Labirintos entre idiotas: Hans Magnus Enzensberger
Por Hugo Alfredo Hinojosa
Hans Magnus Enzensberger. Foto: Barbara Klemm |
No início do século XXI, Hans
Magnus Enzensberger, o poeta e filósofo alemão, galardoado com o Prêmio
Príncipe das Astúrias em 2002, era uma figura ativa nos meios sociais do seu
país e da Europa, uma celebridade pensante vilipendiada pelos intelectuais puritanos,
para quem o reconhecimento público é degradante. Alguns de meus professores se
referiam ao escritor com desdém: “um vendido ao capitalismo”, “traidor dos
ideais socialistas aprendidos em Cuba”, “falhou no projeto de reunificação da
Alemanha em 68”, declaravam, “sua teoria do novo homem (livre) foi um fiasco.”
Nunca compreendi a falha moral do filósofo e reflito, sem medo de
mal-entendidos, que o problema cardinal do ensino da filosofia (as humanidades
e as ciências sociais) reside na transmissão dos ressentimentos de classe dos
professores aos alunos; a filosofia é tomada como instrumento para toda
doutrina grosseira, um grande equívoco devido às limitações que são geradas nos
alunos.
Ainda no início do século,
transbordaram críticas internacionais contra Günter Grass, Prêmio Nobel de
Literatura, por ter pertencido aos 16 anos às forças Waffen-SS, grupo de elite de
combate do exército da Alemanha nazista. Nas peles da cebola, livro de memórias
do autor, deu a seus detratores uma grande oportunidade de enterrarem sua
carreira. Pelo que me lembro, o escritor declarou não entender os motivos que o
levaram a participar da guerra, até ser preso pelos militares estadunidenses
aos 17 anos. Já no cativeiro, o véu da propaganda de guerra desapareceu do
espírito juvenil do autor e, ao ouvir os julgamentos de Nuremberg, não hesitou
em condenar para si mesmo sua inclusão no trágico teatro do século XX.
No entanto, para os puristas do dilacerado
progressismo intelectual, o autor de O tambor é um dos grandes
hipócritas da cultura moderna, o que é franca estupidez. Entendamos que no
contexto histórico ao qual também pertence Enzensberger (membro da Juventude
Hitlerista), era antipatriótico não ser agente ativo da história de seu tempo.
Os jovens lutaram pela pátria, pelos pais e pela figura “extraordinária” do
Führer que tudo via e ouvia. Conforme narra Enzensberger, sua saída das
fileiras do nazismo foi imediata, porém, o traço da barbárie permanece ligado
ao seu nome.
Um sonho inocente
Ao final da Segunda Guerra
Mundial, a Alemanha sofreu uma orfandade intelectual porque o nazismo realizou
um expurgo de pensadores que culminou na morte de alguns e no exílio de outros.
Na década de 1950, Hans Magnus Enzensberger começou a explorar sua vanguarda
com a poesia e o ensaio filosófico, exercício intelectual que o levou a
escrever A defesa dos lobos (1958), uma coletânea crítica contra o
discurso político de uma Alemanha diminuída que, três anos depois, cederia aos
caprichos dos Estados Unidos e da Rússia para dividir Berlim.
De A defesa dos lobos tomo os
versos: “Quem tem fome de mentiras? / Contemple-se no espelho: covardes / que
se assustam com a cansativa verdade / e têm nojo de aprender / e confiam aos
lobos a função de pensar. / uma argola no nariz é sua joia preferida. / Para
você nenhum engano é estúpido o suficiente, / nenhum consolo muito barato, /
nenhuma chantagem muito suave”; esses poemas começaram suas diatribes contra a
mídia que cimentou uma ideologia apologética de culpa por uma Alemanha que
precisa de aceitação internacional. Enzensberger tachava como inocentes não
apenas cidadãos comuns, mas também intelectuais em sua tibieza conceitual e
neonacionalista.
