Mircea Cărtărescu: os sótãos de Bucareste

Por Mercedes Monmany


Mircea Cărtărescu. Foto: Mircea Struţeanu


 
Autor de uma extensa obra, o que o torna um credor a cada novo livro (seja no gênero narrativo, seja com sua deslumbrante produção poética) ao Prêmio Nobel de Literatura, hoje devemos acrescentar ao seu lado a presença de duas magníficas escritoras, de diferentes gerações: Tatiana Ţîbuleac (Chisinau, Moldávia, 1978), com dois excelentes e poderosos romances, e uma das mais populares e famosas escritoras, tanto no seu país como no estrangeiro, Gabriela Adameșteanu (Targu Ocna, 1942), magistral dissecadora dos anos do comunismo na Romênia.¹ Um tema, os anos cinzentos e sombrios do comunismo na Romênia até a libertação, que também se repete na nova obra agora publicada por Cărtărescu, o terceiro volume de seu prodigioso ciclo Orbitor (Cegador), que consiste em A ala esquerda, O corpo e o agora e deslumbrante A ala direita², cujo pano de fundo, entre tantos outros fascinantes que sempre se sobrepõem na história deste autor, é a Revolução e queda da atroz ditadura de Nicolae Ceaușescu em 1989.
 
Poeta, ficcionista, teórico da literatura e principal representante da chamada Geração dos anos oitenta na literatura romena, Mircea Cărtărescu, unanimemente celebrado hoje em muitos países pela versátil riqueza de sua obra, é um criador original e fascinante cujo estilo e a capacidade genial de invenção linguística marcaram as últimas décadas não apenas na Romênia, mas em toda a Europa Central. Professor que ao longo do tempo se dividiu entre Bucareste, Viena, Amsterdã e Stuttgart, cidades onde ministrou cursos sobre a famosa vanguarda romena de entreguerras, liderada por Tristan Tzara, Cărtărescu também é semeador absoluto do pós-modernismo em sua país, sobre o qual teorizou abundantemente, obtendo seu doutorado com uma tese sobre esse movimento.
 
Entre suas obras mais conhecidas está um épico paródico e cômico intitulado Levantul (1990), no qual reciclou todos os tipos de estilos poéticos da literatura romena, usando como inspiração o capítulo de Ulysses de Joyce intitulado “Gado ao sol”. Em 1993 sairia seu livro de contos, Nostalgia. Mais tarde iniciaria outro ciclo ambicioso, entre o fantástico e o cripto-onírico, a já referida trilogia Cegador. Sua obra Porque gostamos das mulheres, definida por ele mesmo no campo da “fantasmagoria social”, composta por vinte retratos ou sonhos possíveis de mulheres, com inúmeras referências, como costuma acontecer em sua obra, a muitos outros escritores e as “leituras” da sempre duvidosa realidade — de Salinger, Nabokov, Breton, Joyce e Stendhal, a escritores romenos como Ion Creanga —, significou um estrondoso sucesso de vendas em seu país.
 
Sempre seduzido pela figura ambígua do duplo, pelas sensualidades torturadas — como se vê no conto “Os gêmeos” de seu livro Nostalgia, mas também em “O Mendébil” e na magnífica novela “REM” desse volume —, pelo travestismo, pela androginia e pela figura mitológica da Quimera, tudo isso se materializaria centralmente em seu romance Lulu, que trazia à memória o personagem perturbador da ópera de Alban Berg, baseada na obra homônima de Wedekind.
 
A sua prosa é uma cativante e brilhante, algures entre o lírico, o sinistramente cômico, o especular e o metafísico, sempre levada aos seus limites, numa espécie de arriscada mise en abyme que em Nostalgia abriu com um conto deslumbrante, “O roletista”, que pode ser classificado como um clássico dos nossos dias. Nele, um personagem tem um encontro todas as noites com a própria morte, transformada em um espetáculo perverso que é assistido, em porões clandestinos de uma cidade implacável, por um público insaciável, cada vez mais seleto, ávido e numeroso.
 
