My beloved Sterne: a sabedoria do Tristram Shandy

Por Pablo Sol Mora

Staircase Group (Portrait of Raphaelle Peale and Titian Ramsay Peale I) 1795 Charles Willson Peale.


 
Em minha biografia de leitor de romances, a descoberta do Tristram Shandy foi um marco tão importante quanto a do Quixote ou A consciência de Zeno (de fato, um mesmo espírito cômico une os três romances). Por vezes ocorre que, ainda que não tenhamos lido um determinado autor, pelo que ouvimos falar dele e o que aprendemos aqui e ali, pressentimos a partilha de certas afinidades, e, quando enfim o lemos, felizmente confirmamos nossas expectativas. Foi isso que se passou comigo com relação a Sterne. Eu sabia o que era o Tristram e tinha noção de sua natureza lúdica e humorística, sabia que certamente gostaria dele quando o lesse (já havia lido a Viagem sentimental, na tradução de Alfonso Reyes); ainda assim, não podia antecipar por completo o assombro e o prazer que sua leitura me causaria.
 
Meu Tristram é o traduzido por Javier Marías, reeditado pela Alfaguara em 1999 e que não deixa de contrastar com o tipo de títulos que a editora normalmente publica nos dias de hoje. É um tijolo (inclusive em cor laranja) de mais de setecentas páginas com letra muito pequena.  Na página de rosto há uma pintura à qual a princípio, embora tenha gostado, não dei muita atenção e sobre a qual gostaria agora de me deter porque me parece apropriada à obra de Sterne. Trata-se de Staircase Group (1795), do pintor norte-americano Charles Willson Peale. Os protagonistas são seus filhos, Rafael e Tiziano (Peale era fanático pelo Renascimento). Um deles, com paleta e pincéis na mão, encontra-se a ponto de subir um degrau e vira-se para ver o espectador; o outro, mais acima, mira-o curioso com meio corpo oculto. O retrato, em tamanho natural, é extremamente detalhado e realista, um autêntico trompe l’oeil (conta-se que as visitas do pintor, ao entrar em sua casa e verem o quadro pela primeira vez, saudavam os dois jovens). O detalhe genial, digno de Duchamp, é que Peale colocou a tela ao nível do chão e, em vez de uma moldura tradicional, pôs a verdadeira moldura de uma porta e, ademais, um primeiro degrau de madeira acoplado à pintura, indistinguível daqueles pintados.
 
O quadro possui um espírito absolutamente shandyano: irônico, cômico, brincalhão, risonho. Ele põe em questão as relações entre a vida e a arte, a realidade e a ficção, e convida o espectador/leitor a ser parte da obra. Se apenas nos descrevessem a pintura, provavelmente pensaríamos nas vanguardas ou em algum outro exemplo de arte moderna, mas é do século XVIII... Algo semelhante ocorre na literatura com Sterne e o Tristram, mais inovador e fresco do que muitas ocorrências (pós-)modernas.
 
A obra de Sterne pertence à melhor tradição do romance, a do romance cômico, (que é, em verdade, a tradição do romance). Como se sabe, Cervantes não teve herdeiros imediatos em língua espanhola. Os engenhos hispânicos não souberam como lidar com o legado cervantino. Mais de um século se passou até que, do outro lado do Canal da Mancha, aparecesse seu legítimo herdeiro, um humilde e sardônico pastor da igreja anglicana. Ele tinha perfeita consciência disso e por isso referia-se ao autor do Quixote como “my beloved Cervantes”. Em muitos sentidos podia-se dizer que Sterne levou o romance um passo adiante de onde o havia deixado seu modelo espanhol.
 
A loucura, o disparate, estão no coração tanto do Quixote como do Tristram. Nenhum dos protagonistas deste último está louco no sentido em que dom Quixote está, mas todos — notoriamente Walter Shandy e o tio Toby —vivem em um mundo paralelo ao da realidade e, como o cavaleiro manchego, constantemente chocam-se com ela. Contudo, esses choques, como os quixotescos, são fundamentalmente cômicos. O sentido do humor sterniano é de índole cervantina — irônico, benévolo, compassivo, profundamente humano — e extrai dele suas últimas consequências filosóficas. Nada sabemos ao certo sobre a realidade, tudo é ambíguo (essa coisa é uma bacia ou um elmo? Que seja um bacielmo), nosso ponto de vista irremediavelmente nos condiciona, a linguagem — aquilo que nos faz humanos — é uma rede muito precária para tentar apreender o mundo ou para nos comunicarmos efetivamente uns com os outros. Poderíamos levar tudo isso a sério e fazer uma tragédia; com um meio-sorriso Cervantes e Sterne sugerem que é antes uma comédia. A melhor opção é o riso, pois “rir é o próprio do homem”, como escreveu Rabelais, outro espírito da mesma família e seu precursor.
 