De forma tácita e romântica em sua
juventude, Enzensberger tentou reinventar e reconstruir o legado cultural e
intelectual de seu país, como também fizeram em seu estilo: Günter Grass,
Alfred Andersch e Heinrich Böll, aos quais décadas depois se juntaram os jovens
Elfriede Jelinek e W. G. Sebald, entre outros poetas, dramaturgos, escritores e
artistas conceituais. Durante a década de 1960, depois de ter sido um
espectador distante da cristalização da Revolução Cubana nas mãos de Fidel
Castro, Enzensberger se estabeleceu no país dos mares profundos sempre que
recusava residência nos Estados Unidos, era também um grande conhecedor da
literatura latino-americana, o que tornava sua viagem atraente. O objetivo do
pensador alemão era aprender com os cubanos e suas ideologias revolucionárias, para
replicar as formas e fundos em seu país; o “homem novo” de plenas liberdades deve
ter surgido dessa viagem, porém, o romantismo europeu deu lugar ao pessimismo
insular dos oprimidos. Durante sua peregrinação, descobriu que a teoria
libertária e as imagens vitoriosas dos líderes da Revolução Cubana tinham muito
a ver com a ficção.
Enzensberger, antes de partir para
Cuba em 1968, declarava com a embriaguez lírica da época em que a democracia
de-por-para a Alemanha estava morta. A única coisa que poderia salvar a
república era uma revolução. Essa declaração de princípios pode ser consultada
no número 15 da revista Kursbuch, publicada em 1968. Paralelamente,
Peter Handke estreava seu Kaspar, que abordava as impossibilidades da
linguagem em torno do mundo já industrializado da Alemanha, onde uma revolução
era a única rota contra o caos do anunciado fim de século nos anos 60.
O romance entre o socialismo de
Castro e a paixão exótica de Enzensberger foi breve. O interrogatório em
Havana foi um dos últimos esforços do escritor alemão para entender a
revolução somada aos conflitos políticos com os Estados Unidos, sem esquecer a
sombra da Rússia. O filósofo entendeu que a luta libertária que culminou em
aplausos no final dos anos 50, degenerou como toda ideologia, e que ele mesmo devia
amadurecer. O povo, ele descobriu, não gozava do usufruto da vitória, mas
outros: os gloriosos, os governantes, eram os que viviam felizes. Nessa época,
a virada das revoluções já se voltava para o Vietnã, embora Cuba não tenha
perdido protagonismo, tornou-se o objeto exótico do Ocidente, até hoje.
A neointeligência
Por volta de 2007, Hans Magnus
Enzensberger publicou O labirinto da inteligência, guia para idiotas,
uma obra brevíssima para estes tempos em que a inteligência pertence a um
estágio de métricas digitais. Ou seja: cada nova página que abrimos no
ciberespaço tenta nos redirecionar para um cenário ideal que se propõe a nos
ajudar a entender nossa “inteligência”, medi-la, aprimorá-la, viver em harmonia
com ela. Assim como as terapias psicológicas e psiquiátricas se tornaram moeda
de troca para e pelas massas, devido à natureza comum e óbvia de seus
comportamentos, a “inteligência” diminui seu ritmo para se tornar, como tantos
conceitos, uma palavra trivial e ineficaz. Os índices de “inteligência” estão
se tornando inúteis, porque não há uma resposta ideal para o que é “a inteligência”.
A reflexão colocada pelo filósofo
dita: “Então, nossa pequena caminhada pelo labirinto da inteligência nos leva a
uma conclusão simples: não somos verdadeiramente inteligentes o suficiente para
entender o que é a inteligência”. Enzensberger faz uma revisão histórica da
conceituação semântica de “inteligência” até que se torne um adjetivo
instrumental; vai de Santo Agostinho, passando por John Innys (criador do
“papel inteligente”, jornal londrino, em 1637); trata também da obra de Wilhelm
Wundt, fundador do primeiro instituto encarregado de investigar inteligência,
na Alemanha; e se detém a apresentar as teorias de Hans Jürgen Eysenck, na
época professor da Universidade de Londres, criador do teste de medição de QI
mais popular e utilizado até hoje; é um teste que não mede a inteligência ou a
sensibilidade de uma pessoa, mas apenas gera um quadro de referência dos gostos
de cada examinando.
