Tempo ao tempo. Itinerário poético de José Saramago

Por José María Muñoz Quirós

José Saramago. Foto: Gonçalo Rosa da Silva


 
Os poemas possíveis
 
1. Até ao sabugo
 
A trajetória poética do escritor português José Saramago se inicia tardiamente, numa idade pouco habitual para escrever poesia, para se abrir caminho na linguagem literária exigida pelo poema.
 
Com quarenta e quatro anos aparece a primeira edição de Os poemas possíveis e este livro se inicia com uma citação que esclarece o sentido do labor poético de Saramago: tempo ao tempo para encher o vaso da palavra, para fazer-se poeta, para exercer a alta missão da escrita.
 
Neste livro, cuja primeira parte se intitula “Até ao sabugo”, é o ponto de partida que favorecerá diferentes campos e territórios nos quais o escritor se moverá; se desenvolverão ideias e conceitos que já aparecem no primeiro poema cujo título é o mesmo que a primeira do livro.
 
Para escrever poesia é preciso ter algo a dizer, é preciso sentir a urgência e a razão última dessa primeira maneira de falar, de expressar, de fazer arte e de comunicar quanto vive e habita em seu interior. O autor tem muito claro que a poesia é juntar palavras ao acaso, e que esse acaso conduza a uma certeza na qual a vida vá abandonada, pendente, atada e concebida com a verdade.
 
Existe um poema nesta parte do livro que o autor denomina “Arte poética” e que, de fato, é uma poética que demonstra a todos os leitores que escrever poesia congrega um esforço e uma intensidade para conhecer a procedência da matéria poética, para adivinhar o lugar de onde se forma esse misterioso acaso que é o poema, os ingredientes naturais e vitais que o poeta deve situar em cada um dos textos: flor, cor, amor, corpo... tudo isso esboçado e moldado “com firmeza, ritmo e consciência”.
 
Uma vez elaborado o caminho que seguirá a poesia de José Saramago, atravessaremos por distintos enquadramentos que nos apresenta seu fazer, desde a visão exterior ao impulso interior.
 
É muito significativo o poema “Programa” em que o autor refunda um rol de temas possíveis, uma sequência do que pode levar um poeta a escrever, um conjunto de visões nas quais intervirá a eclosão da poesia.
 
José Saramago usa o verso com a elevação de um intimista mas, ao mesmo tempo, se deixa envolver num misterioso dom de elementos cotidianos, externos, alheios, às vezes impróprios à matéria poética.
 
No poema “Dia não” o autor mostra a mecânica que deve organizar o sentido de um texto, as origens e os desertos, os vazios e os espaços que se planificam num poema: o desnudamento deve acompanhar o poeta para que o verso seja objetivo, limpo, e deixe de lado os que outros já disseram. Está muito próximo à busca de uma identidade original, não uma pureza formal mas um embrionário e dinâmico mundo em conexão com o objetivo último que persegue.
 
O poema é, como disse o autor, um altar no qual se deve sacrificar o verso e adorar, num gesto divino, o fogo da vida aí pressentida.
 
A poesia tem um duplo jogo: por uma parte é a marca que identifica o estado último do poeta. Por outra, entronca com um lugar escondido no tecido do espírito, sem ser nunca espiritual, mas existencial, vivencial, rotundamente humano.
 
No texto “Passado, presente, futuro”, José Saramago alardeia a criação fundamentada em três momentos: o que foi, o que é e o que poderá ser. No passado se assenta uma incógnita que não quer desvelar-nos, que não precisa apresentar-nos nem nos fazer partícipes dela. No presente, a pequenez de sua vida leva-o a expressar que é pouco o que é, o que o habita quando escreve o poema. O amanhã, sempre incerto, está intuído num possível cantar sonoro à maneira do batráquio, com som repetido e apenas capaz de pronunciar um só sentimento profundo.
 
No livro Os poemas possíveis, Saramago ensaia uma continuada maneira de captar o poético. É um exercício lúcido de consciência de poeta, um poemário em que o leitor se sente identificado na obstinação com a qual permanece nesse lugar pretérito que é a escrita.
 
“As palavras são novas”, talvez como exercício de fundação da linguagem que o poeta busca em cada texto.
 
