Para Michel Houellebecq a humanidade está condenada
Por Mercedes Estramil
Michel Houellebecq. Foto: Barbara d’Alessandri |
No 2019 pré-pandêmico, Michel
Houellebecq recebeu a Legião de Honra de um presidente que não admira, Emmanuel
Macron. Este último, que também não o admira, o descreveu como um “romântico
perdido em um mundo materialista”. É uma definição curiosa para esse francês
anti-sistema, islamofóbico (misantrópico se ampliarmos o zoom), que lança
bombas linguísticas contra toda ortodoxia de pensamento correto. Sua defesa a
Donald Trump no artigo “Trump é um bom presidente” é bem conhecida, embora
envolta em fina ironia; seus ataques à União Europeia; e sua preferência pelo
presidencialismo vitalício e pela democracia direta, eliminando o sistema parlamentarista.
Sua amizade com o ex-presidente Sarkozy e com o escritor Frédéric Beigbeder,
suas coincidências com Julian Assange, ou a amizade que o uniu a uma das
vítimas dos ataques de 2015 contra o semanário Charlie Hebdo também é
bem conhecida. Para a literatura, nada disso o define completamente.
Houellebecq é, acima de tudo, o arquiteto de uma engenharia narrativa feroz que
transparece em algumas obras. É o caso de Aniquilar, onde seu proverbial
cinismo exibe lucidez, como sempre, e esconde necessidade, como quase nunca.
Reta final
O protagonista, Paul Raison, é
inspetor de finanças e assistente do ministro da Economia, Bruno Juge. Durante
três quartos do romance Raison tem duas frentes para atender: uma pública, de
trabalho, e outra privada, íntima. Na primeira, as eleições presidenciais de
2027 estão marcadas num clima de incerteza causado por ataques informáticos
(mensagens ameaçadoras lançadas pela internet que não podem ser decifradas nem
pelos melhores hackers do governo) e por terrorismo físico: um ataque contra um
navio porta-contentores chinês, outro contra um banco de esperma dinamarquês e
o último contra um navio carregado de imigrantes.
Na frente pessoal, Paul Raison
entra em seus cinquenta anos vivendo sob o mesmo teto de sua esposa, Prudence, mas
separados, sem conexão emocional ou sexual. Édouard Raison, seu pai, um antigo
“agente secreto”, está em coma numa instituição de cuidados paliativos,
acompanhado incondicionalmente por sua segunda esposa, Madeleine, e pela irmã
de Paul, Cécile, uma católica devota casada com um desempregado e notário
eleitor de Marine Le Pen e ex-membro do Bloc Identitaire, uma organização proibida
de extrema-direita. Ambos são pais de uma menina que se prostitui para pagar
seus estudos. A árvore genealógica se completa com um terceiro irmão, Aurélien,
casado com uma jornalista sem alma, e pai adotivo de uma criança negra
concebida por sua esposa pelo método de inseminação artificial.
A justaposição dessas frentes não
parece afetar Raison, o típico personagem houellebecquiano disposto à inércia,
a algum desabafo nostálgico e ao sexo casual. No entanto, o último quarto do
romance introduz o elemento que muda tudo: a doença incurável, a chegada do
irreversível. Nesse ponto, quando quase todo Aniquilar está escrito,
você pode começar a ver as costuras dessa construção meticulosa onde cada
personagem — desde seus nomes significativos até seus traços — e cada detalhe
tem sua razão de ser. É brilhante que o antigo “agente secreto” percorra o
romance em silêncio comatoso devido a um derrame; que a companhia do doente provenha
da literatura de entretenimento (Sherlock Holmes, Poirot); que a religião (seja
a católica de Cécile ou a wicca neopagã de Prudence) não bastem para salvar,
mas que seja o sexo como “extensão de ternura” o único que resgate a personagem.
Em 2017, Houellebecq declarou que ainda não havia chegado ao fundo do tema do
amor.
Aniquilar é em muitos aspectos um
romance de amor, que não tenta explicá-lo, mas o mostra e de alguma forma
alerta que tem a ver com compreensão e calma.
Sonhos lúcidos
É também um romance “onírico”.
Houellebecq se dá ao luxo de incluir algo que é sempre aconselhado a não
colocar em um texto de ficção realista: os sonhos do personagem. Aqui aparecem
pelo menos onze sonhos de Paul Raison, do tipo comum ao pesadelo. Por que eles existem,
e por que em um personagem cujo sobrenome alude à razão? Eles não aparecem
vinculados a nenhuma vontade interpretativa de natureza psicológica, mas sim
como o último reduto corporal e político de uma intimidade inviolável (seria
preciso reler o romance O Palácio dos Sonhos de Ismail Kadaré para ver
até que ponto isso é verdade). O resto, a vida diurna, a da razão e dos
próprios sonhos, está ameaçada.
Aniquilar é o mapa do Ocidente em
crise, que Houellebecq remonta às origens da Revolução Francesa (com seus
horrores indescritíveis e declarações soberbas). Os sintomas dessa crise povoam
o romance, desde a justificativa por “razões de segurança” de qualquer intrusão
na vida de um indivíduo — muitas vezes apenas um “clique” — até a desconexão intrafamiliar
em que se pode viver por anos.
Mas existe duas questões que
Houellebecq destaca como epítome dessa crise. Uma tem a ver com a posição da
velhice e da enfermidade em um sistema de valores predominante que os considera
vergonhosos e, portanto, os esconde e degrada, disfarçando como atenção
superficial o que é basicamente a indiferença. Para Houellebecq, o grau máximo
desse esquecimento é a eutanásia. A outra questão tem a ver com a perda de
contato com o mundo real que a sociedade teve desde o século XX e de forma
alarmante no século XXI. Conectado, sozinho e em modo obsessivo com as telas
(TV, computador, telefones etc.) podemos facilmente cair no que Houellebecq
descreve quando Raison vai ver seu pai hospitalizado: “O quarto em si era bastante
grande, perto de seis metros por quarto, e as paredes estavam pintadas de amarelo
pintinho, isto é, bem leve e quente, Paul já não conseguia mais se lembrar da
última vez que tinha visto um pintinho, com certeza ele nunca tinha visto um,
na vida real temos poucas ocasiões de ver esse tipo de coisa, em todo caso era
um tom agradável, assim como o quarto, as prateleiras presas à parede esperavam
para serem preenchidas”.
O diagnóstico desse estado de
coisas não é bom, razão pela qual o título do romance engloba o destino
individual e o coletivo. Solução não existe. É visível em Houellebecq (n. 1958)
a ideia de que o poder terreno sempre usa a premissa leopardiana de mudar tudo
para que tudo permaneça igual. Sua resposta é individual e niilista e também
neste romance, que ao colocar a necessidade humana de amor em primeiro plano,
desliza como um mar ao fundo, para a certeza de que a humanidade está
condenada, por seus próprios méritos, à inexistência.
* Este texto é a tradução livre
para “Para Michel Houellebecq la Humanidad está condenada”, publicado aqui, no
jornal El País – Uruguai.
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