Tempo ao tempo. Itinerário poético de José Saramago
Por José María Muñoz Quirós
José Saramago. Foto: Gonçalo Rosa da Silva |
Os poemas possíveis
1. Até ao sabugo
A trajetória poética do escritor
português José Saramago se inicia tardiamente, numa idade pouco habitual para
escrever poesia, para se abrir caminho na linguagem literária exigida pelo
poema.
Com quarenta e quatro anos aparece
a primeira edição de Os poemas possíveis e este livro se inicia com uma
citação que esclarece o sentido do labor poético de Saramago: tempo ao tempo
para encher o vaso da palavra, para fazer-se poeta, para exercer a alta missão
da escrita.
Neste livro, cuja primeira parte
se intitula “Até ao sabugo”, é o ponto de partida que favorecerá diferentes
campos e territórios nos quais o escritor se moverá; se desenvolverão ideias e
conceitos que já aparecem no primeiro poema cujo título é o mesmo que a
primeira do livro.
Para escrever poesia é preciso ter
algo a dizer, é preciso sentir a urgência e a razão última dessa primeira
maneira de falar, de expressar, de fazer arte e de comunicar quanto vive e
habita em seu interior. O autor tem muito claro que a poesia é juntar palavras
ao acaso, e que esse acaso conduza a uma certeza na qual a vida vá abandonada,
pendente, atada e concebida com a verdade.
Existe um poema nesta parte do
livro que o autor denomina “Arte poética” e que, de fato, é uma poética que
demonstra a todos os leitores que escrever poesia congrega um esforço e uma
intensidade para conhecer a procedência da matéria poética, para adivinhar o
lugar de onde se forma esse misterioso acaso que é o poema, os ingredientes
naturais e vitais que o poeta deve situar em cada um dos textos: flor, cor,
amor, corpo... tudo isso esboçado e moldado “com firmeza, ritmo e consciência”.
Uma vez elaborado o caminho que seguirá
a poesia de José Saramago, atravessaremos por distintos enquadramentos que nos
apresenta seu fazer, desde a visão exterior ao impulso interior.
É muito significativo o poema “Programa”
em que o autor refunda um rol de temas possíveis, uma sequência do que pode
levar um poeta a escrever, um conjunto de visões nas quais intervirá a eclosão
da poesia.
José Saramago usa o verso com a
elevação de um intimista mas, ao mesmo tempo, se deixa envolver num misterioso
dom de elementos cotidianos, externos, alheios, às vezes impróprios à matéria
poética.
No poema “Dia não” o autor mostra
a mecânica que deve organizar o sentido de um texto, as origens e os desertos,
os vazios e os espaços que se planificam num poema: o desnudamento deve
acompanhar o poeta para que o verso seja objetivo, limpo, e deixe de lado os
que outros já disseram. Está muito próximo à busca de uma identidade original,
não uma pureza formal mas um embrionário e dinâmico mundo em conexão com o objetivo
último que persegue.
O poema é, como disse o autor, um
altar no qual se deve sacrificar o verso e adorar, num gesto divino, o fogo da
vida aí pressentida.
A poesia tem um duplo jogo: por uma
parte é a marca que identifica o estado último do poeta. Por outra, entronca
com um lugar escondido no tecido do espírito, sem ser nunca espiritual, mas
existencial, vivencial, rotundamente humano.
No texto “Passado, presente, futuro”,
José Saramago alardeia a criação fundamentada em três momentos: o que foi, o
que é e o que poderá ser. No passado se assenta uma incógnita que não quer
desvelar-nos, que não precisa apresentar-nos nem nos fazer partícipes dela. No
presente, a pequenez de sua vida leva-o a expressar que é pouco o que é, o que
o habita quando escreve o poema. O amanhã, sempre incerto, está intuído num
possível cantar sonoro à maneira do batráquio, com som repetido e apenas capaz
de pronunciar um só sentimento profundo.
No livro Os poemas possíveis,
Saramago ensaia uma continuada maneira de captar o poético. É um exercício
lúcido de consciência de poeta, um poemário em que o leitor se sente
identificado na obstinação com a qual permanece nesse lugar pretérito que é a
escrita.
“As palavras são novas”, talvez
como exercício de fundação da linguagem que o poeta busca em cada texto.
