Seis poemas de Rabindranath Tagore em “O Jardineiro” (1913)
Por Pedro Belo Clara
(Seleção e versões)*
I.
Os teus olhos indagadores tristes
estão. Pretendem decifrar-me,
do mesmo modo que a lua perscruta o mar.
Coloquei a minha vida, nua, diante dos teus olhos, de ponta a ponta,
sem nada esconder ou reprimir. É por isso que não me conheces.
Se apenas fosse uma pedra
preciosa, quebrá-la-ia em cem pedaços,
unindo-os num fio que poria no teu pescoço;
Se apenas fosse uma flor, redonda, pequena e doce, pegá-la-ia pelo caule,
colocando-a em teus cabelos.
Mas é um coração, meu amor. Onde suas orlas, o seu fundo?
Desconheces os limites deste reino; porém, és sua soberana.
Se apenas fosse um momento de
prazer, floresceria num sorriso fácil,
e então poderias vê-lo e num instante compreendê-lo;
Se apenas fosse uma dor, derreter-se-ia em límpidas lágrimas,
reflectindo o seu segredo mais profundo
sem usar qualquer palavra.
Mas é amor.
O seu prazer e a sua dor não
conhecem limites,
e sem fim são as suas vontades, a sua riqueza.
Está tão próximo de ti quanto a tua própria vida,
mas nunca conseguirás conhecê-lo por inteiro.
II.
Ninguém vive para sempre, irmão,
nenhuma coisa é eterna.
Lembra-te disto e rejubila.
A nossa vida não é um velho fardo,
o nosso caminho não é uma longa jornada.
Um poeta não tem de cantar uma velha canção.
A flor emurchece e morre, mas aquele que a leva ao peito
não tem, por sua morte, de lamentar-se para sempre.
Irmão: lembra-te disto e rejubila.
Tem de existir uma pausa completa
para se tecer a perfeição numa melodia.
A vida tomba em direcção ao poente
para se afogar em sombras doiradas.
O amor tem de largar a sua brincadeira
para beber a tristeza e nascer no paraíso das lágrimas.
Irmão: lembra-te disto e rejubila.
Apressamo-nos a colher as nossas
flores
para que não sejam pilhadas pelos ventos errantes.
Acelera o sangue e abrilhanta o olhar arrebatar beijos
que desapareceriam se demorássemos.
A nossa vida é impaciente, agudos os nossos desejos,
pois o tempo toca o sino da partida.
Irmão: lembra-te disto e rejubila.
Para nós, não existe tempo para
agarrar algo,
quebrá-lo e deitá-lo ao pó.
As horas sucedem-se rapidamente, ocultando
os seus sonhos em suas saias.
A nossa vida é breve, concede somente alguns dias ao amor.
Fosse pelo trabalho, pela escravidão, seria demasiado longa.
Irmão: lembra-te disto e rejubila.
A Beleza é-nos doce, pois dança ao
som
da fugaz melodia das nossas vidas.
O Conhecimento é-nos precioso, uma vez que jamais
teremos tempo para o completar.
Tudo é feito e terminado no
Paraíso eterno.
Mas as terrenas flores da ilusão
por obra da morte mantêm-se eternamente viçosas.
Irmão: lembra-te disto e rejubila.
III.
Recordo um dia da minha infância,
em que fiz flutuar um barco de papel numa valeta.
Era um dia húmido de julho, estava sozinho e feliz
com a minha brincadeira.
Pus o barquinho a navegar.
De repente, adensaram-se nuvens de tempestade,
o vento soprou em rajadas e a chuva caiu torrencial.
Depressa correram regatos de água lamacenta;
as águas da valeta subiram e afundaram o meu barco.
Amargamente, pensei que a
tempestade viera
somente com o propósito de arruinar a minha felicidade,
que toda a sua malícia estava contra mim.
Hoje, um longo e enublado dia de
julho, tenho meditado
sobre todos os jogos da vida em que saí perdedor.