Criador do termo “textualismo”, segundo o qual propunha um novo pacto com a realidade, Cărtărescu inventaria também a noção de “texistência”, que daria origem ao nascimento do pós-modernismo romeno. Se os anos oitenta naquele país ainda eram os do totalitarismo mais feroz e insano do Conducator Ceaușescu, era ao mesmo tempo um período que coincidia com o florescimento de ativos cenáculos e movimentos literários: uma geração que começou na escrita das margens e “interstícios” de uma sociedade opressora e que, justamente como reação a ela, daria origem a uma esplêndida literatura profundamente subjetiva, que aproveitaria todas as fontes do jogo textual, de todos as vias do sonho e da imaginação.
 
A estranheza ocasional dos textos de Cărtărescu, o fantasmagórico, o tortuoso, o kafkiano e o pós-romântico dos seus hipnóticos e labirínticos pesadelos surreais, que bebem tanto da poesia de Novalis como de Poe, Nerval, Borges e Hoffmann, e que crescem e se tornam fantasticamente confundidos, como num caleidoscópio polifônico e monstruoso, misturando a aspereza e o cinzento do cotidiano, com o inconcebível da História e o passado que apaga todos como sujeitos reconhecíveis numa identidade única, nunca deixam o leitor indiferente. Um leitor que, com as fronteiras da realidade completamente borradas, caminha pelas passagens subterrâneas da cidade de Bucareste, a verdadeira e oculta protagonista de suas narrativas, ora sórdidas e horripilantes, ora deslumbrantemente belas e sinuosas, sustentadas no espaço pela onírica introspecção e pela força das imagens de outros tempos, quando Paul Morand a chamava de “a Paris dos Bálcãs”.
 
Uma cidade que sofreria os açoites do delírio de um ditador-demiurgo, como o personagem alucinado e messiânico que protagoniza o excelente e sombrio conto “O arquiteto”, personagem que ironicamente nos remete à figura do criador-destruidor Ceaușescu, em Nostalgia. Um déspota que em 1972, inspirado no programa de “sistematização”, elaborado a partir dos escritos de Engels sobre a redução das diferenças entre cidade e campo, concebeu uma forma de construir uma sociedade socialista “multilateralmente desenvolvida”. Uma feroz megalomania, disfarçada de “política ambiciosa”, que resultou em mudanças infernais em toda a Romênia, e em particular na demolição sistemática de inúmeros povoados, com a deslocação da população para pequenos centros urbanos sem qualquer estrutura.
 
O mais monstruoso dessa louca e totalitária teoria aconteceu justamente na cidade de Bucareste, outrora uma das mais belas da Europa, onde quase um quinto da cidade antiga seria impiedosamente arrasada para ser reconstruída segundo a visão do ditador. Entre os edifícios destruídos encontravam-se vários classificados como históricos, nomeadamente mosteiros já irrecuperáveis. Por outro lado, para erguer um faraônico Palácio do Povo — o segundo maior edifício público do mundo, depois do Pentágono — Ceaușescu, como se tratasse de um terremoto ideológico que quisesse devastar a memória futura de um povo, chegaria a derrubar bairros inteiros.
 
Poeta desde sempre, Cărtărescu se revelaria no seu país como um prosador brilhante e revolucionário precisamente no ano da queda do Muro, em 1989, com o já mítico texto Nostalgia, publicado e parcialmente censurado quando o seu autor ainda não tinha trinta anos. Desde então, e desde o surgimento de outra experiência inovadora e fascinante, a epopeia heroico-cômica O levante (Levantul), ambas com grande sucesso em seu país, as legiões de leitores que acompanhariam cada uma das aparições de seus livros habituar-se-iam pouco a pouco aos seus labirintos hipnóticos e fantásticos, aos mundos literários singulares, entre a realidade e a fantasia, entre o sonho e a alucinação, entre as parábolas e as alegorias, ou entre os jogos e as hilariantes paródias, que exaltavam sobretudo uma soberba encenação de uma imaginação sem limites ou fronteiras de qualquer tipo. Uma escrita sempre levada ao máximo do seu poder expressivo, à mais total e inusitada ambição. Dito à maneira shakespeariana: seus personagens, quase sempre iguais ou parecidos, sempre agiam como aqueles poetas loucos e apaixonados que vivem no limite, na mais pura e avassaladora paixão.
 