Deseja inventar, com poetas que
assinalam e circundam distâncias. A poesia é sempre palavra, é “Questão de
palavras”, risco de escrever ante um papel em branco, porque a palavra pode
estar morta, presa, incerta, (neste momento José Saramago e José Hierro coincidem
na imagem de dissecação que a poesia tem, a mesma que faz o taxidermista),
também a relação do poema com as rosas secas, com as flores que não obtêm
perfume (também aqui coincidem os dois poetas). As palavras questionam a beleza
do que dizem, se fazem da matéria ácida da possibilidade de existir no poema,
são parte ingênua da escrita que forma um “pequeno cosmos” de coisas elementais
do universo.
A memória escreve a existência do
homem: “Há na memória um rio onde navegam/ Os barcos da infância, em arcadas/
De ramos inquietos que despregam/ Sobre as águas as folhas recurvadas.” O que a
memória constrói está latente na pena do poeta, apegado ao mais agudo de sua
escrita, sangrando pela ferida de sua obsessiva incapacidade de dizer o que
sente. Memória e vida. Vida e memória. Construir o que foi mas iluminá-lo da concepção mais livre da vida, à maneira de
fonte, à maneira de estanque em abandono e em solidão, como a vida que é negada
e que só é um tempo oscilando, um ontem vazio.
Existe um poema moderníssimo e
medido no que próprio autor que se escreve uma carta: “Carta de José a José”.
Neste texto de intenso valor poético o poeta passa em revista as inquietantes
questões que afetam em seu labor criativo. Dois personagens têm um mesmo
objetivo: José poeta e José pessoa, e nesta dualidade se produz um diálogo
secreto e fundo, a luz e a sombra buscam-se numa desesperada premonição de
encontro.
2. Poema a boca fechada
Na seção “Poema a boca fechada” a
poética se afirma mais no papel que o escritor deve assumir frente a vida,
deixando de um lado o metapoema que inicia o livro. A música, a contemplação, a
reflexiva visão do mundo, tudo construído em breves poemas, de uma linguagem
objetiva e com uma preocupação assentada na comunicação com os demais seres. José
Saramago se levanta contra certas posturas que na voz do poeta devem implorar
liberdade e vida, e que, algumas vezes, estão distantes da preocupação estética
do escritor.
3. Mitologia
“Mitologia” é uma seção em que o
autor mira o mundo assombrado pelos deuses que formam a cultura na qual está
imerso. O poema “Natal” é determinado pelo mito que o autor pressente na retina
clara da luz que situa o Natal: “Nada acontece”, diz o final do poema como um
horizonte onde o autor vê o brilho da vida em sua cotidiana existência, um dia
outra vez, um momento mais, sem dar maior importância ao que aconteceu ao seu
redor.
“Fazer da Terra um Deus que nos
mereça,/ E dar ao Universo o Deus que espera” — com estes versos José Saramago
afronta um dos temas mais profundos de sua posição ética e estética frente ao
universo criador: o sentido da vida, a razão da existência, o permanente olhar
do homem que contempla o que o cerca, próximo do vitalismo que proclama como
necessidade para habitar esse mundo nosso. A poesia, nesta fase, carece de todo
deslumbramento estético, e é em sua extensa nudez que alcança os mais belos
sucessos. O conceito está acima do efeito. A ideia mergulha em águas muito mais
profundas que a roupagem que a sustenta. O tom religioso, sem cair em nenhum
tópico nem em nenhuma observação pagã, pode-se observar em poemas como “A um
Cristo velho”, “Judas”, “Sé Velha de Coimbra”.
4. O amor dos outros
“O amor dos outros” inaugura uma
formalização poética nova (não no sentido formal e sim na força interna do
poema). A figura de D. João constitui um referente amoroso que conduz o poeta a
expor três condutas do personagem: a) Orgulho de D. João no inferno; b) Lamento
de D. João no inferno; c) Sarcasmo de D. João no inferno.
No último dos três poemas diz: “Nem
Deus nem o Diabo amaram nunca/ Desse amor que junta homem a mulher:/ De pura
inveja premeiam ou castigam,/ Acredite, no resto, quem quiser.”
A poética amorosa se complementa
com outras visões sobre mulheres e personagens históricas: Inês de Castro,
Dulcineia, Dom Quixote, Sancho, Julieta, Romeu… finalizando com o poema “West
Side Story” que sintetiza a posição do autor sobre o amor exposta nos poemas
anteriores.