Culpava o meu destino pelas suas imensas partidas,
quando de súbito lembrei-me dum barquinho de papel
naufragado numa valeta.
IV.
A feira decorria defronte do
templo.
Havia chovido desde manhã cedo, e o dia chegava agora ao fim.
Mais cintilante que toda a alegria
das gentes era o luminoso sorriso
duma rapariga que com uma pequena moeda
comprara um apito de folha de palmeira.
A sua felicidade estridente
flutuou sobre as gargalhadas,
sobre o ruído circundante.
Uma multidão sem fim aproximou-se
aos empurrões.
A estrada estava lamacenta, o rio transbordara,
os campos inundados sob uma chuva incessante.
Maior que todos os problemas da
turba, a aflição dum menino
que nem uma pequena moeda tinha
para comprar um pau colorido.
Os seus tristes olhos, observando
a banca de venda,
tornavam toda esta reunião humana
deveras deplorável.
V.
O operário e a sua esposa, oriunda
da zona oeste do país,
estão ocupados a escavar. Vão fazer tijolos para o forno.
A filha, ainda pequena, encaminha-se para a orla do rio;
aí chegada, não pára de esfregar, polindo potes e panelas.
O seu irmão mais novo, de cabeça rapada e membros nus,
cobertos de lama, segue-a e espera, a seu pedido,
pacientemente na zona mais alta da margem.
Regressa a casa com um jarro cheio
na cabeça,
um cintilante pote de latão na mão esquerda
e o irmão na outra – a pequena serva de sua mãe,
tão séria pelo peso dos afazeres domésticos.
Um dia, vi o rapazinho todo
despido,
sentado com ambas as pernas esticadas.
Nas águas, a sua irmã esfregava um pote
com uma mão-cheia de terra, voltando-o uma e outra vez.
Perto dali, um cordeirinho olhava ao longo da margem.
Aproximou-se do menino e, de repente, começou a balir bem alto,
assustando a criança, que se pôs a gritar.
A moça largou o pote e correu em
auxílio do irmão.
Pegou-o com um braço; no outro, segurou o cordeiro,
e ia assim dividindo as suas carícias, vinculando num só laço de afecto
ambas as descendências: animal e homem.
VI.
Quem és tu, leitor, lendo os meus
poemas à distância de cem anos?
Não poderei enviar-te uma só flor desta imensa riqueza primaveril,
uma só listra doirada das nuvens longínquas.
Abre a tua porta e olha em redor.
Do teu florido jardim reúne as fragrantes memórias das desvanecidas flores
de há cem anos atrás.
Que na alegria do teu coração possas sentir o júbilo vivo
que numa remota manhã cantou, enviando a sua voz feliz
à distância de cem anos.
Rabindranath Tagore. Foto: Divisão de Impressões e Fotografias da Biblioteca do Congresso Washington. |
do mesmo modo que a lua perscruta o mar.
Coloquei a minha vida, nua, diante dos teus olhos, de ponta a ponta,
sem nada esconder ou reprimir. É por isso que não me conheces.
unindo-os num fio que poria no teu pescoço;
Se apenas fosse uma flor, redonda, pequena e doce, pegá-la-ia pelo caule,
colocando-a em teus cabelos.
Mas é um coração, meu amor. Onde suas orlas, o seu fundo?
Desconheces os limites deste reino; porém, és sua soberana.
e então poderias vê-lo e num instante compreendê-lo;
Se apenas fosse uma dor, derreter-se-ia em límpidas lágrimas,
reflectindo o seu segredo mais profundo
sem usar qualquer palavra.
Mas é amor.
e sem fim são as suas vontades, a sua riqueza.
Está tão próximo de ti quanto a tua própria vida,
mas nunca conseguirás conhecê-lo por inteiro.
Lembra-te disto e rejubila.
o nosso caminho não é uma longa jornada.
Um poeta não tem de cantar uma velha canção.