A partir dessas primeiras obras em prosa — embora já fosse um poeta conhecido —, Cărtărescu se tornaria um dos maiores e indiscutíveis autores contemporâneos, aparecendo invariavelmente, ano após ano, nas listas de apostas para o Prêmio Nobel que, apesar da grandeza da língua romena no século passado, nunca recaiu sobre nenhum de seus principais e mais famosos nomes, desde Camil Petrescu, Mihail Sebastian, Cioran, ou o mais próximo de nossos dias, Norman Manea. Ao longo de sua carreira, como em sua deslumbrante Opus Magnum Solenoide —uma de suas criações mais ambiciosas, junto com o ciclo Cegador —, o leitor testemunha semelhantes, sempre transmutadas, recorrências vitais de raízes autobiográficas ou não, que são vigorosamente transferidas de um texto para outro. Uma beleza turbulenta domina todas as páginas, assim como uma busca permanente e ávida da verdade, aliada a uma investigação profunda, multiforme, quase visionária, da complexidade por vezes indecifrável da realidade, em todos os seus aspectos e aparências.
 
Como o próprio Cărtărescu explicaria, seus começos, mesmo dentro do regime comunista que dominou totalmente seu país, foram marcados por um fértil submundo literário que surdamente gritava, marginal, explosivo, passional, às costas do poder, nas rodas de jovens escritores que se reuniam para compartilhar seus textos. Foi o caso de um famoso Cenáculo das Segundas-feiras, especializado em poesia, ao qual pertencia Cărtărescu, de onde surgiu a Geração de oitenta. Embora existisse também outro excelente grupo dedicado à prosa, Junimea, de onde surgiram os lendários textos da Nostalgia.
 
Deve-se dizer que, junto com o francês, o idioma para o qual Cărtărescu provavelmente foi mais traduzido é o espanhol. Um número notável de títulos apareceu, todos eles na editora Impedimenta: Nostalgia, Lulu, As belas estrangeiras, O levante, O olho castanho do nosso amor, Solenoide, a trilogia Cegador e sua Poesia Essencial, selecionada por ele mesmo. Um louvável trabalho editorial que, muito principalmente, se deve também a uma excelente e exemplar tradutora, Marian Ochoa de Eribe, que realizou a nada fácil tarefa de verter um autor de enorme exigência e complexidade estilística e literária na fronteira de Pynchon, William Gaddis ou Foster Wallace, assim como de Kafka e Joyce.
 
Para Cărtărescu, a leitura apaixonada da literatura latino-americana tem sido uma constante em sua vida, com a esplêndida e rica gestão de uma linguagem verdadeiramente espetacular, barroca, magnética, de alta voltagem poética e imaginação transbordante, infinitamente repleta de brilhantes reflexões e especulações metafísicas, em que não falta um humor refinado e vitriólico. Dotado de uma ironia entre a séria e a cômica, a leitura de seu longo conto As belas estrangeiras, no qual um grupo de escritores romenos é convidado à França para participar de diversos colóquios, mostra seu talento para a paródia e o evocação grotesca e absurda das situações. Ele é um dos autores mais talentosos de nossos dias para destacar o absurdo dos clichês e preconceitos dos nacionalismos, esse mundo de clichês da moda, superficiais e hiperglobalizados que constantemente minam qualquer imagem do outro ao nosso redor. Em um capítulo de As belas estrangeiras, “Como me tornei um escritor medíocre”, o narrador conta uma reportagem ou filme demente sobre a Romênia realizado por um diretor francês, que incluiria entrevistas com doze escritores romenos convidados por três dias para uma turnê pelo país gaulês:
 