Se as afinidades entre ambos não saltam à vista, basta comparar o famoso prólogo de Persiles y Sigismunda, que termina com essa famosa profissão de fé que de certa forma abarca o todo de Cervantes (“Adeus, dádivas; adeus, graciosidades; adeus, amigos jubilosos; que me vou morrendo, e desejando em breve vê-los alegres na outra vida!”) com a dedicatória do Tristram Shandy. Cada um poderia levar a assinatura do outro. São dois textos escritos por homens enfermos (no caso de Cervantes, “tendo já posto o pé sobre o estribo”), mas que tentam ver o copo meio cheio, homens que tomaram uma firme decisão em nome da alegria e do prazer, e que a sustentaram até o fim, convencidos — como escreve Sterne — “de que cada vez que um homem sorri, mas muito mais quando ri, acrescenta-se algo a este Fragmento de Vida”.¹
 
O romance me ganhou desde a epígrafe, tomada de um estoico (Epiteto, que eu havia lido junto de Marco Aurélio) e que enuncia um dos principais elementos da doutrina: “não são as coisas, senão as opiniões sobre as coisas, que perturbam os homens”. Mas Sterne cita em chave irônica, pois o romance deixa claro que as coisas são muito difíceis (se não forem impossíveis) de conhecer, e que temos apenas opiniões (o Tristram também cumpriu sua parte em fazer-me ver o estoicismo com certa distância). A obra trata, em boa medida, do conhecimento e da linguagem, sobre suas possibilidades e limitações, mas em vez de adotar uma forma séria e abstrata, como um tratado filosófico, opta por um modo cômico e concreto, como só o romance é capaz de levar a cabo.
 
Acostumado à forma rigorosa do romance realista — o que a maior parte dos leitores, até hoje, continua entendendo como romance —, com seus argumentos claramente expostos, seu desenvolvimento progressivo, seu nó, seu desenlace etc., uma das coisas que mais me surpreendeu — e me aliviou — no Tristram foi sua forma informe, rematadamente livre e caprichosa (muito semelhante à do ensaio como o concebeu Montaigne, cuja vez logo chegará), que não parecia dirigir-se para lado algum, na qual reinava a digressão e que serpenteava indefinidamente, sustentada pelo engenho inventivo e pelo virtuosismo verbal. “O romance também pode ser assim!”, eu dizia ingenuamente a mim mesmo (de fato, haveria que ver se não é sobretudo isso, e as rígidas e admiráveis construções novecentistas uma etapa já um tanto esgotada). Também nisso Sterne partiu de Cervantes e deu um passo além: o romance como uma salada de gêneros, formas e discursos onde tudo tem sua hora e vez. 
 
À desmedida do Tristram costuma-se reagir também desmedidamente: ou se tem uma afinidade imediata e profunda com ele, a ponto de amá-lo, ou não se sente qualquer simpatia, rechaçando-o convictamente. Está claro de qual lado estou. A ele sempre deverei duas coisas, além de algumas das horas de leitura mais prazerosas da minha vida: a primeira, ter ampliado e aprofundado minha noção de romance e me ajudado a definir uma concepção pessoal do mesmo; a segunda, ter me mostrado as possibilidades do humor e da alegria na literatura (ou seja, na vida) e contribuído para dar forma a uma orientação, tanto literária quanto vital, que já estava em mim, mas que encontrou em suas páginas um impulso definitivo.
 
No final das contas, a sabedoria do Tristram, como a do Quixote, é a do humor e do riso, da ironia e da leveza, da indulgência e da magnanimidade. Somos criaturas francamente cômicas. Reconheçamos este fato e o abracemos. É preciso saber rir da vida, dos outros e, sobretudo, de nós mesmos. O humor humaniza e, ao mostrar-nos as debilidades próprias e alheias, torna-nos mais benévolos e compreensivos para com tudo que é humano.


Notas:
1 Trata-se do trecho final do primeiro parágrafo da referida dedicatória do Tristram Shandy.


* Tradução livre de Guilherme Mazzafera para “My beloved Sterne: la sabiduría del Trastram Shandy”, publicado aqui em Letras Libres em 18 maio 2022. 
 

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