Deseja inventar, com poetas que assinalam e circundam distâncias. A poesia é sempre palavra, é “Questão de palavras”, risco de escrever ante um papel em branco, porque a palavra pode estar morta, presa, incerta, (neste momento José Saramago e José Hierro coincidem na imagem de dissecação que a poesia tem, a mesma que faz o taxidermista), também a relação do poema com as rosas secas, com as flores que não obtêm perfume (também aqui coincidem os dois poetas). As palavras questionam a beleza do que dizem, se fazem da matéria ácida da possibilidade de existir no poema, são parte ingênua da escrita que forma um “pequeno cosmos” de coisas elementais do universo.
 
A memória escreve a existência do homem: “Há na memória um rio onde navegam/ Os barcos da infância, em arcadas/ De ramos inquietos que despregam/ Sobre as águas as folhas recurvadas.” O que a memória constrói está latente na pena do poeta, apegado ao mais agudo de sua escrita, sangrando pela ferida de sua obsessiva incapacidade de dizer o que sente. Memória e vida. Vida e memória. Construir o que foi mas iluminá-lo  da concepção mais livre da vida, à maneira de fonte, à maneira de estanque em abandono e em solidão, como a vida que é negada e que só é um tempo oscilando, um ontem vazio.
 
Existe um poema moderníssimo e medido no que próprio autor que se escreve uma carta: “Carta de José a José”. Neste texto de intenso valor poético o poeta passa em revista as inquietantes questões que afetam em seu labor criativo. Dois personagens têm um mesmo objetivo: José poeta e José pessoa, e nesta dualidade se produz um diálogo secreto e fundo, a luz e a sombra buscam-se numa desesperada premonição de encontro.
 
2. Poema a boca fechada
 
Na seção “Poema a boca fechada” a poética se afirma mais no papel que o escritor deve assumir frente a vida, deixando de um lado o metapoema que inicia o livro. A música, a contemplação, a reflexiva visão do mundo, tudo construído em breves poemas, de uma linguagem objetiva e com uma preocupação assentada na comunicação com os demais seres. José Saramago se levanta contra certas posturas que na voz do poeta devem implorar liberdade e vida, e que, algumas vezes, estão distantes da preocupação estética do escritor.
 
3. Mitologia
 
“Mitologia” é uma seção em que o autor mira o mundo assombrado pelos deuses que formam a cultura na qual está imerso. O poema “Natal” é determinado pelo mito que o autor pressente na retina clara da luz que situa o Natal: “Nada acontece”, diz o final do poema como um horizonte onde o autor vê o brilho da vida em sua cotidiana existência, um dia outra vez, um momento mais, sem dar maior importância ao que aconteceu ao seu redor.
 
“Fazer da Terra um Deus que nos mereça,/ E dar ao Universo o Deus que espera” — com estes versos José Saramago afronta um dos temas mais profundos de sua posição ética e estética frente ao universo criador: o sentido da vida, a razão da existência, o permanente olhar do homem que contempla o que o cerca, próximo do vitalismo que proclama como necessidade para habitar esse mundo nosso. A poesia, nesta fase, carece de todo deslumbramento estético, e é em sua extensa nudez que alcança os mais belos sucessos. O conceito está acima do efeito. A ideia mergulha em águas muito mais profundas que a roupagem que a sustenta. O tom religioso, sem cair em nenhum tópico nem em nenhuma observação pagã, pode-se observar em poemas como “A um Cristo velho”, “Judas”, “Sé Velha de Coimbra”.

4. O amor dos outros
 
“O amor dos outros” inaugura uma formalização poética nova (não no sentido formal e sim na força interna do poema). A figura de D. João constitui um referente amoroso que conduz o poeta a expor três condutas do personagem: a) Orgulho de D. João no inferno; b) Lamento de D. João no inferno; c) Sarcasmo de D. João no inferno.
 
No último dos três poemas diz: “Nem Deus nem o Diabo amaram nunca/ Desse amor que junta homem a mulher:/ De pura inveja premeiam ou castigam,/ Acredite, no resto, quem quiser.”
 
A poética amorosa se complementa com outras visões sobre mulheres e personagens históricas: Inês de Castro, Dulcineia, Dom Quixote, Sancho, Julieta, Romeu… finalizando com o poema “West Side Story” que sintetiza a posição do autor sobre o amor exposta nos poemas anteriores.
 