“Ao ver a reportagem, percebi que o que eu disse naquelas duas horas não era muito relevante: selecionaram apenas sete minutos. De tempos em tempos, minha conversa era interrompida por imagens da minha amada Bucareste: carroças, vira-latas selvagens e ruínas sinistras [...] Como adiantamento, a reportagem abria, supostamente, com o primeiro e mais importante escritor romeno, Nicolae Ceaușescu ele mesmo [...] Por que, eu me pergunto, alguns têm direito à normalidade e à modernidade e outros apenas a uma história pitoresca? Por que sempre nos afogamos no Sena, no Tâmisa ou no Potomac com Ceaușescu amarrado em nossos pescoços?”
 
No monumental romance Solenoide encontramos mais uma vez um personagem familiar de sua literatura. O protagonista é um jovem escritor que trabalha como professor em um subúrbio de Bucareste, imerso na inércia de uma semivida cotidiana (“minha vida tem um único eixo que vai da minha casa à escola, assim como aqueles que quebraram a coluna vertebral vivem presos num espartilho de gesso”). Todos os dias viaja de bonde para esse submundo cinzento, esquálido, sinistro, plano, próximo ao grotesco, enquanto convive com colegas não menos absurdos, cada um com suas peculiaridades. Paralelamente, constantemente dividido, como um animal kafkiano ou esses seres noturnos de Sabato —autor por quem Cărtărescu sente uma grande predileção —, esse personagem leva adiante um diário e vive à noite em um mundo de sonhos e pesadelos complementares.
 
Como um Segismundo do barroco calderoniano, preso em meio a uma esquizofrenia abismal e cotidiana, de uma “prisão” ou escura caverna platônica de onde luta para entender o incompreensível, esse escritor frustrado alterna momentos de pânico e de lucidez. Porque um dos conceitos-chave desta obra será permanentemente o medo. Um medo terrível (a palavra socorro ocupará várias páginas seguidas): medo de corromper seu destino de artista fracassado, medo da dor e do sofrimento em todas as suas formas, medo de falsificar e prostituir sua mensagem e seu lugar no mundo, e medo de nunca conseguir escapar da prisão que o prende. “A arte”, dirá, “não tem sentido se não for uma fuga. Se não nasce do desespero de se sentir prisioneiro”.
 
É um tipo de escrita não realista e de tensão lírica sustentada, ora espectral, onírica, expressionista, alucinatória, de paranoia kafkiana, diante da qual o leitor tem que se deixar arrebatar sem oferecer resistência, embalado apenas por sua poesia, pelo fabuloso ritmo das frases e pela beleza sempre surpreendente de imagens inéditas que se movem numa gigantesca amálgama de passado e presente, de mitos, seres fantásticos e lendas juntos a contextos autênticos e históricos. Em tudo isto, Solenoide se revela, a cada página, como uma magnífica e descomunal obra, um gigantesco projeto literário inusitado, como sempre acontece com este autor, na sua ambição e vontade de perdurar para além da rotineira passagem do tempo.
 
Os começos como poeta deste escritor inclassificável dos nossos dias que é Cărtărescu nunca o abandonaram. Toda a sua narrativa subsequente é tingida por uma, e inebriante e tensão lírica maravilhosa. Uma poesia e uma linguagem deslumbrantes que tudo tingem, do princípio ao fim, onipresente sobretudo no seu mais ambicioso e singular ciclo de romances empreendido em meados dos anos noventa: Cegador, uma trilogia sem igual, construída em torno de memórias iniciáticas e fantasmagóricas, das alucinações, os passeios e sonhos do jovem Mircea. Um ciclo ficcional que convoca todos os registos e cartografias possíveis, desde os do seu próprio corpo até à mesma cidade de Bucareste, que continua a ser um centro nevrálgico da sua obra; um vulcão adormecido em torno do qual todos giram, como borboletas em torno de uma luz ofuscante.
 