A flor emurchece e morre, mas aquele que a leva ao peito
não tem, por sua morte, de lamentar-se para sempre.
Irmão: lembra-te disto e rejubila.
para se tecer a perfeição numa melodia.
A vida tomba em direcção ao poente
para se afogar em sombras doiradas.
O amor tem de largar a sua brincadeira
para beber a tristeza e nascer no paraíso das lágrimas.
Irmão: lembra-te disto e rejubila.
para que não sejam pilhadas pelos ventos errantes.
Acelera o sangue e abrilhanta o olhar arrebatar beijos
que desapareceriam se demorássemos.
A nossa vida é impaciente, agudos os nossos desejos,
pois o tempo toca o sino da partida.
Irmão: lembra-te disto e rejubila.
quebrá-lo e deitá-lo ao pó.
As horas sucedem-se rapidamente, ocultando
os seus sonhos em suas saias.
A nossa vida é breve, concede somente alguns dias ao amor.
Fosse pelo trabalho, pela escravidão, seria demasiado longa.
Irmão: lembra-te disto e rejubila.
da fugaz melodia das nossas vidas.
O Conhecimento é-nos precioso, uma vez que jamais
teremos tempo para o completar.
Mas as terrenas flores da ilusão
por obra da morte mantêm-se eternamente viçosas.
em que fiz flutuar um barco de papel numa valeta.
Era um dia húmido de julho, estava sozinho e feliz
com a minha brincadeira.
De repente, adensaram-se nuvens de tempestade,
o vento soprou em rajadas e a chuva caiu torrencial.
Depressa correram regatos de água lamacenta;
as águas da valeta subiram e afundaram o meu barco.
somente com o propósito de arruinar a minha felicidade,
que toda a sua malícia estava contra mim.
sobre todos os jogos da vida em que saí perdedor.
Culpava o meu destino pelas suas imensas partidas,
quando de súbito lembrei-me dum barquinho de papel
naufragado numa valeta.
Havia chovido desde manhã cedo, e o dia chegava agora ao fim.
duma rapariga que com uma pequena moeda
comprara um apito de folha de palmeira.
sobre o ruído circundante.
A estrada estava lamacenta, o rio transbordara,
os campos inundados sob uma chuva incessante.
que nem uma pequena moeda tinha
para comprar um pau colorido.
tornavam toda esta reunião humana
deveras deplorável.
estão ocupados a escavar. Vão fazer tijolos para o forno.
A filha, ainda pequena, encaminha-se para a orla do rio;
aí chegada, não pára de esfregar, polindo potes e panelas.
O seu irmão mais novo, de cabeça rapada e membros nus,
cobertos de lama, segue-a e espera, a seu pedido,
pacientemente na zona mais alta da margem.
um cintilante pote de latão na mão esquerda
e o irmão na outra – a pequena serva de sua mãe,
tão séria pelo peso dos afazeres domésticos.
sentado com ambas as pernas esticadas.
Nas águas, a sua irmã esfregava um pote
com uma mão-cheia de terra, voltando-o uma e outra vez.
Perto dali, um cordeirinho olhava ao longo da margem.
Aproximou-se do menino e, de repente, começou a balir bem alto,
assustando a criança, que se pôs a gritar.
Pegou-o com um braço; no outro, segurou o cordeiro,
e ia assim dividindo as suas carícias, vinculando num só laço de afecto
ambas as descendências: animal e homem.
Não poderei enviar-te uma só flor desta imensa riqueza primaveril,
uma só listra doirada das nuvens longínquas.
Abre a tua porta e olha em redor.
Do teu florido jardim reúne as fragrantes memórias das desvanecidas flores
de há cem anos atrás.
Que na alegria do teu coração possas sentir o júbilo vivo
que numa remota manhã cantou, enviando a sua voz feliz
à distância de cem anos.
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* As versões são a partir da tradução inglesa realizada pelo próprio autor em The Gardener (Maven Books, 2021).
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