José Saramago — português e universal

Por José Vieira

José Saramago. Foto: Fernando Peres Rodrigues.


 
Era uma vez um homem nascido na Azinhaga e que lá voltou para nascer outra vez. Era uma vez o neto de Josefa Caixinha, a menina de 90 anos que tinha pena de morrer porque o mundo era tão bonito. Era uma vez o neto de Jerónimo Melrinho, o velho que sentindo a morte chegar foi despedir-se de todas as árvores do quintal. Era uma vez José de Sousa, o homem que se fez Saramago e ganhou o Prémio Nobel da Literatura. Era uma vez o centenário desse escritor, feito a pensar nos próximos cem anos. Era uma vez um escritor, um autor, um narrador, um cidadão. Era uma vez.
 
O homem que não nasceu “para isto” é o mais universal de todos os escritores de língua portuguesa. Se é certo que o Nobel pode ser visto como mais um prémio, havendo interesses políticos e ideológicos à mistura, a verdade é que, no caso do escritor português, este é um prémio mais do que justo e merecido. Um galardão que reconhece o percurso de um homem que não se separa do narrador ou do autor, muito menos do cidadão. Para Saramago, a escrita é a voz e a arma e o grito. A ele pertence-lhe por inteiro a palavra.
 
O elogio de um escritor compatriota pode soar a discurso melancólico, apologético e gratuito, fazendo lembrar certas personagens queirosianas, mas a obra de José Saramago fala por si. Se ela é, em parte, profundamente portuguesa, não é menos verdade que seja universal. Não é a história do nosso país que está em causa em Levantado do Chão, em Memorial do Convento, em O Ano da Morte de Ricardo Reis ou em História do Cerco de Lisboa. O que interessa sempre é a reflexão que advém como resultado das ações das personagens, históricas ou ficcionais.
 
Memorial do Convento é uma das mais belas histórias de amor da nossa literatura. Não por acaso, Eduardo Lourenço disse que naquele romance estava “tudo”. O livro é ainda um hino ao sonho, à superação e à capacidade redentora que o homem tem dentro si. No romance que conta os últimos nove meses de vida do heterónimo pessoano, não é a história de Portugal e a instauração do salazarismo ou a ascensão do fascismo e do nazismo na Europa o grande motivo e a grande causa da narrativa. O grande tema reside na força e na indignação empenhada que a ataraxia de Ricardo Reis deve provocar nos leitores. A superação da morte de Ricardo Reis está presente na criança que Lídia carrega no seu ventre. Essa mesma Lídia que rasgou o papel pardo das odes de estilo clássico, símbolo da mulher que em Saramago é sempre heroína e soberana. Em Levantado do Chão, não é a história do século XX português até ao dia da Revolução dos Cravos o grande motor da economia do romance. É a história dos Mau-Tempo e dos seus vizinhos, companheiros e amigos. É a epopeia de um povo sempre injustiçado, que viaja pelos mares gregos do latifúndio alentejano por mais de vinte anos, superando aquela outra viagem de Ulisses. Em História do Cerco de Lisboa, é o não de Raimundo Silva que dita o tom e o gesto da narrativa. Aliás, no conjunto da obra de Saramago, o não é a afirmação mais veemente da autonomia do ser humano.
 
Em todas as obras as personagens ousam dizer não. Não te deixarás subjugar pelo poder de um rei absoluto. Não te deixarás matar nem matarás em nome de nenhum deus. Não te deixarás levar pelo poder opressivo de um regime ditatorial. Não te permitirás ser intolerante, dogmático. Não te permitirás observar o espetáculo do mundo sem agir. Não te permitirás cegar. Não deixarás nunca de pensar pela tua cabeça. Não. Não. Não.
 
O não é o verdadeiro sal da terra, dos livros, da literatura, da vida e do ser humano. É o homem quem efetivamente pode salvar o homem, por mais que vivamos num mundo de cegos, de crueldade e de injustiças. A universalidade de José Saramago está naquele cão que lambe as lágrimas de uma mulher que chora perante o desastre do mundo. A obra do nosso Nobel encontra nesse cão que lambe as feridas da humanidade uma luz, pequena, é certo, mas brilhante o suficiente para superar um mundo péssimo e uma humanidade cruel. É Blimunda quem salva Baltasar. É Maria Sara quem salva Raimundo Silva. É Jesus quem salva os homens de Deus. É Lídia quem redime Ricardo Reis. É a morte quem salva o violoncelista. É o elefante que redime Subhro e a expedição portuguesa. É Lilith quem acolhe Caim nos braços. A obra de Saramago é um longo, subterrâneo e profundo elogio à possibilidade de superação e redenção do homem. Como a estática que existe qual som de fundo desde o Big Bang, assim são os romances, as crónicas, as peças de teatro e todos os textos do homem que se tornou Saramago.

