Naqueles dias havia sempre amigas em casa
Por Pilar del Río
José Saramago à janela de sua casa em Lanzarote. |
Não combinaram, mas iam chegando a
Lanzarote amigas que nunca tinham passado pela ilha, ou que havia tempo não apareciam,
ou que, sem grandes explicações, encontravam uma desculpa para estar ali e
dividir com José Saramago os momentos que o trabalho ou o avanço da doença
permitiam.
Chegaram da Argentina ou do
México, de Portugal, da Alemanha, da Itália, da Espanha. Eram escritoras como
Ángeles Mastretta, uma das últimas a passar pel’A Casa, ou Nicole Witt,
sua agente literária, Annie Morvan, sua editora francesa, ou Pilar Reys, sua última
editora em espanhol; ou Patricia Kolesnicov, sempre tão próxima apesar de viver
em Buenos Aires, ou Lola Cintado, Mamen Otero ou Marta Carrasco, amigas de toda
a vida. Também de Portugal chegaram Carmélia Âmbar, Antonietta Tessaro ou Teresa
Beleza, que irromperam em grupo, ruidosas quase todas, imprescindíveis na hora
de ouvir um concerto, tomar o café no jardim ou simplesmente estar. Ou pintar,
como Cisela Björk, ou escrever, como Mercedes de Pablos. A verdade é que uma sucessão
de mulheres foi passando pel’A Casa trazendo em sua bagagem parte do
mundo, esse que José Saramago amava e ao qual sabia que não poderia voltar
porque seu estado se tinha debilitado e já não havia lugar para milagres,
nenhum elefante, com seus barridos, o conduziria através da neblina até o porto
de salvação. Essas mulheres diferentes, com Juan José e Óscar sempre por perto,
transformavam a casa, eram as vozes de que o espaço necessitava, o alento e os
passos que nunca se detinham. Formavam-se tertúlias, improvisou-se uma sala de
cinema para voltar ver os filmes que fizeram grande o século XX, voltou-se a
rir com Pat & Patachon e, sobretudo, escutaram-se os concertos que
os vídeos guardavam como uma mostra inquestionável do avanço da humanidade,
perdão, da tecnologia. José Saramago por vezes dirigia a orquestra com pulso
firme e com a mesma firmeza mandava calar as amigas que respeitavam menos que ele
a magia da tela que, uns instantes antes, era um retângulo branco e que, de
repente, ó prodígio, se tinha transformado numa filarmônica que trazia harmonia
ao mundo. José Saramago assistia regalado a essas tardes musicais, tantas vezes
com Bach, outras tantas com Mozart, com Beethoven, sempre recebidos com humana paixão,
essa que faz com que os espíritos se unam, a sensibilidade de uns e outros
engrandecendo o universo, o tempo parado, não existe passado nem morte, apenas
este concerto é a vida.
E chegaram as famílias, a de José
Saramago, Violante e Danilo, os cunhados e cunhadas. Uns vinham da Madeira,
outros da península, cada um trazia um presente sempre óbvio: tornar mais agradáveis
os dias de José Saramago, aumentá-los, se tal fosse possível. Como também quis
aquela jovem uma tarde na Feira do Livro de Lisboa, quando contou que seu sonho
seria levar uma ânfora, qual Blimunda, e ir pedindo tempo às pessoas com quem
se cruzava: “Dá-me uns minutos, uma semana, umas horas, estou a ganhar tempo
para o entregar a José Saramago”, dizia emocionada e emocionando os que a
escutavam. Disso se tratava naqueles dias estranhos, de tornar agradável o ambiente,
de realçar a beleza acumulada em anos de vida vivida. A Casai não se
transformou em hospital nem lugar de tristeza, havia confusão entre as idas e
vindas de uns e de outros, risos, abraços e jantares com brindes. “Que
celebramos hoje?” era uma pergunta habitual e havia sempre um motivo para
levantar copos e para nos sentirmos passageiros de um barco, ou jangada de
pedra, que ia nevando sem turbulências, sem tempestades, numa calma serena e
atenta. Às vezes, a fortuna permite que os finais estejam de acordo com o que
foram as existências, o culminar de uma experiência vital apresenta-se sem
dramatismos, como um pôr do sol que de tão suave se crava no coração.
As circunstâncias daquele período singular
não significaram a diminuição de atividades n’A Casa. Saro, Javier,
Pastora, Íñigo não deixaram de se comunicar diariamente com a Fundação em
Lisboa, com as editoras que iam reeditando obras, com os meios de comunicação daqui
e dali, que sempre enviavam uma pergunta, ou muitas, pura curiosidade jornalística.
Mantiveram-se ativos os programas de Lanzarote e de Lisboa, continuou a avançar-se
no projeto da Fundação como encontro de culturas, agora talvez com o passo mais
firme porque o tempo urgia. José Saramago escrevia ou ditava textos para seu
blog que, todas as noites à zero hora, por obra e graça de Javier Muñoz e de
Sérgio Machado Letria, se publicavam na página da Fundação nos dois idiomas e a
cada dia apareciam no Diário de Notícias.
O último texto já não o pôde
escrever, disse simplesmente que queria publicar e ditou duas simples palavras.
Aconteceu assim, era 2 de junho de 2010 e José Saramago via o telejornal das
três da tarde na Televisão Espanhola quando uma notícia lhe prendeu toda a
atenção: a flotilha da paz que pretendia romper o cerco a que estava submetida
a Faixa de Gaza, e que transportava material escolar e sanitário, foi atacada
pelo exército israelense com uma violência inusitada. Saramago contemplava as
imagens com a atenção que o assunto exigia. Olhava o televisor como que hipnotizado,
talvez pensando que se a doença não o tivesse impedido, ele estaria ali, nessa
flotilha, quando umas palavras o comoveram particularmente. Eram estas: “Entre
os membros da flotilha da paz, encontrava-se o escritor sueco Henning Mankell”.
Rapidamente, José Saramago pediu que se abrisse seu blog, porque queria
escrever. Ditou: “Obrigado, Mankell”, nada mais. Essa tarde José Saramago
sentiu não poder fazer nada nem pelos mortos do ataque nem pelos palestinos que
sofriam o bloqueio, embora o gesto solidário de um companheiro de letras a
bordo dessa flotilha de paz justificasse sua ausência. “Obrigado, Mankell”:
essas duas palavras são a última entrada em seu blog, a última coisa que
escreveu ou ditou em sua vida. José Saramago morreu dezesseis dias depois.
* Excerto de A intuição da
ilha. Os dias de José Saramago em Lanzarote (Trad. Sérgio Machado Letria, Companhia
das Letras, 2022).
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