5. Nesta esquina do tempo
 
A seção do livro “Nesta esquina do tempo” pode ser considerada como uma visão madura da linguagem poética. A poesia insinua nestes poemas uma visão muito mais complexa e mais profunda do contexto de José Saramago. Nos poemas se intensifica o conceito de temporalidade, de olhar interior em seu próprio mundo criador, e se aprofunda no conceito puro do poético.
 
O texto “Receita” se inclui na poética da ironia, da autocomplacência e por sua vez, duramente, na visão pragmática do poético: “Tome-se um poeta não cansado,/ Uma nuvem de sonho e uma flor,/ Três gotas de tristeza, um tom dourado,/ Uma veia sangrando de pavor”. A receita é o resultado da humanização do sentimento poético, a burlesca e profunda visão do poeta em seus elementos básicos que constitui o feito de viver e de criar.
 
Nesta seção do livro encontramos uma contínua reflexão sobre a guerra, o poder, o erro de não saber encontrar o caminho mais autêntico, a transparência do sentimento, tudo isso na esquina do tempo, onde se encontra nesse momento o poeta, e onde encontra o outro, o próximo: “Onde os lírios abertos adormecem/ A mordência das horas corrosivas” — que é o espaço ritual onde se neva em mares de tempo, em fuga da obsessiva quietude e se divisa o mais alto horizonte do silêncio.
 
Os espaços são sempre lugares para encontrar resposta do invisível. “De tudo se faz nada, e esse nada/ De um corpo vivo logo se povoa,/ Como as ilhas do sonho que flutuam, / Brumosas, na memória regressada.” Novamente a memória se transforma em labirinto, em lugar em que a perda da poeta de saída está escondida nas sombras. Talvez a poesia neste momento se converta num reflexo de outro labirinto maior, num espaço curvo e finito, numa obsessão de pesadelo, idêntica ao que o poema constrói quando diz: “Nove círculos de inferno teve o sonho,/ Doze provas mortais para vencer,/ Mas nasce o dia, e o dia recomponho:/ Tinha de ser, amor, tinha de ser.” — convertendo a existência cotidiana no vencimento da realidade frente ao sonho, do que as mãos tocam, e a palavra frente ao desconhecido, ao oculto, ao inominado.
 
A paz e a guerra constituem duas palavras nas quais o poeta introduz toda a carga emotiva, o compromisso e o olhar mais atento sobre a consequência da vitória do homem sobre a dor.
 
O fado, essa música que em Portugal conduz à melancolia, à meditação aproximada do silêncio, abrindo no coração uma passagem que leva a saudade, ritmo e palavra, cadência e sofrimento, sentimento e vivência, misturados num doce sabor de amor. Assim escreve Saramago essa música que é o hino dos vencidos, a paixão dos que vivem no amor.
 
A morte, tema tão literário e tão poético, não é alheia ao compromisso poético de Saramago, buscando nos reconvexos do entendimento a forma de se explicar com maior verdade o mistério que acolhe o homem em toda sua extensão: “Não, não há morte./ Nem esta pedra é morta,/ Nem morto está o fruto que tombou:/ Dá-lhes vida o abraço dos meus dedos,/ Respiram na cadência do meu sangue,/ Do bafo que os tocou.” — a negação supõe uma aproximação ao sentido mais transcendente do mortal, apropriando-se de todo o conceitual como a salvação de sua própria busca. A memória da vida incide a sublimação da morte.
 
Quando o poeta reza, não o faz a Deus, esse desconhecido que não encontra resposta em sua capacidade de conhecimento. A memória da vida é o deus único a qual se encomenda o poeta, e nesse âmbito se move a consideração que precisa entender melhor o que o cerca, as diversas maneiras de enfrentar-se ao mundo que lhe causa o desvelo último e o sentimento de transcendência no não transcendente, de descoberta no desconhecido.
 