5. Nesta esquina do tempo
A seção do livro “Nesta esquina do
tempo” pode ser considerada como uma visão madura da linguagem poética. A poesia
insinua nestes poemas uma visão muito mais complexa e mais profunda do contexto
de José Saramago. Nos poemas se intensifica o conceito de temporalidade, de olhar
interior em seu próprio mundo criador, e se aprofunda no conceito puro do
poético.
O texto “Receita” se inclui na
poética da ironia, da autocomplacência e por sua vez, duramente, na visão pragmática
do poético: “Tome-se um poeta não cansado,/ Uma nuvem de sonho e uma flor,/
Três gotas de tristeza, um tom dourado,/ Uma veia sangrando de pavor”. A
receita é o resultado da humanização do sentimento poético, a burlesca e
profunda visão do poeta em seus elementos básicos que constitui o feito de
viver e de criar.
Nesta seção do livro encontramos
uma contínua reflexão sobre a guerra, o poder, o erro de não saber encontrar o
caminho mais autêntico, a transparência do sentimento, tudo isso na esquina do
tempo, onde se encontra nesse momento o poeta, e onde encontra o outro, o
próximo: “Onde os lírios abertos adormecem/ A mordência das horas corrosivas” —
que é o espaço ritual onde se neva em mares de tempo, em fuga da obsessiva
quietude e se divisa o mais alto horizonte do silêncio.
Os espaços são sempre lugares para
encontrar resposta do invisível. “De tudo se faz nada, e esse nada/ De um corpo
vivo logo se povoa,/ Como as ilhas do sonho que flutuam, / Brumosas, na memória
regressada.” Novamente a memória se transforma em labirinto, em lugar em que a
perda da poeta de saída está escondida nas sombras. Talvez a poesia neste
momento se converta num reflexo de outro labirinto maior, num espaço curvo e
finito, numa obsessão de pesadelo, idêntica ao que o poema constrói quando diz:
“Nove círculos de inferno teve o sonho,/ Doze provas mortais para vencer,/ Mas
nasce o dia, e o dia recomponho:/ Tinha de ser, amor, tinha de ser.” —
convertendo a existência cotidiana no vencimento da realidade frente ao sonho,
do que as mãos tocam, e a palavra frente ao desconhecido, ao oculto, ao inominado.
A paz e a guerra constituem duas
palavras nas quais o poeta introduz toda a carga emotiva, o compromisso e o
olhar mais atento sobre a consequência da vitória do homem sobre a dor.
O fado, essa música que em
Portugal conduz à melancolia, à meditação aproximada do silêncio, abrindo no
coração uma passagem que leva a saudade, ritmo e palavra, cadência e
sofrimento, sentimento e vivência, misturados num doce sabor de amor. Assim
escreve Saramago essa música que é o hino dos vencidos, a paixão dos que vivem
no amor.
A morte, tema tão literário e tão
poético, não é alheia ao compromisso poético de Saramago, buscando nos reconvexos
do entendimento a forma de se explicar com maior verdade o mistério que acolhe
o homem em toda sua extensão: “Não, não há morte./ Nem esta pedra é morta,/ Nem
morto está o fruto que tombou:/ Dá-lhes vida o abraço dos meus dedos,/ Respiram
na cadência do meu sangue,/ Do bafo que os tocou.” — a negação supõe uma
aproximação ao sentido mais transcendente do mortal, apropriando-se de todo o
conceitual como a salvação de sua própria busca. A memória da vida incide a
sublimação da morte.
Quando o poeta reza, não o faz a
Deus, esse desconhecido que não encontra resposta em sua capacidade de conhecimento.
A memória da vida é o deus único a qual se encomenda o poeta, e nesse âmbito se
move a consideração que precisa entender melhor o que o cerca, as diversas
maneiras de enfrentar-se ao mundo que lhe causa o desvelo último e o sentimento
de transcendência no não transcendente, de descoberta no desconhecido.
O inventário da vida é o conjunto
de perguntas que o poeta se faz quando observa seu próprio viver, a matéria de
que estão feitos os dedos, as pernas, o andar do objeto amado. Quando Saramago faz
inventário dos seus bens amorosos, se dá conta de que tudo está elaborado num
cosmos idílico, abraçado, sustentado nas pequenas coisas que faz os grandes
temas da vida. A arte de amar é o paralelo sentido da dupla vivência, a pele, o
suor que elabora do trabalho e elabora do amor, que gera vida em luta e vida em
enfrentamento amoroso.
