José Saramago e a trajetória do romance
Por Pedro Fernandes
José Saramago em seu escritório |
Desde cedo José Saramago foi um homem feito de palavras. Mas
isso, de alguma maneira, todos nós somos. Quando pensamos o mundo como uma
matéria derivada da relação que com ele mantemos mediada pela consciência,
sabemos que nada existe, nem a própria consciência, sem a palavra. Ainda assim,
a afirmativa se reveste de uma dimensão particular quando seu referente é um escritor.
É que nesse caso a palavra é também seu ofício e especificamente em Saramago a
escrita não é somente seu produto, mas via de interrogação sobre o mundo. Evidentemente
que não foi ele inaugurador dessa singularidade — herdada, claro está, do
modelo do intelectual engajado do qual Jean-Paul Sartre foi seu conceituador e um
típico representante e das motivações de corte social-marxista —, mas é quem a
resgata numa ocasião quando constatamos o assoreamento do lugar social do
intelectual e ainda quando os valores da escrita literária se tornam ora presos
a um fechamento radical das vanguardas ora difusos com os valores gerais da palavra,
prestando-se apenas a um papel objetivo e pragmático. No interior das relações
impostas pelo capitalismo selvagem, essas transformações, sobretudo o
apagamento das dimensões estéticas e éticas da linguagem, podem ser a peça
faltante para a nossa barbárie, e contra isso, José Saramago lutou até o último
instante de sua vida: com as intervenções públicas que se fizeram perenes a
partir de quando recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1998 e com a
literatura, desde sempre, ainda nos primeiros tempos do jovem imberbe sonhador
com a possibilidade de viver não apenas na mas da palavra.
Um aspecto que logo chama atenção de forma quase unânime e,
portanto, corriqueira àqueles que se deparam a primeira vez com a escrita de
Saramago, é o estilo de narrar, que ora preserva, ora mais que isso,
intensifica a oralidade no interior do código escritural, fazendo do texto
literário, como afirmou em Diálogos com José Saramago, um “exercício
muscular”, impossível de, à primeira vista, conseguirmos precisar momentos de
narração, fala ou volição psicológica do narrador e da personagem. Quando de
posse desse estilo único de narrar, agora naturalmente saramaguiano, os seus
leitores podem descobrir uma parte da beleza do poético que se manifesta pelo
estranhamento. A tessitura da narrativa saramaguiana, entretanto, não é apenas
uma espécie de catalizador capaz de cooptar o curso da oralidade, isto é, uma
maneira, o modo ou a posição de como se fala, mas também o que nela se redivive
e se antecipa, isto é, as linhas de uma consciência que se faz anterior e
posterior ao aparecimento da palavra. O resultado disso é seu narrador, consciente
de tudo na narrativa — épico, como já o conceituaram — e ainda capaz de questionar,
discutir e analisar aspectos de ordem diversa: um problema, um aspecto, uma atitude,
um comportamento, uma característica de sua personagem, uma palavra, um
segmento discursivo e, claro, mesmo a própria narrativa.
José Saramago nasceu numa família de agricultores do
Ribatejo, então aldeia de Azinhaga, Golegã, em 16 de novembro de 1922. Pelas
origens, sua vida pertenceu primeiro ao grupo das mais improváveis de vingar e depois
ao das mais improváveis de alcançar o lugar que o fez reconhecido em toda parte
sobretudo valendo-se do ofício da escrita num contexto de obstruções de toda
natureza e principalmente porque destinado a uma certa elite intelectual que
sempre se confundiu com a gente de alguma posse, financeira, letrada ou de boas
relações. A condição da improbabilidade sempre regressa não apenas quando
encontramos com os dados biográficos, mas todas as vezes quando nos encontramos
entre sua obra. E para pensar não como Saramago rompeu com as predestinações —
porque isso se faz visível na persistência e dedicação ao ofício e em como
administra as poucas oportunidades capazes de colocá-lo no meio do literário — mas
para pensar como e quando nasce um escritor. Ele próprio disse-nos que os
contínuos retornos à rústica aldeia, foi o que o permitiu, muitas vezes,
“nascer”. Este verbo reveste-se de uma variedade de camadas: é o de outra vez
se integrar às suas origens, como se perdê-las fosse o que de pior pudesse
acontecer ao moço que foi se fazendo citadino; é o descobrir-se, no sentido de
construção de uma identidade própria; é o encontrar um ponto de vista,
igualmente particular, de perceber o mundo, este que consegue articular numa
mesma extensão modos de vidas tão diversos quanto o do intelectual de academia
e do pensador educado na experiência de mundo; é ainda articular seu próprio
trato com as primeiras dimensões da palavra, o ouvido para a oralidade que mais
tarde o servirá no despertar dessa extensão do seu estilo quando outra vez se
reencontra entre a língua dos seus ancestrais em Lavre e o impasse de uma
própria maneira de narrativização, florescida, como sabemos, nos alvores da
narrativa de Levantado do chão.