O inventário da vida é o conjunto de perguntas que o poeta se faz quando observa seu próprio viver, a matéria de que estão feitos os dedos, as pernas, o andar do objeto amado. Quando Saramago faz inventário dos seus bens amorosos, se dá conta de que tudo está elaborado num cosmos idílico, abraçado, sustentado nas pequenas coisas que faz os grandes temas da vida. A arte de amar é o paralelo sentido da dupla vivência, a pele, o suor que elabora do trabalho e elabora do amor, que gera vida em luta e vida em enfrentamento amoroso.
 
A intuição poética vai atravessando diversos conceitos que surgem, por uma parte, repetindo-se, e por outra, renovando-se, abrindo caminhos na expressão lúcida, na interrogação retórica que muitas vezes culmina em seus poemas como uma pergunta ao leitor que não tem resposta, que permanece aberta, intuída, reflexo do que o verso deve supor tanto para o poema como para o leitor, decodificador do conteúdo último da linguagem poética.
 
Formalmente, não é habitual encontrar um soneto na obra de Saramago: esta forma clássica, encerrada em catorze versos rimados, capaz de envolver uma ideia e chegar ao final com a absoluta tranquilidade do corredor em segundo plano envolto num verso, apenas num verso.
 
Saramago escreve “Soneto atrasado”, texto com muito do perfume clássico, mobilizado num ritmo decadente, assumido pela rima que vai abrindo sons diversos em cada uma das estrofes. Este soneto bebe da fonte amorosa portuguesa que deixou aberta a poesia do Renascimento, talvez como prova formal de que o autor é capaz de se mover nos limites de um soneto.
 
A natureza adquire vitalidade em alguns dos poemas deste extenso livro. O mar, as montanhas, o horizonte, a fonte se simbolizam em elementos carnais porque, em definitivo, a poesia de José Saramago é um retorno constante e continuado ao sentido amoroso do homem, à entrega, à vivência física e emocional do amor, fator absoluto sem o qual a poesia não tem sentido. Podemos afirmar que o poeta português é, ante tudo e sobretudo, um escritor que se introduz no espírito para adquirir um conhecimento maior da aventura amorosa, dessa linguagem que o homem precisa saber para ser mais humano, para encontrar sentido ao que a vida o presenteia a cada instante.
 
No poema “Corpo”, Saramago aprofunda o universo único da vida entendida como salvação do instante, o sangue, a memória, o tempo que se reflete nos olhos e no corpo, entendendo que o viver é um desgaste positivo, um estar no caminho comprometido, perguntando-se e respondendo-se sempre, domando a dor de viver nesta jaula que é o tempo. A rosa, esse símbolo que ultrapassa qualquer linha da literatura ocidental, identificando a flor com a juventude, a vida plena, o amor, a beleza, o retumbante e o invisível, adquire em Saramago uma indeterminada definição do corpo, da noite, do sangue, da vida breve: “Ergo uma rosa, sim, e ouço a vida/ Neste cantar das aves nos meus ombros.” — versos de inspiração quase castelhana, com ecos de Fray Luis de León e dos poetas do Siglo de Oro espanhol.
 
A noite está determinada poeticamente pela escuridão misteriosa, sombria, mar de monstros, onde se cobiçam os sonhos, essa matéria funcional que constitui o germe de uma visão nova sobre a realidade. Saramago viajou neste livro de poemas pela mão dos fantasmas mais irreconhecíveis, com a linguagem mais intimista, mais fiel à verdadeira paixão do escritor por concretizar, por estar preso em sua esquina do tempo, onde olhar e a partir de onde contempla a incerteza que o mantém vivo, objeto de amor e permanente poeta em vigilância contra a injustiça, o sofrimento e a guerra.

José Saramago. Foto: Gonçalo Rosa da Silva.


 
Provavelmente alegria
 
Provavelmente alegria inaugura um novo ciclo de constantes referências literárias, iniciando-se com um poema dedicado ao mestre da poesia portuguesa, Luís de Camões, modelo de serenidade poética e como diz o próprio poeta: “Meu amigo, meu espanto, meu convívio,/ Quem pudera dizer-te estas grandezas,/ Que eu não falo do mar, e o céu é nada/ Se nos olhos me cabe.” Neste texto apresenta-se um poeta mais intenso e mais introspectivo. Bem se reconhece o significado da poesia do autor português e esta reflexão literária e humana serve a Saramago para voltar o olhar sobre si mesmo, retroceder no tempo e no espaço, no significado grandioso da literatura com maiúsculas.
 
