O segredo de Javier Marías
Por Federico Guzmán Rubio
Javier Marías (1951-2022) foi um
romancista com um só tema, um só estilo e um só tempo. É muito. Seu caso é
excepcional, considerando que a maioria dos romancistas deambula por tramas
desconexas sem conseguir focalizar claramente um assunto, pratica uma escrita
eficiente que nega a própria noção de estilo e não consegue apreender — seja
para confrontá-lo ou para se deixar dominar — o seu tempo. Outra questão é que o tema
é interessante, o estilo é de bom gosto e a relação com o presente é
conflituosa. Claro, é aqui que entra em jogo o hospedeiro indesejado da crítica
literária contemporânea: a subjetividade. Mas a escrita de Marías é tão pessoal
que requer uma abordagem dessa natureza, já que para abordá-la não basta o
punhado de categorias supostamente objetivas que servem para analisar qualquer
romance bem conseguido. A obra de Marías obriga a nos posicionarmos e tomarmos
partido, o que constitui um ato de dedicação à literatura, restituído aqui como
reino da subjetividade.
Não há dúvida de que foi o romancista
de seu tempo na Espanha: não o tempo mais interessante, mas o mais feliz. Com
um regime franquista que os espanhóis insistiam em considerar distante e com os
choques da transição já passados, a Espanha podia finalmente se sentir genuinamente um país europeu de pleno direito — sentimento que encontrou seu
respaldo burocrático com a entrada para a União Europeia em 1986. Neste
contexto, a obra do madrilenho tornou-se imensamente popular, ao mesmo tempo
que obteve o reconhecimento imediato da crítica, com exceção de duas ou três
vozes repentinamente envelhecidas e ridículas, encabeçadas por Francisco Umbral,
que viram no brilhante sucesso do novo romancista, com razão, a lápide que os sepultava
junto com a boemia antiquada dos cafés de Gijón e a gordurosa alegria dos bares
mais tradicionais.
A obra de Marías era complexa, mas
compreensível; evitava qualquer conflito social para se acomodar nas pequenas
tragédias da vida privada; retratava uma classe média alta de aspirações
razoáveis; transitava sempre em palcos de prestígio, seja em Madri ou na
Europa; estava cheia de alusões à mais alta cultura; confirmava a elegância de
seu estilo com uma abundância de termos extravagantes; reafirmava seu
cosmopolitismo ao menor pretexto e rompia, sem lugar para dúvidas, com a
tradição do romance espanhol. Ou seja, tinha tudo para triunfar numa Espanha
que, agora, podia se dar ao luxo de deixar de ser Espanha.
De fato, se há algo que contrasta
a obra de Marías com a de seus predecessores e contemporâneos, é a libertação
ou o abandono, como se prefere, da noção da Espanha como problema, como destino
ou como catástrofe. As suas personagens transitam por uma Espanha sem
conflitos, para além das desavenças que existem em todas as famílias, das
rupturas amorosas que sempre se fazem com que se sintam mal ou com problemas de
saúde, porque ninguém está isento de um susto.
Anglófilo por acaso e vocação — Javier
passou parte da infância nos Estados Unidos, exilado de seu pai, o filósofo
Julián Marías —, mas mais thatcheriano do que shakespeariano, o madrilenho, que
tanto podia ser parisiense, bostoniano ou berlinense, criou um romance sem
sociedade. Logo, este último parecia um recurso literário antiquado, apenas um
cenário útil para entreter os personagens de Barea ou Baroja, mas artificial ou
artificioso em um mundo em que, como declarou a Dama de Ferro, só havia homens
e mulheres individuais e, para fazer uma pequena concessão, famílias.
Mas não se pode dizer que Javier
Marías tenha dado as costas à sociedade ou à história espanhola; ele apenas as
ignorou. Isso o distinguiu da maioria de seus contemporâneos que pareciam
permanecer presos à tradição, mais por provincianismo do que por convicção, ao
contrário do cosmopolita Marías, o primeiro a se acomodar confortavelmente na
versão peninsular do fim da história. Assim, enquanto romancistas abertamente
sociais como Belén Gopegui, Isaac Rosa ou Rafael Chirbes exploravam as fissuras
do novo tempo, e outros como Almudena Grandes, Javier Cercas ou mesmo Antonio
Muñoz Molina faziam uma revisão da história da Espanha, Marías se acomodava
triunfantemente no seu presente e se consolidava como o grande romancista que,
finalmente, soubera abandonar o costumbrismo, a corrente mais rica mas também a
mais limitante do romance ibérico desde Galdós, cuja validade é confirmada pelo
fato de os espanhóis ainda não chegarem a um acordo sobre o que fazer com ele,
seja para admirá-lo ou insultá-lo.