Parece então que um escritor nasce enquanto tal muito antes
de seus primeiros rabiscos ou publicações dos primeiros livros; no caso de José
Saramago, muito antes de se fazer um autodidata por entre as paisagens dos
livros, sem bússola e sem roteiro, nas constantes noites, no contraturno do
trabalho, em que visitava a Biblioteca do Palácio Galveias; o escritor nasce do
convívio com a paisagem alentejana, com os avós e com as histórias desses
antepassados, como afirma no emocionante e belíssimo discurso da noite de 7 de
dezembro de 1998, na Real Academia Sueca. Isto é, não são apenas os atos de ler
e escrever, a publicação dos livros, a presença na roda de intelectuais, o
desenvolvimento de um grupo de leitores e das mais variadas linhas de leituras
e estudos sobre sua obra; não é apenas o Prêmio Nobel ou a extensa lista de
condecorações recebidas em meio mundo. Um escritor se faz de um contexto de
adversidade — expressão que deve ser entendida em seu amplo sentido e não
apenas como significado de limitação — e de um interesse interior
obsessivo em transformar isso em matéria de subversão; do mesmo imperativo,
portanto, que se faz um jogador de futebol, um professor, um cientista. Depois do
ímpeto, uma condição. E da condição, uma obra.
Em todos os cantos da arte literária — da prosa (crônica, conto,
romance, diário, ensaio, discurso) —, à poesia e ao teatro, o leitor que
atravessa a fronteira do rico universo criativo de José Saramago descobrirá uma
obra que ao transformar o lugar, o ponto de vista e os acontecimentos
particulares sempre buscou apreender a universal pelo questionamento crítico a
complexidade da existência. Essa afirmativa encontra fundamento no já referido
discurso “De como a personagem foi mestre e o seu autor aprendiz” e numa
conferência que ofereceu em Turim, Itália, no mesmo ano de 1998: A estátua e a
pedra (ou Da estátua à pedra)¹. Trata-se de uma metáfora desenvolvida
por Saramago para descrever sua obra como articulada por dois movimentos
distintos, mas complementares: “a estátua é só a superfície da pedra, é o
resultado daquilo que foi retirado da pedra”, diz; e depois d’O Evangelho segundo
Jesus Cristo percebe haver deixado de descrever uma estátua para “entrar na
pedra”. Estávamos no Ensaio sobre a cegueira, quando o escritor depois de
afirmado é agora capaz de expandir a variada aprendizagem de seu mundo para dizer
sobre o mundo dos da sua comunidade. As duas fases, portanto, são: uma voltada
para a criação no interior da matéria bruta e outra para o exame da matéria.
A primeira delimita-se, grosseiramente, como uma fase
histórica. Grosseira porque não é o escritor de livros históricos, mas um
preocupado em revolver, como arqueólogo, a materialidade da história, para
redimensioná-la a fim de uma compreensão mais afinada e, consequentemente, mais
profícua do passado e do seu presente. A história não é o problema central de
sua obra, nem é elemento figurativo, ou o pano de fundo para sua ficção. A história
é situação. O escritor nela se firma ou assenta suas criaturas para, então,
fazer seu balanço, apreendendo e analisando o pormenor, os silêncios, os
vazios, os possíveis, os esquecimentos, os interesses que fizeram determinadas
circunstâncias passarem para o caderno das importâncias dos historiadores. Uma consciência
ou preocupação com as margens se deve — como sabemos por Teresa Cerdeira em seu
indispensável José Saramago entre a história e ficção e também pelo
escritor —, a Georges Duby, de quem traduziu O tempo das catedrais e
entrou em contato com o que se chamou Nouvelle Historie.
A segunda fase, uma escavação do homem e da sua existência;
do homem não apenas enquanto sujeito histórico, mas, principalmente, enquanto sujeito
social, político, parte indispensável no destino da coletividade; da existência
não como o acontecido e o acontecimento, mas o que nos faz ser quem e como somos;
ou ainda uma interrogação sobre por que somos de uma e não de outra maneira;
acerca desse último aspecto, Saramago não se pergunta quanto ao emaranhado de
motivações interiores que nos determinam ser, mas quais possibilidades,
quais elementos exteriores forjados por nossas atitudes nos possibilita para isso
e não para aquilo; e, ainda, quais chances temos nesse mundo que
buscamos fazê-lo pela negação, seja do paradoxo e da fragmentação inerentes,
seja das simplificações que apenas complexificaram o real como um produto cada
vez mais volátil à nossa própria compreensão. Existe, portanto, o restabelecimento
de uma filosofia centrada na humanidade como medida de todas as coisas: aquela
dimensão ética que a todo momento sua palavra nos provoca.