No texto “O primeiro poema”, o leitor encontra o mundo sensual no qual se move o conceito formal da poesia de Saramago. A água, a luz, as flores, o universo perfumado e pleno de cor, a quimera desconhecida do verso que ainda não existe, tudo isso volta a ser consciência poemática do poeta, retorna como um conhecimento aprendido no tempo e restabelecido na atual poética.
 
Saramago nunca envelhece a nível literário; amadurece, recria com novidade e novos sentidos a semântica aprendida e usada em outros livros anteriores, se retroalimenta com a sabedoria que o magistério da idade vai dando ao escritor, e o poético se converte em consubstancial sentido mágico da linguagem, a conotação mais sugestiva do conhecimento da vida através das palavras.
 
Os poemas deste livro são similares aos do primeiro, tendo em conta que a brevidade dos textos obriga o escritor a intensificar as emoções que se plasmam nos poemas.
 
A rima resulta num elemento sutil quando é usada por ele mas não como um gerador rítmico e sim como um espaço de emoção formal.
 
O amor continua constituindo um eixo temático que se completa com a experiência vivida num mundo muito reafirmado pelo olhar que gera a passagem do tempo.

No poema breve “Devagar, vou descendo”, Saramago diz: “Devagar, vou descendo entre os corais./ Abro, dissolvo o corpo: fontes minhas/ De águas brancas, secretas, reunidas/ Ao orvalho das rosas escondidas” — texto impressionista que emociona pela ligeira transformação de seus elementos que vão se justapondo ao texto por um maior confronto interior do poeta em sua ademão de expressar o inominável, o impossível, o único, como a poesia exige do bom escritor.
 
O humor não é habitual na poética de Saramago. Sim, a ironia é sutil, a firme expressão de um mundo particular que atravessa por diferentes periferias da emoção: no poema “Tenho um irmão siamês” deixa aparecer esse sentido de autoironia, de olhar fervoroso e complexo em si mesmo: “Tenho um irmão siamês/ (Há quem tenha, mas o meu,/ Ligado à sola dos pés,/ Anda espalhado no chão,/ Todo mordido de raiva/ De ser mais raso do que eu.)” — antecipando-se a esse olhar cada vez mais profundo que se desenvolverá nos poemas seguintes, na última fase de sua poesia.
 
Caberia se perguntar se o poeta utiliza os mesmos pensamentos construtivos nos poemas que noutros gêneros literários, isto é, se a afirmação de sua própria temática está diluída em qualquer forma expressiva, seja qual seja a linguagem. A resposta pode ser evidente: ninguém pode escapar de seus fantasmas, das preocupações mais profundas, do sentido ético que a literatura constitui para quem pretende fazer dela um mecanismo valioso de conhecimento e de aprofundamento na alma humana, nas camadas da sociedade, na dinâmica que o homem precisa para se sustentar na difícil tarefa de viver.
 
Um escritor como Saramago bebe na fonte da poesia quando não sabe nem pode dizer de outra forma o que lhe ronda no espírito, os fantasmas de seu conhecimento intuitivo do mundo. O poeta José Hierro dizia que a poesia é a maneira de dizer o que é impossível de dizer de outra forma. Consideramos que Saramago bebe desta definição e coloca em prática na poesia o que não poder expressar na prosa, no conto, na crônica, ou no romance.
 
O sugerido, na poesia, é sempre um motor que intensifica a impossível sensação de comunicar, que atravessa as paisagens mais complexas da intencionalidade, e desta forma um poema breve esconde sob suas palavras uma maior e extensa capacidade de dizer, de informar não o objetivo, mas o impreciso, o impossível, o que não cabe noutras páginas mais extensas.
 
A palavra alma não é apenas utilizada por José Saramago; existe um poema que recolhe em seu título e em seu conteúdo este conceito: “Tenho a alma queimada”. Neste texto tardio de sua criação poética esboça algumas ideias que retornam ao texto depois de tentar o desenvolvimento em outros momentos de sua obra: “Tenho a alma queimada/ Por saliva de sapo/ Fingindo que descubro/ Tapo”. A pontuação desparece neste texto num gesto não comum noutros poemas.
 