A intuição poética vai
atravessando diversos conceitos que surgem, por uma parte, repetindo-se, e por
outra, renovando-se, abrindo caminhos na expressão lúcida, na interrogação
retórica que muitas vezes culmina em seus poemas como uma pergunta ao leitor
que não tem resposta, que permanece aberta, intuída, reflexo do que o verso
deve supor tanto para o poema como para o leitor, decodificador do conteúdo último
da linguagem poética.
Formalmente, não é habitual
encontrar um soneto na obra de Saramago: esta forma clássica, encerrada em
catorze versos rimados, capaz de envolver uma ideia e chegar ao final com a
absoluta tranquilidade do corredor em segundo plano envolto num verso, apenas
num verso.
Saramago escreve “Soneto atrasado”,
texto com muito do perfume clássico, mobilizado num ritmo decadente, assumido
pela rima que vai abrindo sons diversos em cada uma das estrofes. Este soneto
bebe da fonte amorosa portuguesa que deixou aberta a poesia do Renascimento,
talvez como prova formal de que o autor é capaz de se mover nos limites de um
soneto.
A natureza adquire vitalidade em
alguns dos poemas deste extenso livro. O mar, as montanhas, o horizonte, a
fonte se simbolizam em elementos carnais porque, em definitivo, a poesia de
José Saramago é um retorno constante e continuado ao sentido amoroso do homem,
à entrega, à vivência física e emocional do amor, fator absoluto sem o qual a
poesia não tem sentido. Podemos afirmar que o poeta português é, ante tudo e
sobretudo, um escritor que se introduz no espírito para adquirir um
conhecimento maior da aventura amorosa, dessa linguagem que o homem precisa saber
para ser mais humano, para encontrar sentido ao que a vida o presenteia a cada
instante.
No poema “Corpo”, Saramago
aprofunda o universo único da vida entendida como salvação do instante, o
sangue, a memória, o tempo que se reflete nos olhos e no corpo, entendendo que
o viver é um desgaste positivo, um estar no caminho comprometido,
perguntando-se e respondendo-se sempre, domando a dor de viver nesta jaula que
é o tempo. A rosa, esse símbolo que ultrapassa qualquer linha da literatura
ocidental, identificando a flor com a juventude, a vida plena, o amor, a beleza,
o retumbante e o invisível, adquire em Saramago uma indeterminada definição do
corpo, da noite, do sangue, da vida breve: “Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida/
Neste cantar das aves nos meus ombros.” — versos de inspiração quase
castelhana, com ecos de Fray Luis de León e dos poetas do Siglo de Oro espanhol.
A noite está determinada
poeticamente pela escuridão misteriosa, sombria, mar de monstros, onde se
cobiçam os sonhos, essa matéria funcional que constitui o germe de uma visão nova
sobre a realidade. Saramago viajou neste livro de poemas pela mão dos fantasmas
mais irreconhecíveis, com a linguagem mais intimista, mais fiel à verdadeira paixão
do escritor por concretizar, por estar preso em sua esquina do tempo, onde
olhar e a partir de onde contempla a incerteza que o mantém vivo, objeto de
amor e permanente poeta em vigilância contra a injustiça, o sofrimento e a
guerra.
José Saramago. Foto: Gonçalo Rosa da Silva. |
Provavelmente alegria
Provavelmente alegria
inaugura um novo ciclo de constantes referências literárias, iniciando-se com
um poema dedicado ao mestre da poesia portuguesa, Luís de Camões, modelo de
serenidade poética e como diz o próprio poeta: “Meu amigo, meu espanto, meu
convívio,/ Quem pudera dizer-te estas grandezas,/ Que eu não falo do mar, e o
céu é nada/ Se nos olhos me cabe.” Neste texto apresenta-se um poeta mais intenso
e mais introspectivo. Bem se reconhece o significado da poesia do autor
português e esta reflexão literária e humana serve a Saramago para voltar o
olhar sobre si mesmo, retroceder no tempo e no espaço, no significado grandioso
da literatura com maiúsculas.
