessária para ser
vista e debatida, em termos de estudos das poéticas moderna e contemporânea,
neste ano no Brasil. Na dianteira da poesia beckettiana em território
brasileiro, com traduções do poeta Marcos Siscar e da pesquisadora Gabriela
Vescovi, o livro se concentra na dispersão dos elementos poéticos contidos em
referência às experiências de Beckett, dramaturgo e escritor irlandês, autor de
alguns titãs da literatura e teatro ocidentais como Esperando Godot, Fim
de partida, O inominável. A finalidade que o livro engendra é
reverberar, além do limite dos escritos ficcionais, o poeta Beckett.
Demonstração da máquina literária que ainda não tinha lugar completo entre os
leitores brasileiros, cuja intenção dos tradutores, ao fim, se verificou perto
do totalizante, agarrando para si as passagens, produções e traços dos poemas
de Beckett.
Em 293 páginas, a tradução trilíngue (francês, inglês e
português) se dispõe, em primeiro lugar, no ótimo texto introdutório de Siscar
à discussão do contexto sobre a tradução da poesia de Beckett, partida em duas,
cronologicamente: as produções que antecedem a Segunda Grande Guerra e, por
lógica, as criações conseguintes à devastação maquínica de grande parte do
mundo (pós-1945). No bojo, estão aí desde os elementos iniciais do poeta
(publicados) — a começar por seu primeiro livro Echo's Bones and Other
Precipitates (Ossos de Eco e outros precipitados), de 1935, cuja dicção
ainda acompanhava a poética tradicional, apesar dos óbvios desvios modernistas
eliotianos —, caminhando pelo imediato aparato de desmantelamento, no
pós-guerra, do sentido, exemplarmente constituído no Six poèmes
(Seis poemas), até, ipsis litteris, o próprio fim da pessoa Beckett, em
textos no ano de sua morte, em 1989.
Ademais, se faz necessária a exposição das notas sobre os
períodos entre o começo da década de 1930 e o fim da de 1980. Nelas, Siscar e
Vescovi tentam resgatar, de maneira geral, informações condizentes às propostas
dos textos de Beckett, contextualizando momentos e antecipando as futuras
dificuldades que os leitores terão, referenciadas conforme às circunstâncias de
publicação, interiores ou exteriores à forma dos poemas, incluindo aí, por
exemplo, a particularidade de fora crânio dentro só, escrito em 1974 e
publicado em 1976, que explode seu intertexto com a Divina comédia. Não
é nada novo dizer que um poema não se explica, se interpreta, porém o trabalho
de tradução, aqui descrito de maneira parcial, das formações poéticas
beckettianas, pode, com certeza, tomar a palavra de autoridade porque, afinal,
os textos traduzidos são dos tradutores. Que digam, enfim, o que estão
traduzindo.
fora crânio dentro só
algum lugar alguma vez
como alguma coisa
crânio abrigo último
preso de fora como
Bocca preso no gelo
alarme ínfimo o olho
se escancara se fecha
nada mais tem a ver
assim por vezes como
alguma coisa não
necessariamente vida
O projeto da Poesia completa reorienta o complexo
existente não apenas em Beckett, na sua relação com os gêneros e referências em
literatura, mas igualmente na explanação das poéticas modernistas e
contemporâneas (pois, como se sabe, em estilo de tensão, Beckett poderá ter
sido o último a seguir uma linha do modernismo hegemônico e, depois, o primeiro
a traçar as nuances da pós-modernidade nas artes). O tempo passa, em repetição,
nas linhas de sua poesia (como de seu teatro, ensaio e romance): um tempo em
que as catástrofes contínuas determinam diretamente o seu caminho criativo. É
aprender, mesmo, que a linguagem da poesia moderna repete, inconsciente ou não
para os autores, o mundo. Quando Beckett gagueja para exprimir o
descontentamento coletivo, ele não faz nada mais além que politizar,
simplesmente politizar, criando uma língua nova e viva contra outra língua
alienada. “O campo político contaminou todo enunciado” (Deleuze &
Guattari).
imagine se isso
um dia isso
um belo dia
imagine
se um dia
um belo dia isso
se isso
cessasse
imagine
O objetivo do livro se verifica quando se parte do
pressuposto de que, até 2022, houve somente traduções esparsas, não totalizando
a sua marca, o que foi desmontado a partir deste segundo semestre do ano.
Afirmar, nesse ponto, que há a diferença (derridiana) suscitada que nasce do
trabalho aqui exposto, de tudo o que se sabe até então sobre os produtos
poéticos de Samuel Beckett, suas imagens, técnicas, expressões, conteúdos e
formas, cujos resultados serão adquiridos a posteriori, num plano não
definitivo, emergindo explosões sígnicas sempre por vir. Poesia completa
é — já sugerido, ainda não afirmado — a publicação mais fundamental de 2022 em
razão de discussão sobre a modernidade artística, abarcando tanto a compreensão
geral quanto, é preciso dizer, seus limites.
______
Poesia completa
Samuel Beckett
Marcos Siscar; Gabriela Vescovi (Trads.)
296p.
Relicário Edições
* Eduardo Galeno é graduando do curso de Letras-Português da
Universidade Estadual do Piauí. Atualmente, estuda práticas modernas e
contemporâneas nas artes.
Comentários