Alguns poemas mais extensos completam o andamento deste livro; poemas como “A ponte” ou “Elegia à moda antiga”, dois exemplos do desenvolvimento textual mais elaborado, embora nem por isso mais intenso.
 
Chama atenção o sentido que Saramago atribui à pedra, palavra muito recorrente em alguns poemas de máxima importância. O verso é pedra, cimento, diz o poeta, não muralha, porque o que afunda na terra não é o valioso, o grandioso, o mágico. A pedra constitui a herança do tempo, o reflexo sinuoso do que foi vivido, memória intacta de quanto corresponde a fragilidade do ser frente à paisagem desigual da existência.
 
O ano de 1993
 
Último dos livros que formam a poesia completa de Saramago, O ano de 1993 marca um giro formal no seu conceito poético. Os poemas convivem com o gênero da prosa poética, alargando-se e incorporando-se a uma linguagem livre, mais musical, menos contundente. Livro que nos apresenta uma linguagem poética realizada com pequenos enigmas líricos, aproximando-se aos interesses que o conto pode supor para um escritor: “Os habitantes da cidade doente de peste estão reunidos na praça grande que assim ficou conhecida porque todas as outras se atulharam de ruínas”. A retórica deste livro joga com o sentido plástico da palavra, afastando-se de outros conceitos mais poéticos como o desenvolvimento formal, conseguindo neste livro uma aproximação muito útil ao leitor, oferecendo-lhe maiores pistas textuais, como se fossem pinceladas de um quadro.
 
É o mento mais intenso da poética de Saramago. É formado por trinta poemas unidos com um laço comum de forma análoga e também com uma ligação íntima, à maneira de capítulos de uma história, que o leitor pode conhecer linearmente ou saltando de um momento a outro para encontrar as referências de sua linguagem.
 
“Ninguém morrera subitamente ninguém fora arrebatado aos ares pelas águias mecânicas que os ocupantes lançavam sobre os bandos fugitivos”, versículo de um dos textos mais objetivos do livro, ponto de interseção da história que Saramago nos propõe neste livro singular, gérmen  de outras histórias posteriores que desenvolverá na forma romanesca, exercício lúcido de linguagem e de autoafirmação de ideias que contemplam o universo inventivo e poético do autor.
 
A conquista de uma história com base poética surge como resultado de uma permanente busca e observamos no texto diversos procedimentos mistos: o objetivo e o subjetivo entremeados como duas fontes de conhecimento; a emoção transformada em sensação para que o leitor tenha as conotações da linguagem proposta pelo autor; o irracional, sem chegar a ser surrealista, sem tocar o fundo do onírico, intervindo no valor do clímax e fazendo avançar a história com imagens transformantes e de singular beleza; a presença de personagens genéricos, de personagens paisagísticos, de personagens morais que simbolizam cânones de conduta.
 
E ainda: a extensão formal da linguagem em estrofes prosaicas, uma invenção de Saramago para dotar o texto de uma continuação que se prolonga nos trinta momentos do texto; os recursos intensos da memória e da infância como fundamentos de uma consciência do interior do texto, atraindo aos poemas um caudal ingente de sensações vividas, de resquícios que a infância deposita na voz do livro.
 
Todas essas razões determinam o nível de renovação que supõe este texto do escritor português. O final da história não é um final: fica aberto o olhar do leitor para que incorpore no texto o que seu pensamento aponta: “Uma vez mais enfim o mundo o mundo algumas coisas feitas contadas tantas não e sabê-lo/ Uma vez mais o impossível ficar ou a simples memória de ter sido/ Consoante se conclui de nada haver debaixo da sombra que a criança levanta como uma pele esfolada.”
 
No começo da poesia de José Saramago, Antonio Machado servia de pórtico para deixar claro que o tempo é o que enche os vasos da vida, quem faz crescer o caudal das palavras para poder ter uma consciência comprometida com a vida. Nunca se enche totalmente. Como disse Saramago muito lucidamente: “Condenados a encher em vão durante toda a eternidade um barril sem fundo, como todos nós que vamos colocando letras após letras à espera de que o infinito se deixe tocar algum dia”.


 
* Este texto foi publicado inicialmente na 100.ª edição da revista República de las Letras, organizada por Andrés Sorel.
 
 
 

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