No texto “O primeiro poema”, o
leitor encontra o mundo sensual no qual se move o conceito formal da poesia de
Saramago. A água, a luz, as flores, o universo perfumado e pleno de cor, a
quimera desconhecida do verso que ainda não existe, tudo isso volta a ser
consciência poemática do poeta, retorna como um conhecimento aprendido no tempo
e restabelecido na atual poética.
Saramago nunca envelhece a nível
literário; amadurece, recria com novidade e novos sentidos a semântica
aprendida e usada em outros livros anteriores, se retroalimenta com a sabedoria
que o magistério da idade vai dando ao escritor, e o poético se converte em consubstancial
sentido mágico da linguagem, a conotação mais sugestiva do conhecimento da vida
através das palavras.
Os poemas deste livro são similares
aos do primeiro, tendo em conta que a brevidade dos textos obriga o escritor a
intensificar as emoções que se plasmam nos poemas.
A rima resulta num elemento sutil
quando é usada por ele mas não como um gerador rítmico e sim como um espaço de emoção
formal.
O amor continua constituindo um
eixo temático que se completa com a experiência vivida num mundo muito
reafirmado pelo olhar que gera a passagem do tempo.
No poema breve “Devagar, vou
descendo”, Saramago diz: “Devagar, vou descendo entre os corais./ Abro,
dissolvo o corpo: fontes minhas/ De águas brancas, secretas, reunidas/ Ao
orvalho das rosas escondidas” — texto impressionista que emociona pela ligeira transformação
de seus elementos que vão se justapondo ao texto por um maior confronto
interior do poeta em sua ademão de expressar o inominável, o impossível, o
único, como a poesia exige do bom escritor.
O humor não é habitual na poética
de Saramago. Sim, a ironia é sutil, a firme expressão de um mundo particular
que atravessa por diferentes periferias da emoção: no poema “Tenho um irmão
siamês” deixa aparecer esse sentido de autoironia, de olhar fervoroso e
complexo em si mesmo: “Tenho um irmão siamês/ (Há quem tenha, mas o meu,/
Ligado à sola dos pés,/ Anda espalhado no chão,/ Todo mordido de raiva/ De ser
mais raso do que eu.)” — antecipando-se a esse olhar cada vez mais profundo que
se desenvolverá nos poemas seguintes, na última fase de sua poesia.
Caberia se perguntar se o poeta
utiliza os mesmos pensamentos construtivos nos poemas que noutros gêneros literários,
isto é, se a afirmação de sua própria temática está diluída em qualquer forma
expressiva, seja qual seja a linguagem. A resposta pode ser evidente: ninguém pode
escapar de seus fantasmas, das preocupações mais profundas, do sentido ético
que a literatura constitui para quem pretende fazer dela um mecanismo valioso
de conhecimento e de aprofundamento na alma humana, nas camadas da sociedade,
na dinâmica que o homem precisa para se sustentar na difícil tarefa de viver.
Um escritor como Saramago bebe na
fonte da poesia quando não sabe nem pode dizer de outra forma o que lhe ronda
no espírito, os fantasmas de seu conhecimento intuitivo do mundo. O poeta José
Hierro dizia que a poesia é a maneira de dizer o que é impossível de dizer de
outra forma. Consideramos que Saramago bebe desta definição e coloca em prática
na poesia o que não poder expressar na prosa, no conto, na crônica, ou no
romance.
O sugerido, na poesia, é sempre um
motor que intensifica a impossível sensação de comunicar, que atravessa as
paisagens mais complexas da intencionalidade, e desta forma um poema breve
esconde sob suas palavras uma maior e extensa capacidade de dizer, de informar não
o objetivo, mas o impreciso, o impossível, o que não cabe noutras páginas mais
extensas.
A palavra alma não é apenas
utilizada por José Saramago; existe um poema que recolhe em seu título e em seu
conteúdo este conceito: “Tenho a alma queimada”. Neste texto tardio de sua
criação poética esboça algumas ideias que retornam ao texto depois de tentar o
desenvolvimento em outros momentos de sua obra: “Tenho a alma queimada/ Por
saliva de sapo/ Fingindo que descubro/ Tapo”. A pontuação desparece neste texto
num gesto não comum noutros poemas.
