Literatura e ativismo: as novas gerações
Por Gisela Kozak Rovero
Jacob Lawrence. |
A poeta Amanda Gorman recitou seu poema “The Hill We Climb” no ato oficial do
início da presidência de Joe Biden, apresentação que internacionalizou seu
nome. Em várias entrevistas, Gorman insistiu no caráter não apenas político,
mas abertamente ativista de sua escrita em favor da identidade afro-americana; confessa
que no passado acreditava que a poesia era assunto para velhos e brancos, uma
afirmação curiosa porque a língua inglesa produziu poetas extraordinárias e durante
a curta vida dessa jovem uma enorme atenção foi dada às escritoras. Pouco
importa: a iconoclastia literária não cessa.
Identificando-se como uma mulher
negra estadunidense de origem modesta que se rebela contra os seus antigos,
Gorman, em vez de se separar do passado, junta-se a ele inextricavelmente. Com
sua firme defesa da identidade afro-americana e sua boutade em relação à
branquitude masculina idosa, esta escritora participa dos ritos de passagem que
marcam a entrada na legitimição literária. A mesma rebelião em relação ao
estabelecido foi protagonizada por homens e mulheres de letras desde o século
XIX, talvez com menos sorte.
Amanda Gorman me dá a oportunidade
de falar sobre a espinhosa questão da militância e da literatura. Não há dúvida
de que a questão da identidade se expandiu entre as novas gerações, e não
apenas nos Estados Unidos. A partir da poesia falam-se de sexualidades e de
identidades de gênero, de raça, de diferença cultural, de migração ou de feminismo.
O temido panfleto político de esquerda volta à literatura? Na realidade, o
risco da mensagem política unívoca nunca desapareceu; o que testemunhamos é uma
nova versão da tensão entre as diferentes tendências estéticas e destas em
relação ao passado.
No século XX, a questão da
identidade nacional era central na América Latina, tanto quanto é hoje a
questão das identidades raciais, sexuais, culturais e de gênero. Expressou-se,
sobretudo na segunda metade do século, com a renovação das linguagens
estéticas, exigência nodal da literatura na modernidade. Este é o ponto
crucial: a ousadia estética é importante nesta época como era há algumas
décadas? A elaboração formal diferenciaria entre si escritores e escritoras
dedicados a investigar os conflitos atuais, da mesma forma que diferenciava os
textos de Elena Garro ou Carlos Fuentes das muitas páginas esquecidas dedicadas
à identidade nacional.
No entanto, parece que os projetos
de leitura e escrita gostam menos das experimentações radicais do que de
explorações realistas ou fantásticas de gêneros populares no cinema e na
televisão. Aliás, não é um juízo de valor: leio com prazer e admiração a
narrativa de hoje, com escritores tão marcantes como Karl Ove Knausgård,
Mariana Enríquez, Benjamín Labatut, Elena Ferrante e Valeria Luiselli,
irredutíveis à pura elaboração do discurso audiovisual.
Por outro lado, prevalecem as
realidades culturais da era digital, propícias a modos de leitura alheios à
longa paciência exigida pelo livro impresso, pelo texto de filosofia e pelo
romance mais prolixo. O fato de os contistas e poetas voltem a render pouco a
pouco para as editoras, sem a necessidade de serem romancistas de sucesso para
garantir as vendas, confirma que na literatura nada se perde e tudo se
transforma. Dá então a impressão, apenas a impressão, de que estamos aos poucos
voltando a gêneros ofuscados pelo romance, embora seja preciso trilhar com
cuidado esse caminho: o grande público ouve músicas, se diverte com séries e
filmes, lê longas narrativas baseado em best-sellers mundiais e apela a
histórias de autoajuda.
Em todo caso, a avalanche de
textos sobre questões identitárias não deve nos alarmar mais do que nos alarmaram
os imitadores de Pablo Neruda e os seguidores de Gabriel García Márquez no
passado; nem as elaborações frequentes de feminicídio e da violência marginal
ou do estado. Na literatura muitos são chamados e poucos são escolhidos; por
exemplo, li poemas, romances e contos maravilhosos que exploram a identidade
lésbica; também textos que não valem nem as horas ou sequer os minutos neles
investidos. As obsessões identitárias são menos preocupantes do que o
politicamente correto e a censura, questões abordadas em texto anterior.¹
Os menores de quarenta anos estão
a meio caminho entre a escrita e a oralidade típica do mundo audiovisual e
digital; enfrentam a insegurança no emprego e a façanha cada vez mais
impossível de ganhar a vida com o ofício literário; insistem em trilhar os
caminhos estreitos de um discurso estético de raízes antigas, cuja importância
educacional e cultural foi diminuída; insurgiram numa época que desconfia do
culto do gênio e prefere, se me permite a ironia, a inteligência emocional, tão
longe da criatividade radical. Acima de tudo, cabe-lhes no futuro imediato e
mediato das crises da democracia e dos valores que têm cimentado a existência
de posições tão críticas como as de Amanda Gorman, sem a condenar por isso à
marginalização ou à censura.
Notas
1 Refere-se ao texto “Literatura:
censura e boas intenções”, traduzido aqui.
* Este texto é a tradução livre
para “Literatura y activismo: las nuevas generaciones”, publicado aqui, em Letras
Libres.
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