A Bucareste do corpo (“para mim, Bucareste assemelha-se a um cavaleiro boiardo dos Bálcãs, pela sua mistura de generosidade, ternura e histeria”, assinalou Cărtărescu em alguma ocasião), segundo volume da trilogia, é a sombrio e ameaçadora capital da Securitate, nos anos de chumbo do comunismo, em meados dos anos sessenta. Então, Mircea acabou de fazer oito anos. Nesta obsessiva história de amor e ódio, as terminações nervosas da cidade se confundem com seu próprio corpo. Ali — diz o narrador — “filtro minha vida, a engulo, a bebo, a vejo, a cheiro, a mordo, a vivo, a odeio, a possuo”. Nessa “Valáquia adormecida, perfumada e espalhada entre os Cárpatos” Mircea e os seres sobrenaturais, ou mesmo hiper-reais, que o acompanham, vivem a magia do passado, a inquietação diante do desconhecido, a intensidade das emoções, mas também o horror “que espreita como uma tarântula peluda.”
 
País mítico e inalcançável (“Oh, país fantástico, terra de onde todos partimos! Oh, reino ao qual todos gostaríamos de voltar!”), miseravelmente congelado num passado que se nega, assim se ensina em escola para as crianças uma vida anterior desconhecida e odiada:
 
“Na hora da leitura, se falava sempre do período anterior à guerra, que devia ter sido bastante feio, porque as pessoas viviam na era burguesa-feudal, os latifundiários e os donos das fábricas de um lado, todos muito maus, que não trabalhavam mas viviam bem e, por outro lado, os operários e camponeses que trabalhavam do amanhecer ao anoitecer, mas de cujo trabalho os senhores e a burguesia se beneficiavam. Estes últimos eram muito gordos.”
 
Construção e destruição andam de mãos dadas incessantemente em O corpo. Uma bela e decadente cidade foi impiedosamente derrubada com suas górgonas, atlantes e sublimes vilas por um ditador que a odiava. No meio desse “deserto atômico” a casa de Mircea resistiu: “Meu quarteirão resistiu às demolições, até o mamute congelado da Casa do Povo”.
 
Em torno do pequeno Mircea, seu irmão perdido Victor e sua mãe que tece tapetes com segredos de Estado embutidos neles, um universo feito de personagens fantásticos o acompanha em suas peregrinações pelos becos labirínticos e pelas frestas infinitamente abertas de uma realidade que algumas vezes é sonhada, outras vezes imaginada e outras vezes vivida, conformando memórias posteriores, que por enquanto se recusam a ser ordenadas. Aí estarão Vasile que cresceu sem sombra, Maria com suas asas de borboleta, seu amigo Herman, o iogue Homem Serpente, a anã malabarista Katerina, “um patrimônio compartilhado no circo” que anseia por Georgia e “a grande líder do povos Stálin”, o pequeno Maarten dos diques e seu cão Frits, os Conhecedores de qualquer época e qualquer cidade, os Homens-estátua e os vagabundos de Amsterdã, ou aqueles russos castrados, espalhados pelos Bálcãs, seguidores de um antigo rito que os manda cuspir e “destruir ícones com a enxada”.
 
Mas também haverá a história mágica de Badislav, o avô do narrador, que chegou no final do século XIX da Bulgária à capital de um pequeno reino no Danúbio. A Romênia libertou-se de sua ordem feudal para entrar em uma modernidade feita de barulho e uniformidade. Mais tarde, todos eles serão sacrificados, repetidamente:
 
“Foi uma das condições que os aliados lhes impuseram quando cederam os países do Leste à Rússia: destruireis tudo, mas manterás pelo menos algumas ilhas que os lembrarão, daqui a décadas, que já desfrutastes de algum momento da graça e magia do mundo livre.”
 
Depois de se tornar um capitão dos bombeiros em uma cidade que mistura casas de taipa e palácios bizantinos, Badislav, o homem que perdeu sua sombra, também perderá sua vida. No entanto, seu fantasma sempre assombrará o espírito do pequeno Mircea, um de seus netos. Porque a filha de Badislav, Maria, casou-se com Costel, operário de uma oficina.
 