Alguns poemas mais extensos completam
o andamento deste livro; poemas como “A ponte” ou “Elegia à moda antiga”, dois
exemplos do desenvolvimento textual mais elaborado, embora nem por isso mais
intenso.
Chama atenção o sentido que
Saramago atribui à pedra, palavra muito recorrente em alguns poemas de máxima
importância. O verso é pedra, cimento, diz o poeta, não muralha, porque o que
afunda na terra não é o valioso, o grandioso, o mágico. A pedra constitui a
herança do tempo, o reflexo sinuoso do que foi vivido, memória intacta de
quanto corresponde a fragilidade do ser frente à paisagem desigual da existência.
O ano de 1993
Último dos livros que formam a
poesia completa de Saramago, O ano de 1993 marca um giro formal no seu conceito
poético. Os poemas convivem com o gênero da prosa poética, alargando-se e
incorporando-se a uma linguagem livre, mais musical, menos contundente. Livro que
nos apresenta uma linguagem poética realizada com pequenos enigmas líricos,
aproximando-se aos interesses que o conto pode supor para um escritor: “Os habitantes
da cidade doente de peste estão reunidos na praça grande que assim ficou
conhecida porque todas as outras se atulharam de ruínas”. A retórica deste
livro joga com o sentido plástico da palavra, afastando-se de outros conceitos
mais poéticos como o desenvolvimento formal, conseguindo neste livro uma aproximação
muito útil ao leitor, oferecendo-lhe maiores pistas textuais, como se fossem
pinceladas de um quadro.
É o mento mais intenso da poética
de Saramago. É formado por trinta poemas unidos com um laço comum de forma
análoga e também com uma ligação íntima, à maneira de capítulos de uma
história, que o leitor pode conhecer linearmente ou saltando de um momento a
outro para encontrar as referências de sua linguagem.
“Ninguém morrera subitamente ninguém
fora arrebatado aos ares pelas águias mecânicas que os ocupantes lançavam sobre
os bandos fugitivos”, versículo de um dos textos mais objetivos do livro, ponto
de interseção da história que Saramago nos propõe neste livro singular, gérmen de outras histórias posteriores que desenvolverá
na forma romanesca, exercício lúcido de linguagem e de autoafirmação de ideias
que contemplam o universo inventivo e poético do autor.
A conquista de uma história com
base poética surge como resultado de uma permanente busca e observamos no texto
diversos procedimentos mistos: o objetivo e o subjetivo entremeados como duas
fontes de conhecimento; a emoção transformada em sensação para que o leitor
tenha as conotações da linguagem proposta pelo autor; o irracional, sem chegar
a ser surrealista, sem tocar o fundo do onírico, intervindo no valor do clímax
e fazendo avançar a história com imagens transformantes e de singular beleza; a
presença de personagens genéricos, de personagens paisagísticos, de personagens
morais que simbolizam cânones de conduta.
E ainda: a extensão formal da
linguagem em estrofes prosaicas, uma invenção de Saramago para dotar o texto de
uma continuação que se prolonga nos trinta momentos do texto; os recursos
intensos da memória e da infância como fundamentos de uma consciência do
interior do texto, atraindo aos poemas um caudal ingente de sensações vividas,
de resquícios que a infância deposita na voz do livro.
Todas essas razões determinam o nível
de renovação que supõe este texto do escritor português. O final da história não
é um final: fica aberto o olhar do leitor para que incorpore no texto o que seu
pensamento aponta: “Uma vez mais enfim o mundo o mundo algumas coisas feitas
contadas tantas não e sabê-lo/ Uma vez mais o impossível ficar ou a simples
memória de ter sido/ Consoante se conclui de nada haver debaixo da sombra que a
criança levanta como uma pele esfolada.”
No começo da poesia de José
Saramago, Antonio Machado servia de pórtico para deixar claro que o tempo é o
que enche os vasos da vida, quem faz crescer o caudal das palavras para poder ter
uma consciência comprometida com a vida. Nunca se enche totalmente. Como disse
Saramago muito lucidamente: “Condenados a encher em vão
durante toda a eternidade um barril sem fundo, como todos nós que vamos
colocando letras após letras à espera de que o infinito se deixe tocar algum
dia”.
Ligações a esta post:
* Este texto foi publicado
inicialmente na 100.ª edição da revista República de las Letras,
organizada por Andrés Sorel.
Comentários