Mas abandonar a Espanha não era
necessariamente a única forma de abandonar o costumbrismo; aliás, talvez tenha
sido a forma de lhe dar um pouco de ar e perpetuá-lo. Javier Marías não foi o primeiro
a sentir a Espanha como um peso; basta pensar em exemplos como Juan Goytisolo e
sua genealogia intelectual para mostrar que havia outras formas de se separar
do discurso mais convencional do casticismo. Farto de Espanha heroica e
carcomida de traça, Goytisolo compreendeu que esta imagem, mais do que uma
essência, era uma máscara, e mergulhou na história, na geografia e na
literatura do seu país para a descobrir e a reinventar, no seu caso, com a
pretensão da Espanha árabe e iluminista, sobre o que nem o franquismo, nem a
transição, nem a Espanha da União Europeia fizeram questão de falar,
contentando-se em conceber o passado como um imenso período monolítico de épica
ou escuridão, conforme a conveniência, desde que não o problematizasse.
Diferente de Goytisolo, que
converteu a rejeição da Espanha imposta para, abrindo-se ao mundo, reinventar a
sua própria nação, Marías contentou-se com críticas superficiais e
mal-humoradas para justificar, como se fosse necessário, a sua anglofilia.
Incomodava-o que os espanhóis tivessem uma pronúncia terrível ao
falar inglês ou serem muito barulhentos, ao contrário de seus personagens, que
são pessoas do mundo.
Eles falam outras línguas,
trabalham como intérpretes no Parlamento Europeu em Bruxelas ou nas Nações
Unidas em Nova York ou como professores em Oxford, colecionam arte, discutem
sobre qual bom restaurante para jantar em Madri ou em Londres, vestem Armani,
mantêm suas boas maneiras, ao mesmo tempo que são gente do seu tempo, vão às
compras no bairro de Salamanca e festejam nas discotecas da moda, têm encontros
românticos no Museu de Ciências Naturais, apostam no hipódromo, têm contatos em
qualquer campo e com alguns obtêm qualquer favor.
É verdade que nunca fazem parte da
verdadeira elite, mas prosperam em torno dela, mais por uma questão de
elegância do que pela impossibilidade de pertencimento: não têm sequer a
urgência econômica do carreirista, mas a deles é a indiferença de quem pode se
dar ao luxo de desprezar o mundo ao qual pertencem. São personagens situados
entre o novo rico e o sisudo aristocrata, tal como a Espanha foi sonhada no
início do século, finalmente capaz de assumir um novo papel e abandonar o
empobrecido fidalgo que a representou durante séculos.
Os personagens de Marías são muito
parecidos e o fato de reaparecerem de romance em romance pode ser confuso.
Balzac inventou o procedimento de fazer os personagens pularem de uma obra para
outra para mostrar a tensão da sociedade francesa na primeira metade do século
XIX e Onetti o utilizou para povoar sua fantástica e fantasiosa Santa María; o
espanhol, por outro lado, parece fazê-lo apenas por capricho, porque além de
serem intercambiáveis, torna-se implausível tanta coincidência e ação: tantas
coisas não podem acontecer com alguém. Falsificadores de arte que viraram
assassinos e professores de literatura que viraram espiões vão de romance em
romance, assim como as mulheres chamadas Luisa que, a certa altura, já não se
sabe se são as mesmas com uma vida multiplicada ou se são várias, com uma
simples coincidência nominal.
Em todo o caso, melhores ou piores,
com boa ou má sorte, é fácil identificar-se com eles, porque em última análise
podem ser qualquer um, ou o qualquer que se desejava ser nos anos
noventa: alguém com meios e uma vida interessante, alguém bem-sucedido e suportavelmente
cínico, culto de berço mas com algum talento, que sempre flerta no bar. Os pícaros,
os quixotes, os sonhadores, os pobres, os carreiristas, os arruinados, os
exilados, os derrotados e os poderosos não fazem parte do universo de Javier Marías,
nem fizeram parte do imaginário dos melhores anos da globalização e da
democracia liberal.