Bucareste do entreguerras conseguiu se modernizar, predominando o estilo Bauhaus e proclamando a entrada do país na era industrial. Apenas as periferias sujas, com suas ruas de terra lamacenta, continuaram a lembrar o Oriente. Mas uma destruição apocalíptica, com estranhas relíquias escolhidas, como diria amargamente o narrador de A ala direita, cobrirá uma espécie de paisagem pós-nuclear, na qual todos operaram:
 
“Antigos bairros nostálgicos foram espalhados do Reno ao Volga, em cidades destruídas por divisões alemãs indo para o leste, depois por divisões russas indo para o oeste e, finalmente, por esquadrões anglo-americanos lançando tapetes de bombas.”
 
Tudo se reúne no mesmo cenário em que, independentemente de raça ou nação, todos sofreram igualmente: “As mesmas estrelas impassíveis sempre brilharam sobre o sofrimento do mundo”.
 
Em A ala esquerda, outro romance de traço autobiográfico, Cărtărescu escreverá:
 
“Quanta necrofilia fica na memória! Que fascínio pela ruína e pela putrefação! Quanto médico legista tateando entre os órgãos liquefeitos! Quando penso em mim em diferentes idades ou em vidas passadas consumidas, é como se estivesse falando de uma longa série ininterrupta de mortos, um túnel de corpos morrendo uns dentro dos outros.”
 
Como todo seu ciclo, Cegador, grande tratado metafísico e experimental sobre o Enigma, sobre a possibilidade de levar a estreita visão da realidade aos seus limites mais inimagináveis, no último volume da saga, A ala direita, com incessantes idas e vindas do passado para adiante, e vice-versa, estamos no ano da Queda do Muro, 1989, que coincide com o ano da Revolução Romena. Esta é a crônica joyciana dos últimos e dramáticos dias de um regime totalitário em Bucareste:
 
“Tanques? O Conselho Popular do centro destruído a tiros de canhão? Generais enviados para varrer a cidade da face da terra? Os vizinhos não se escondem mais, se escuta ‘Europa Livre’. Quarenta mil mortos em Timișoara! Uma jovem caminha, brandindo uma flor.
 
A tampa se abre, um tanqueiro quase adolescente põe a cabeça para fora e grita: ‘Fora! Recuar!’”
 
A miséria mais atroz e terminal do comunismo está finalmente desmoronando, como já havia dito exasperado o pai de Mircea, o narrador:
 
“‘Acabou’, diz meu pai com toda a amargura dos últimos anos acumulada em poucas palavras. ‘Se foram para o inferno com sua loucura. O comunismo não pode ser realizado com paranoicos e analfabetos. Zombaram de tudo e de todos. Nem os porcos comeriam o que fizeram com este país’”.
 
No relato do jovem Mircea que presencia a Revolução nas suas ruas ou, se preferir, o fim de um pesadelo que roubou a muitos deles a infância e a juventude, misturam-se diferentes fios, espaços, tempos e técnicas narrativas, que são alucinações e os fantásticos labirintos íntimos do narrador, um menino chamado Mircea (Mircisor, como é carinhosamente chamado), filho de trabalhadores que, já adulto, escrevendo páginas infindáveis ​​de um manuscrito “ilegível”, vê cair um ditador megalomaníaco que levou a população à miséria e à mais absoluta das ruínas:
 
“Como cães. Eles nos matam todos os dias, os infelizes nos enterram. Que você acaba morrendo de fome na Romênia, onde já se viu algo assim? Nem quando você trabalhava para os senhores, nem em tempos de guerra era pior. Nem mesmo durante a grande fome que se seguiu, em 48 ou 49.”
 
