Encruzilhadas de caminhos: o novo romance de Jonathan Franzen
Por José Homero
Jonathan Franzen. Foto: Ian Allen |
“Todas as famílias felizes se
parecem...”, diz um incipit tão famoso quanto aquele do lugar cujo autor
não consigo me lembrar. Desde seu segundo romance, Tremor (1992), a
concepção romanesca de Jonathan Franzen (1962) está enraizada, principalmente,
na configuração de famílias cujos infortúnios se tornam socialmente
emblemáticos. Se tal interesse poderia sugerir intimismo, a verdade é que o desmesurado
nativo de Chicago persegue essa obsessão que angustia todo romancista estadunidense:
escrever “o grande romance americano”, figura de uma época e espelho de seu
tempo, refletindo sobre o microcosmo familiar. Atualmente considerado o melhor
romancista estadunidense — Wallace e Roth morreram — conseguiu isso em As
correções (2001) e, em menor medida, Liberdade (2010).
A Encruzilhadas (em tradução
portuguesa), o primeiro de uma trilogia que cobrirá os últimos 50 anos, enfoca
os Hildebrandt que durante o Natal e a Páscoa de 1971 e 1972 — nada menos que
os feriados mais importantes do cristianismo —, viveram acontecimentos decisivos.
O patriarca Russ é um pastor ansioso para se envolver com uma atraente
paroquiana que busca se livrar de seu triste casamento. Marion, por sua vez,
planeja perder peso para retomar o relacionamento conturbado que teve na
juventude. Clem, o filho mais velho, foi recrutado pelo exército, enquanto sua
irmã, Becky, decide roubar o namorado de outra enquanto experimenta maconha; e
o adolescente Perry supõe ser bom e decide largar as drogas. Numa melodia
familiar aos leitores de Franzen, cada membro desta família do meio-oeste
coloca sua liberdade contra a dos outros. O resultado, como em toda
encruzilhada, será a colisão ou a separação ordenada das trajetórias. Esse
significado é estabelecido textualmente, além do título, em dois episódios
sincronizados: quando Perry se vira em uma bifurcação rumo ao seu colapso e quando
Marion sai da periferia de Los Angeles para um aviso sobre o destino de seu
amado filho insano.
As histórias individuais são
distribuídas em capítulos. Não são uniformes, porém, nem na ordem nem na
extensão. A primeira rodada da narrativa — deve-se chamar algo assim — conclui
com o capítulo correspondente à mãe, cujo tamanho e disposição — no final,
quando por hierarquia deveria seguir a do pai — aparentemente perturba o todo.
A história de Russ, por sua vez, merecerá outro longo capítulo que, como o
capítulo dedicado a Marion, é em si um romance. E na segunda rodada da primeira
parte — “Advento” — dois capítulos contíguos referem-se ao presente de Russ, um
localizado no agora da história, o segundo mais atrás, para expor sua luta com
Rick Ambrose, o carismático jovem pastor que lidera o grupo Encruzilhada, um dos
vários cruzamentos sugeridos desde o título, e o coração das aventuras.
Não muito sutis, os títulos de
Franzen indicam uma leitura conceitual: “Correções”, “Pureza”, “Liberdade”… Encruzilhadas não é a
exceção e se mantém relações intertextuais com a canção de Robert Johnson
através de sua conversão por Cream, “Crossroads”, e denotativamente com o nome
do grupo de jovens, num percurso transcendental remete às figurações da
palavra: “Ocasião que se usa para ferir alguém, emboscada, espreita”, e “situação
difícil em que não se sabe o rumo a seguir.” O aceno a este último significado é
evidente, mas o primeiro também reverbera aqui: são decisões que perturbarão a
vida dos personagens e de seus familiares. No entanto, a verdadeira
encruzilhada é simbólica. Conversa no Catedral (1969), de Mario Vargas
Llosa, um autor que Franzen leu proveitosamente, indagava: “Quando o Peru se
ferrou?” Quase um refrão por sua paráfrase, dito incipit parece mais uma
anáfora estrutural; motivo condutor para embaralhar as hipóteses. Da mesma
forma, as “encruzilhadas” são os debates éticos e morais que envolvem os
personagens em uma contradança cujos parceiros estão há muito tempo em más
relações: a culpa e o perdão; a fé e o ateísmo; a liberdade e a predestinação; o
engajamento e a conscientização cívica; os privilégios raciais e a constatação
da “injustiça epistêmica”; a integridade e o lucro.
De forma mais transcendente,
“crucial” é o conflito da sociedade estadunidense contemporânea, cujas mudanças
desafiam os protagonistas. Assim, Russ, criado em uma comunidade religiosa
isolada, enfrenta a possibilidade do divórcio e a experiência com a maconha.
Enquanto Clem, um estudante universitário com princípios firmes, está dividido
entre se opor à ocupação do Vietnã — o pacifismo de usar — e o dever moral:
tomar uma posição independentemente de suas consequências. Outros personagens
também sofrem escolhas disjuntivas que vão desde compartilhar uma herança até
romper com o parceiro.
E embora menos visível que o
acional, a bifurcação é igualmente a passagem do otimismo ingênuo dos anos 1960
para um mergulho num território de pesadelo, os anos 70, onde uma ideologia
fundada no egoísmo e na busca do prazer surgirá como corolários daquele
niilismo que já anuncia o inferno mental de Perry.
Além do desejo de circunscrever a
história inconstante em um caldeirão fictício, Franzen é quem melhor reflete os
tormentos da consciência pós-moderna com longas inquisições que são lições de
configuração literária. “Consciência” implica aqui tanto como o personagem
constrói sua personalidade — “consciência” — quanto o reconhecimento do bem e
do mal; mas também como os estímulos externos influenciam nossas ações e como
percebemos os outros. Sutilmente, Encruzilhadas repassa a fé e suas
diversas facetas religiosas, sem deixar de lado as respostas da filosofia do
século, inclusive a pauta política dos movimentos igualitários.
Nesse sentido, a sátira mais clara
ataca a racionalidade como outra forma de loucura, segundo a decomposição de
Perry. A rota sensual como a da razão fria conduz aos males contemporâneos,
Franzen parece insinuar. Se houvesse um antídoto, seria encontrado na
comparação de ideias; como Russ entenderá, “há mais de uma maneira de esfolar o
gato”, e se esse ditado expande seu horizonte religioso, por que não o tomar
como uma lição de vida?
Cativante e complexo,
racionalmente intrincado e exuberante na exploração psicológica, a base desta
trilogia em andamento captura uma era através do instantâneo que é sua vasta e
meticulosa narrativa. E se, de fato, todos os romances de Jonathan Franzen são
semelhantes, podemos ver que neles cada uma das famílias protagonistas tem um
motivo especial para se sentir miserável.
* Este texto é a tradução livre de “Cruce
de caminos: una reseña sobre la nueva novela de Jonathan Franzen”, texto
publicado aqui, em Confabulario.
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