A metáfora da estátua e da pedra parece alimentada de outra
compreensão sobre o funcionamento da sua obra romanesca, a primeira que se
exercita nesse sentido e com a qual manteve contato, como se referiu nos seus Cadernos
de Lanzarote.² Trata-se do estudo elaborado por Horácio Costa. Repete-se
com alguma frequência que José Saramago foi um escritor tardio ou ainda que Levantado
do chão constitui seu primeiro romance de reconhecimento e a partir dele se estabelece
sua literatura — o que não é verdade, não dessa maneira. Em O período
formativo se coloca à luz todo um rico tempo essencial para se compreender
melhor como o livro de 1980 foi resultado de uma longa porfia com a palavra,
que entre esse episódio e a gorada estreia aos vinte e cinco anos com Terra
pecado (originalmente intitulado A viúva) existiu alguém que
profundamente envolvido com a escrita, fosse como jornalista, tradutor, poeta,
cronista, crítico literário, contista, dramaturgo e romancista. Sim,
romancista. Dos vários enredos começados e não terminados antes de colocar em
funcionamento a faina do homem alentejano ante os poderes cerceadores, Saramago
escreveu Claraboia (cujo manuscrito ficou muito tempo desaparecido e depois
o livro só veio a público, por sua decisão, postumamente) e Manual de
pintura e caligrafia, também um dos seus melhores romances, com o qual
obteve alguma recepção crítica. Assim, ao tempo da estátua, podemos justapor o
de estudo, de formação como designa Horácio Costa; ao da pedra, o tempo de
maturidade do escritor. A separação das duas possibilidades de ordenamento da
obra, portanto, considera apenas lugares distintos dos seus proponentes: o
escritor olha a partir do interior do seu ateliê de criação — é feita do
convívio com sua obra; o crítico, por sua vez, a partir da maneira como o
escritor transitou da sombra para a luz.
Aos dois movimentos que constitui o complexo metafórico
formulado por José Saramago, acrescentamos um terceiro que o encerra mais ou
menos numa unidade: a releitura. Depois da estátua e da pedra, o que resta ao
escultor é a possibilidade de revisitação do trabalho e das matérias de sua
composição. Isso começa a se estabelecer, claro está, nos textos de exame do
seu trabalho aqui referidos e se confirma melhor nos seus três últimos livros
de ficção; A viagem do elefante, Caim, e Alabardas, alabardas,
espingardas, espingardas consolidam uma marca característica da poética
saramaguiana: o ato contínuo de rever e de produzir a partir de sua própria
matéria. É bem verdade que nada sabemos sobre o desenvolvimento da obsessão de Artur
Paz Semedo porque o que seria o último romance de Saramago ficou interrompido
nas primeiras linhas e num pequeno conjunto de notas, mas a apreciação agora considera
apenas o objeto livro (e suas intenções) e este veio a público em 2014. São,
portanto, três livros que retornam a dois lugares importantes da obra, um gesto
como o de quem buscava iniciar um processo de preenchimento das eventuais faltas
do seu projeto criativo ou mesmo uma tentativa de oferecer uma unidade: os dois
primeiros romances regressam quando a história e o mito constituem o objeto de
preocupação central da sua literatura; o último revisita a atitude
questionadora e cívica de um indivíduo ante um problema de nossa coletividade.
Ora, bem se vê que a releitura não é uma contemplação desinteressada, mas de
alguém que à maneira de Jorge Luis Borges entende sua obra também como um
contínuo campo de experimentação, no qual, a recorrência é apenas um dos
elementos. O que isso demonstra é que essas fases que distinguem seu projeto
literário são também contínuas e dialéticas e a revisão é parte da mediação
entre a estátua e a pedra; descobrimos que entre o escritor em formação e o da
maturidade, nunca deixou de existir o que continuamente se experimenta. Para
Saramago, a obra foi fruto de um trabalho intermitente que só acabou com o fim
da vida. Isto é a prova material de que as fronteiras entre vida e literatura
são sempre tênues e, por isso, como dizia, sempre aparecem confundidas.
Notas
1 Da estátua à pedra é o título da conferência na
edição brasileira. Nesta publicação, Pilar del Río esclarece sobre a releitura
de José Saramago da versão espanhola deste texto e a correção de próprio punho para
o título. Ao propor um movimento de digressão entre um ponto e outro e não o de
fechamento autônomo dos termos, como aparece nas primeiras publicações
italiana, portuguesa e espanhola da conferência, confirma-se o que mais tarde
afirmaremos como uma dialética da poética saramaguiana.
2 Na entrada do dia 22 de abril de 1994, do Diário II,
Saramago registra que passou todo o dia na leitura do estudo de Horácio Costa:
“Pela primeira vez alguém deixa de lado a relativa facilidade de análise dos
livros que publiquei a partir de Levantado do Chão para atrever-se a
penetrar no quase indevassado pequeno bosque do que escrevi antes”.
Livros diretamente citados
Carlos Reis. Diálogos com José Saramago. Lisboa,
Caminho, 1998.
José Saramago. Da estátua à pedra e Discursos de
Estocolmo. Belém, Edufpa; Lisboa, Fundação José Saramago, 2013.
Teresa Cristina Cerdeira da Silva. José Saramago entre a
história e ficção: uma saga de portugueses. Belo Horizonte, Editora
Moinhos, 2018, Coleção Estudos Saramaguianos.
Horácio Costa. O período formativo. Belo Horizonte,
Editora Moinhos, 2020, Coleção Estudos Saramaguianos.
José Saramago. Cadernos de Lanzarote. Diário III. São
Paulo, Companhia das Letras, 1197.
* Parte deste texto integra a edição da revista para a Feira
do Livro de Maputo em 2022.
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