Os volumes anteriores do ciclo situavam-se nos anos 1930-1950 —A ala esquerda — e 1960-1970 — O corpo. No último volume, cronologicamente inserido na Revolução, o protagonista continua a busca alucinada, nostálgica e obsessiva de um duplo — Victor, o irmão perdido por Mircea na infância —, um gêmeo idêntico desaparecido um dia num miserável hospital. Um acontecimento que Cărtărescu trataria em um de seus mais comoventes e chocantes textos de seu livro de contos O olho castanho do nosso amor:
 
“Minha mãe nos levou ao hospital com 42 graus de febre. Quis ficar, mas as enfermeiras a mandaram embora [...] Meus pais foram informados de que o filho deles havia morrido durante a noite. Mas lhes mostraram o corpo. Diante dos uivos de minha mãe, apareceram uns tipos uniformizados. Em seus recursos por ministérios e escritórios de advocacia, apareceram alguns personagens que os aconselharam a calar a boca. Victor foi engolido pela terra miserável de uns tempos terríveis. Nunca descobrimos o que aconteceu com ele.”
 
Na imaginação febril e delirante do gêmeo sobrevivente, Mircea, o irmão solitário que enfrenta as sombras e os fantasmas de seu pequeno apartamento e a um rosto igual ao seu que aparece no espelho e que toca delicadamente com a ponta dos dedos, Victor, depois de ser roubado na infância, apareceria em Amsterdã, onde cresceu na mais extrema marginalidade, para acabar alistando-se na Legião Estrangeira, em meio a um rastro de crueldades inimagináveis:
 
“O bem e o mal eram mariposas separadas ao longo do eixo de simetria por uma espada [...] Victor vinha devagar até mim desde as profundidades do espelho e, quando os últimos no caminham se moveram para os lados, de repente nos encontramos cara a cara.”
 
Dissecação mística e fantasmagórica, ou alegoria proustiana e caleidoscópica da memória pós-moderna que avança como em ziguezague, ou colagem através de imagens recorrentes dos anos de sua primeira infância (“um Mircisor fantasmagórico, leve como papel, era soprado pelo vento e empurrado para o território da memória”) , numa mágica “peregrinação sempre repetida, ao infinito, como um foguete”, A ala direita é uma obra magistral, única, uma maravilhosa viagem onírica por cenas e epifanias fundacionais que misturam sonho e vigília, fantasia e hiper-realidade, crônica histórica e realidades paralelas, junto com folclore e mitologias não só da Romênia, mas de toda a Europa Central.
 
Uma viagem onírica, cheia de fascínio e incógnitas como as misteriosas silhuetas de Rorschach, enquanto se elabora “um manuscrito do mundo”, em busca desesperada de uma espécie de Harmonia celestial (como o título de outro autor extraordinário, um dos melhores Literatura experimental europeia, do húngaro Péter Esterházy): “Meu manuscrito é o mundo e não há galáxia ou pétala de camomila que não esteja escrita aqui”.
 
Notas da tradução
 
1 A autora lista dois títulos de Tatiana Ţîbuleac traduzidos para o espanhol. No Brasil, até agora, só conhecemos um deles: O verão em que mamãe teve olhos verdes (Tradução de Fernando Klabin, Mundaréu, 2021); o título do segundo livro em espanhol é El jardín de vidrio (algo com O terrário). De Gabriela Adameșteanu, cita uma trilogia, também inédita entre nós, formada por Vidas provisionales, El mismo camino de todos los días e Fontana di Trevi (Vidas provisórias, O mesmo caminho de todos os dias e Fontana di Trevi, respectivamente). Também em espanhol, existe uma obra que recolhe a obra poética até agora conhecida de Cărtărescu; trata-se de Poesía esencial.
 
2 As traduções dos títulos são todas a partir do espanhol. Os livros publicados em nossa língua, por sua vez, são referidos com as traduções conhecidas. Em espanhol, a obra Cărtărescu está traduzida por Marian Ochoa de Eribe e publicada pela editora Impedimenta. No caso da poesia, o trabalho de tradução foi realizado a quatro mãos, o que inclui Eta Hrubaru. 


* Este texto é a tradução livre para Mircea Cărtărescu: los sótanos de Bucarest”, publicado em El Cultural.

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