Enzensberger explica como a “inteligência”
deixou de ser um conceito fundamentado na semântica greco-romana, onde
significava: razão, compreensão, sensibilidade e entendimento, para uma
ferramenta de marketing que reduziu tanto o conceito quanto seu valor
semântico e significado a um simples [i]. Assim, esta partícula [i], que não é
exclusiva e que pressupõe um valor agregado, anulou a “inteligência” como
verdadeiro valor e exceção para a humanidade, conferindo o mesmo nível a todo o
perecível artefato. Além disso, a “inteligência” entendida apenas como adjetivo
tornou-se o quadro referencial e decorativo de todos os produtos que chegam às
vitrines do mundo. A banalidade da “inteligência”, nesse sentido, atrai para si
outros conceitos que perdem seu valor como o “conhecimento”. A “inteligência” e
seu [i] colocado antes do produto não implica senão uma classificação própria das
variações. Deve-se à mercado-técnica o enfraquecimento da “inteligência” e a
nós, como uma raça temerosa do “conhecimento”.
O ser humano navega hoje nas águas
escuras dos pixels, momento histórico onde triunfa a consagração do infantilismo
e as ferramentas digitais nos conquistam ao nos dar aceitação universal, sem a
necessidade de contribuir para o aumento do “conhecimento” através da
“inteligência”. Se somos todos inteligentes, o que mais saber ou não a verdade
das coisas.
Migração capitalista
Nos Ensaios sobre as discórdias
contém uma das reflexões mais interessantes sobre a migração, pelo menos
deste início de século. Embora, como todo ensaio que aborda o assunto, parta de
uma análise dos nômades dos primeiros tempos, e aborde os êxodos históricos
tanto no Ocidente quanto no Oriente; fala abertamente sobre os conflitos que
qualquer migração pode gerar em uma sociedade. Enzensberger aborda o egoísmo e
a xenofobia como traços fundamentais com os quais todos os imigrantes enfrentam.
Sem mencioná-lo abertamente, o autor aponta para a tácita “Lei da
Hospitalidade” que todos os migrantes devem respeitar dependendo da região para
a qual seu êxodo os conduz. As regras de comportamento social que os migrantes
devem cumprir sem escrúpulos ajudam a gerar um equilíbrio que afasta todo tipo
de conflito social em cada região, cidade ou comunidade que os recebe. Nos
tempos antigos, essas regras eram praticadas e aplicadas para evitar massacres
e assimilações culturais fracassadas.
Hoje, muitos migrantes, ao chegarem
a um novo espaço, reivindicam direitos e exceções que nem todas as nações
desejam oferecer. A esse respeito, pensadores e escritores contemporâneos, como
Jean-Baptiste Del Amo, defendem uma profunda migração na França; e outros, como
Petros Márkaris, ele próprio um migrante na Grécia, comentam que nem todos os
países podem receber migrantes ou são obrigados a fazê-lo. Esclareçamos que o
contexto a partir do qual Márkaris o explica tem a ver com a subsistência econômica
de uma cultura que é obrigada a orientar os seus mercados de trabalho para os
migrantes que, devido à sua condição de protegidos pelos direitos humanos, se
sobrepõem aos habitantes locais.
Abandonando o politicamente
correto, Enzensberger mergulha na complexa batalha travada pelos migrantes, uma
vez assentados independentemente da região para reivindicar sua identidade, o
que abre caminho para ressignificações nacionalistas em solo estrangeiro, que
posteriormente podem desencadear violência. Isso nos leva a lembrar romances
como Submissão, de Michel Houellebecq, onde o Islã toma o destino e
conquista o Iluminismo francês até convertê-lo numa terra do Oriente no coração
do Ocidente. O autor alemão não é contra a migração em si, mas faz uma crítica
simples: até que ponto os países ocidentais estão preparados para receber ondas
de migrantes de todo o mundo?
Diante das exposições de
Enzensberger, uma vez relidos os conceitos e compreendida sua dimensão, penso
que a migração do século XXI pode ser redescoberta como uma possibilidade
infinita de retórica empresarial e econômica. Explico: certos países, se forem
estratégicos, poderiam usar os migrantes não como mão de obra barata, mas como
fundo de investimento. É o que aconteceu com a Turquia em 2016, quando a União
Europeia lhe concedeu, a título de ajuda humanitária, 6 bi de euros para conter
a migração síria. Embora esta não fosse uma estratégia turca, mas da UE, o
apoio financeiro continuou a ser entregue até 2020. O capital foi direcionado
para ONGs e não para o bem-estar dos migrantes. O trabalho discursivo
extremamente xenófobo triunfou efetivamente na Europa; e a América Latina é uma
terra fértil, maleável contra suas comunidades.
* Este texto é a tradução livre
para “Laberintos entre idiotas: Hans Magnus Enzensberger”, publicado aqui em Confabulario.
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