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Como é sabido, o texto “A estátua e a pedra” trata de uma reflexão em que o autor de A Caverna sistematiza ou tenta atribuir um percurso e um sentido a toda a sua obra, dividindo-a em dois momentos: o primeiro é aquele que vai de Manual de Pintura e Caligrafia até a O Evangelho Segundo Jesus Cristo como o período da descrição da estátua, que é “a superfície da pedra, o resultado de retirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, a figura” (p. 33); o segundo, por seu turno, começa com Ensaio sobre a Cegueira, que é já “uma tentativa de entrar no interior da pedra, no mais profundo de nós mesmos, é uma tentativa de nos perguntarmos: O quê e quem somos. E para quê.” (p. 34).

Ainda que a reflexão de Saramago seja rica em interpretações e até em algumas controvérsias, não nos iremos alongar na distinção entre a estátua e a pedra, mas antes nas palavras que se seguem:
 
“Os que escrevemos corremos o risco de imaginar que a literatura é tudo, e que para além dela não existe mais nada. No entanto, acredito que assim como na nossa vida se vão sucedendo acontecimentos de todo o tipo, também na literatura se sucedem estes acontecimentos, que são expressão do que sentimos e pensamos: a criação é a forma que temos de colocar cá fora as nossas esperanças, as nossas certezas, dúvidas, as nossas ideias.” (p. 36).
 
Fica entendido, pois, que não é a literatura que deve interessar, mas sim o ser humano e a vida, fontes inesgotáveis de histórias, relatos, acontecimentos e personagens. Parece ser essa a mensagem de José Saramago, todavia, sabemos como a literatura será importante para instaurar a memória e o passado a partir de uma narrativa que tente superar as contingências do tempo.
 
A obra de José Saramago é portuguesa porque é essencialmente universal. Somos todos nós, de todas as partes do mundo, que estamos dentro daqueles livros e de todas aquelas peripécias. São os nossos encontros e desencontros com o divino e com o poder político. São as nossas dúvidas acerca do bem e do mal, da justiça e da injustiça.    
 
A escrita de Saramago é um combate contra a unanimidade hipócrita e contra a apatia. Num tempo como o nosso, mergulhado no caos do idêntico, que não gera dor nem mal-estar ao cidadão ou ao observador, o que Saramago propõe é o posicionamento consciente contra a proliferação do idêntico, fábrica de comodismo, seguidismo e de produção de uma sociedade de consumo de informação. De informação enviesada, controlada, deturpada. Num tempo em que “o sujeito fica aturdido a olhar para o ecrã, até perder a consciência” (2018, p. 10), como escreveu Byung Chul-Han em A Expulsão do Outro, a herança de Saramago caminha rumo a uma noção de sociedade da justiça e, antes de mais, rumo a uma sociedade de leitores cidadãos atentos, conscientes e reivindicativos.
 
O elogio da leitura, dos livros, dos leitores e do conhecimento parece ser uma ideia um tanto óbvia ou mitigada, mas a verdade é que num mundo em que se publicam tantos livros e tantos escritores, urge a leitura séria que exige tempo, lentidão e concentração. A leitura que transforma, qual maiêutica. Um escritor como Saramago não escreve para nenhum leitor em particular nem para um leitor ideal, antes pelo contrário. A escrita de Saramago é luminosa porque desassossega e, qual ensinamento de Caeiro, faz ver. Ensina a ver.
 
Tal como Baltasar, que “não subiu para as estrelas se à terra pertencia”, assim é a obra de Saramago, o nosso Blimundo. Português e Universal.
 

Bibliografia
HAN, Byung-Chul. A Expulsão do Outro. Tradução de Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2018.
SARAMAGO, José. A estátua e a pedra. Lisboa: Fundação José Saramago, 2012.
 
 

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