O anterior não significa que o
romance seja obrigado a flertar com o panfleto nem que deva ser lido em chave
nostálgica do realismo socialista ou do romance social, tão amplamente
praticado na Espanha. No entanto, o gênero sempre colocou o indivíduo contra a
sociedade, seja no desespero de se inserir nela (Stendhal e Proust), de
suportá-la (James e Vargas Llosa) ou de abandoná-la (Kafka e Woolf). Nos
personagens de Marías, pelo contrário, prevalece a complacência com o seu
ambiente, de acordo com aquelas décadas inocentes e arrogantes convencidas de
ser o melhor dos mundos possíveis, que vão desde a integração da Espanha na
União Europeia até a grande crise financeira, as em que Marías escreveu o
melhor de sua obra.
A comparação é injusta porque
excessiva, porque quem estaria à altura dos referidos autores, mas é a que
merece Marías, cujo projeto literário melhor se mede com os grandes. Por outro
lado, paradoxalmente, também é verdade que ele acertou precisamente ao despojar
sua obra de qualquer conteúdo social, justamente numa época que isso a
aborrecia. Afinal, um clássico é, entre muitas outras coisas, um livro que
capta os sinais de seu tempo como nenhum outro, e da mesma forma inesperada que
o latino-americanismo derivado da Revolução Cubana povoou Macondo ou que a
miséria da Grande Depressão percorreu os caminhos de As vinhas da ira, o
otimismo da Espanha europeia se refletiu nos romances do escritor madrilenho.
Essa fuga do costumbrismo também
dizia respeito ao linguístico, e aqui de forma deliberada. Nada assustava mais Javier Marías do que passar por um costumbrista, como o garbancero de Galdós, de quem
fogem aterrorizados seus descendentes mais ariscos. Mas o outro lado do
costumbrismo, também com uma longa história na Espanha, como denunciou Darío em
seu tempo, é a grandiloquência, contra a qual Marías, como seu professor Juan
Benet, nunca jogou feio.
Há uma anedota que resume essa
atitude, contada por ele mesmo no ensaio que dedica a Benet em Literatura e
fantasma (1993). Após a leitura de um de seus romances, Benet criticou uma
frase por conter uma palavra que considerava insuportável: “Era a hora
imprecisa e variável em que os perfis dos edifícios fuliginosos adquirem nas
cidades uma aura púrpura, enquanto a massa imóvel e recortada fora do
firmamento, ainda mantém intacta a sua negritude”. Contra todas as
probabilidades, o termo criticado não era “fuliginosos” (“enegrecido,
escurecido, tisnado”), mas “púrpura”, porque a dita palavra, como foi-lhe ensinado
por Benet, era de origem tauromáquica, então deveria ser evitada a todo custo,
sob o risco de parecer castiço ou provinciano.
Não falta uma saudável autocrítica
na anedota, mas isso não quer dizer que Marías abandonasse aquele estilo
construído sobre o rebuscamento lexical, desde que não passasse por um
romancista plebeu. Na realidade, seja qual fosse a sua origem, o empenho
estilístico e a sua construção retórica mais do que intuitiva devem ser
apreciados numa literatura espanhola cada vez mais industrializada, em cuja
arte da prosa se notava a sua ausência. Entre os livros escritos com uma prosa
funcional e eficiente, os de Marías tinham pretensões de grande estilo, e sinceramente
não sei se, nestes tempos, é possível consegui-lo sem cair na pomposidade.
Esse estilo, literário até à raiz
no melhor e também no pior sentido do termo, caracterizava-se também pela frase
muito longa e pela digressão, traços que marcam as suas páginas. Nos seus
melhores momentos, a longa frase adquire um estatuto musical, quase dramático,
e responde à complexidade de um instante, de uma ação ou de um sentimento em
que se cruzam várias possibilidades e suspeitas, reunidas numa simples frase que
quer dar conta de diferentes caminhos que se abrem ou se fecham. Em seus piores
momentos, ao contrário, a longa frase parece artificial, uma demonstração de
falsa subordinação que não responde à avalanche de sentido, mas apenas à
habilidade de não usar um ponto final. Em todo caso, o estilo de Marías
continua a gerar fervorosas adesões e rejeições raivosas, como aconteceu desde
o início quando seus críticos mais desnorteados o acusaram, sabe-se lá com que
fundamento, de escrever em uma sintaxe inglesa, um insulto que no fundo Marías tomaria mais tarde como um elogio.
E o que esse estilo conta? Quando mais
brilha, quando Marías é mais Marías, é quando menos conta e, ao contrário, começa
a raciocinar sobre o próprio ato de narrar. O grande tema de Marías são as
motivações e consequências de narrar, o que dá vida a seus personagens e, em
última análise, a nós mesmos. A vida de vários de seus personagens transcorre
entre dois momentos centrais: realizar uma determinada ação e o momento de
poder narrar o que aconteceu, ou seja, relembrá-la, recriá-la e sepultá-la. Entre os dois
momentos podem se passar décadas, como acontece com o pai do protagonista de Coração
tão branco (1992), ou alguns dias cruciais e trágicos, como com o viúvo em Amanhã
na batalha, pensa em mim (1994), ou até mesmo pular da ficção para a realidade,
como acontece com o escritor de Todas as almas (1989), ou quando em Negro
dorso do tempo (1998) lida com os efeitos imprevistos da escrita do
romance. Seja como for, a segunda ação, a de narrar, é a mais decisiva, e os
fatos que a tornam possível permanecem apenas como um requisito para poder narrar.
Quem narra, quem sabe quando contar e a quem, como fazer e para quê, sempre
ganha, como reflete o protagonista de Coração tão branco, a quem um
homem o procura querendo de cometer um ato de vingança, que consistirá
simplesmente em contar-lhe uma história:
“‘Aqueles que contam histórias geralmente
sabem se explicar’, pensei, ‘contar é o mesmo que convencer ou fazer-se
entender ou fazer ver, e assim tudo pode ser compreendido, mesmo o mais infame,
tudo perdoado quando há algo perdoar, tudo esquecido ou assimilado e até desculpado,
isso aconteceu e temos que conviver com isso uma vez que sabemos o que foi,
encontrar um lugar para isso em nossa consciência e em nossa memória que não
nos impeça de continuar vivendo porque aconteceu e porque nós sabemos disso’. Também
pensei: ‘Até é possível alguém cair na graça se conta.’”
Mesmo seus melhores romances podem
ser vistos como construções elaboradas para que seus personagens possam ser
narrados, e nem sempre em quem eles acreditam. Num recurso replicado em vários textos,
do já mencionado Coração tão branco a Os enamoramentos (2011),
algum personagem escuta escondido, atrás de uma porta, uma longa confissão que
não foi dirigida a ele. Desta forma, os segredos se sobrepõem, pois ao segredo
inicial deve-se acrescentar o de quem sabe, enquanto o outro ignora que já
sabe. A vida torna-se assim uma série de ocultações e revelações, de dizeres e
silêncios, de versões e variações que, fatalmente, sempre que esclarecem algo,
obscurecem outra coisa. “O casamento é uma instituição narrativa”, lança um personagem naquela que é uma das suas frases mais célebres, não só pelo que
os esposos dizem um ao outro, mas, como mostra o romance, também pelo que têm
de aprender a esconder, pois a verdade pode não ser simplesmente dolorosa, mas
insuportável.
O único tão misterioso e tão
determinante quanto as consequências do ato de narrar são suas motivações. Por
que contar? Todos os personagens de Marías estão morrendo de vontade de contar
sua história, mesmo que seja comprometedora. O personagem de Amanhã na
batalha, pensa em mim cerca e persegue os parentes da mulher que ele
deixou morta em seu apartamento só para contar a eles sua versão dessa morte,
mesmo que isso o converta numa criatura repugnante. Contar implica dar sentido
aos fatos, mas também libertar-se deles, como consegue o pai da protagonista de
Coração tão branco ao confessar seu crime; contar permite resgatar a
própria vida do esquecimento, mas também passar para o próximo capítulo, como
afirma o narrador de Todas as almas ao questionar por que registra sua
estada bastante cinzenta na cidade de Oxford:
“Foi nessa noite que percebi que
minha estada na cidade de Oxford certamente seria, quando terminasse, a
história de um distúrbio; e o que ali começasse ou acontecesse seria tocado ou
colorido por aquela perturbação global e condenado, portanto, a não ser nada em
toda a minha vida, que não se perturba: dissipar-se e ser esquecido como o que
contam os romances ou como quase todos os sonhos. É por isso que estou agora fazendo
este esforço de memória e este esforço de escrita, porque de outro modo sei que
acabaria por apagar tudo. Também os mortos, que são metade de nossas vidas,
aquilo que compõe a vida junto com os vivos, sem que seja realmente fácil saber
o que separa e distingue uns dos outros; quero dizer, os vivos dentre os mortos
que conhecemos vivos. E acabaria apagando os mortos de Oxford. Meus mortos. Meu
exemplo.”
Outras das suas obsessões emergem
deste tema principal, como a do segredo, ou a de viver sabendo ou ignorando, ou
a da intrusão da ficção na realidade, de mãos dadas, claro, com os efeitos de
narrar, sejam voluntários ou incidentais. E também desse tema derivam algumas
das melhores ações de seus romances, que na verdade são diálogos.
Por exemplo, em Coração tão
branco, em uma reunião de dois chefes de Estado europeus, o intérprete
decide inventar o que está traduzindo para animar a conversa e, de passagem,
impressionar o outro intérprete que está ali para supervisionar seu trabalho.
Ou em Amanhã na batalha, pensa em mim, o protagonista contrata uma
prostituta convencido de que ela é realmente sua ex-mulher, e o diálogo que se
estabelece entre uma prostituta e seu cliente também se torna o de um cliente
que sabe que a prostituta é sua ex-mulher e no caso de uma prostituta que
reconhece o ex-marido no cliente; ambos, porém, fingem não ter notado. Tanto o
pano de fundo quanto a ação dos romances giram em torno do fato de narrar, mas
não visto como uma arte, mas como uma condenação e uma tábua de salvação,
graças ao fato de que ao narrar se confirma quem se é e ao mesmo tempo se abre
a possibilidade de ser outro.
É coerente que, ao conferirem
tamanha importância às implicações do narrar, os personagens de Marías se
dediquem às questões linguísticas, mas sempre de forma lateral ou anômala. Ao
já mencionado intérprete que distorce os diálogos de seus interpretados para
incentivá-los, devemos acrescentar o protagonista de Amanhã na batalha, pensa
em mim, roteirista de séries que nunca serão filmadas e escritor de
discursos que nunca serão proferidos; o protagonista do conto “Má índole”, que
deve aconselhar Elvis Presley para suas intervenções em espanhol em um filme
rodado em Acapulco, ou o narrador de Os enamoramentos, um editor mais
dedicado a satisfazer as excentricidades de alguns escritores.
Isso lhes permite manter uma relação
meticulosa, quase paranoica, com a linguagem, e ver uma intenção em cada virada
idiomática. É surpreendente, porém, que com tamanha sensibilidade linguística
Javier Marías seja um escritor de um só registro, e que, salvo a intrusão de
algumas palavras grosseiras ou algum idioma, todos os seus personagens falem o
mesmo, idênticos aos seus diferentes narradores, independentemente de saber se
são professores de literatura, um espião inglês, o rei da Espanha, uma
prostituta de Madri ou um assassino mexicano. Mas, mais uma vez, suponho que
preocupar-se com tais minúcias seria típico de um escritor de boas maneiras,
cujo maior mérito era o de reproduzir a fala do submundo ou dos lugares altos,
e não de um romancista de pleno direito.
Todos os escritores merecem ser
lembrados por seus melhores trabalhos, e os mencionados neste texto são, na
minha opinião, os melhores de Javier Marías. Neles, consegue-se uma harmonia
entre um estilo único, colocado ao serviço de um grande tema, contextualizado
num tempo preciso. A feliz conjunção desses três elementos está muito próxima
da definição de literatura, e não há dúvida de que a de Marías cabe aqui. Seus
romances são a encenação da importância e estranheza do ato de narrar e, ao
mesmo tempo, servem de pretexto para que seus narradores reflitam sobre a
natureza de sua profissão.
Se afirmamos anteriormente que os
personagens de Marías são intercambiáveis, um se destaca entre todos eles,
inconfundível e inesquecível: o narrador de seus romances, materializado em
diferentes vozes que acabam sendo uma primeira pessoa obsessiva e paranoica,
ambicioso que quer saber tudo e resignou-se a nunca conseguir tal feito. E
nessa ânsia e nessa impossibilidade desaparecem a vida e o romance, num esforço
quase trágico de continuar a narrar, como vingança contra o esquecimento e a
realidade.
Ao contrário de Ana María Matute
ou Max Aub, que foram, Javier Marías não foi Scheherazade; ele era, ao
contrário, o fantasma que antes e depois da visita ao sultão sussurra um
segredo em seu ouvido: “conta”.
* Este texto é a tradução livre para “El
secreto de Javier Marías”, publicado inicialmente em El Cultural, n.374,
22 de outubro de 2022, p.2-5.
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