Essa gente: uma análise da crise moral da elite carioca
Por João Arthur Macieira
Figura mais do que conhecida do
meio artístico brasileiro, Chico Buarque também criou seu espaço no campo
literário, principalmente depois da publicação de Estorvo (1991). Isso
porque sua literatura, tal qual sua música, pode combinar, através de uma
polifonia que não se imiscuiu de pular do masculino ao feminino, da “alta
cultura” à cultura popular, dos apartamentos do Alto Leblon às favelas, rodas
de samba e mundo do crime que habitam o Rio de Janeiro. Se em Estorvo,
como bem observou Roberto Schwarz, era possível perceber uma espécie de
degradação moral daquilo que se pode chamar de “povo brasileiro” — isto é, os
personagens que emergem naquela narrativa que representam as camadas pobres da
população já eram marcados por um comportamento que seria chamado por Laval e
Dardot de produção da fábrica de sujeitos neoliberais — em Essa gente (2019)
foi a vez das elites cariocas, em especial aquelas em decadência financeira (o
que engloba, possivelmente, todas elas) receberem o holofote da anomia moral.
Em alguns pontos, pretendo
ressaltar como Chico Buarque analisa essa crise. Crise essa que marca todo o
universo dos personagens da narrativa, misturando elementos dos laços de
solidariedade social (família, casamento, relações de trabalho e amizade), mas
também política, economia e estética. Fica-se com a impressão de que, na sua
profunda crise, que passa quase desapercebida para o próprio sujeito, o
narrador — figurado em Duarte, o escritor proveniente da nata da elite carioca —
encontra-se também a chave da crise total da sociedade que o cerca.
Nisso, o livro de Chico encontra
as outras narrativas que pretendo analisar aqui. Há uma ligação de proximidade
entre crise do sujeito, que tenta inutilmente se agarrar aos antigos laços de
solidariedade (esses também marcados por uma espécie de dominação, à qual
tentarei elaborar mais especificamente durante o desenvolvimento da tese),
claramente em decadência, com a crise geral do corpo social, cujo
desmoronamento aparece por vezes apenas nas margens, mas de maneira bastante
direta.
Nos sonhos, nas falas menores, nos
comentários irrefletidos, vê-se que a fragmentação do tecido social atingiu um
nível crítico, no qual apenas as relações mediadas pela forma mercadológica
continuam a funcionar. Não difere tanto, se aproximamos esses breves
comentários daquilo que nos legou Roberto Schwarz em Um mestre na periferia
do capitalismo, do que Machado de Assis traduziu com bastante acidez e
humor para suas ficções no início do século XX.
Contudo, uma mudança importante
pode ser argumentada aqui — não apenas a partir do livro de Chico, mas também
de outras obras ficcionais produzidas nos últimos vinte anos no Brasil: o
discurso característico dos sujeitos pertencentes à elite carioca que Machado
figurou estava numa posição segura. Ele não disputava espaço dentro do cenário
econômico ou político. Daí que uma marca bastante ressaltada por Roberto
Schwarz em sua análise seja o tédio do jovem proveniente dessa classe;
tédio que se confunde com uma melancolia profunda, marcado pelo desejo de
transgressão (desde à fuga do Rio de Janeiro, até relacionar-se firmemente com
um personagem de outra classe social). Em Essa gente, a vida dessa elite
é muito distinta: ela parece estar perdendo espaço para uma outra classe emergente
e com ela, suas próprias noções de civilidade, ciência, filosofia, estética
etc.
Um autor que percebeu esse
processo a partir de análise socioantropológica, se bem por meios muito
distintos, foi Gabriel Feltran em ensaio publicado na revista Novos Estudos.
A elite a qual o narrador de Chico Buarque pertence tem pouco a ver com os
novos sujeitos sociais que vem ocupando o papel de classe dirigente da
sociedade brasileira nos últimos anos. Ainda que marcado por hipocrisias, por
falta de habilidade real, pela misoginia, pelo preconceito e certo sadismo em
relação às classes inferiores (exatamente como era o narrador das Memórias
póstumas de Brás Cubas, sempre segundo Schwarz), esse narrador ainda
carrega consigo um desejo de pertencer e participar — e, porque proveniente das
elites — conduzir a cultura e vida da cidade.
A “nova elite”, figurada em
personagens que investem em soja na Amazônia, ou que encomendam estátuas de
ouro do presidente (em clara referência aos apoiadores de Jair Bolsonaro),
pouco ou nada tem a ver com a vida da sociedade. Aliás, “sociedade” é um tema
que desaparece do cenário: cada personagem, quase todos em crise financeira,
moral, intelectual, artística, se vira como pode aplicando ao próximo todo tipo
de golpe, falcatrua, enganação, quando não ameaçando, agredindo ou seduzindo.
A atomização social do mundo
construído em Essa Gente é quase um espelho do processo de
empresariamento que marca a sociedade brasileira no capitalismo contemporâneo.
Se, como colocou Rodrigo Nunes, o fenômeno chamado de bolsonarismo —
constituinte da estrutura interna do romance de Chico Buarque — é um
empreendimento político, que incentiva e reelabora as ações sociais a partir da
mesma lógica, então podemos ler as relações estabelecidas entre os personagens
daquela narrativa como uma gradual transição para a hegemonia do
empresariamento.
Crise do sujeito
Um dos elementos que diferenciam a
obra de Chico da de Machado de Assis, se pudermos colocar as duas numa
comparação um tanto anacrônica é o fato de que, se o narrador do primeiro vive
no tédio ou saltando de projeto em projeto porque sua posição é tão consolidada
numa sociedade em que mesmo as elites estão confinadas a uma ou duas opções de
vida para se manterem no mesmo status social, o narrador de Chico é
membro de uma classe em crise.
Sua condição financeira, devido a
sua profissão de escritor é, durante todo o romance, determinante para sua
constituição interna, assim como de status perante a pequena comunidade
que constitui a elite com a qual vive. Diz o narrador que nos anos de 2018, ele
passa a ser um estranho para o qual se olha como se “torce o nariz para um
imigrante, um pobretão”; sua mágoa provém não de uma larga distância social
desses que torcem o nariz, mas pela grande proximidade: “Mal sabe essa gente
que que nos últimos anos morei na avenida mais nobre do bairro” (p. 20-21),
referindo-se à orla do Leblon.
O livro abre com um pedido do
escritor solicitando mais dinheiro para a finalização de um romance que já
conta com três anos de atraso. Com o desenvolvimento da narrativa, vamos
descobrindo sua origem proveniente dos altos círculos cariocas, tendo estudado
em colégio de elite (o Santo Inácio), filho de um famoso magistrado da cidade,
herdeiro de um apartamento de enormes proporções na praia do Flamengo. Mas isso
não impede que a síndica de seu condomínio comunique ao resto dos moradores que
sua presença e comportamentos — como pedir comida tarde da noite e trazer
prostitutas até seu apartamento — sejam vistos como “óbvios prejuízos à
reputação do Edifício Sant Eugene” (p. 18-19). O problema que pode ser abordado
aqui é o senso de comunidade dessa elite, que passa a ver o escritor, depois
que deixa de ser parte do referencial cultural da cidade, como uma fonte de má
reputação.
Ficamos também sabendo que o filho
de Duarte não é seu, mas “possivelmente de algum escritor de merda, um desses
gringos que vêm encher a cara em feiras literárias” (p. 28). Toda vez que a
condição do escritor é abordada, não é sem motivo: ela carrega consigo uma dupla
possibilidade, ora aquela que Duarte uma vez ocupou, de grande sucesso e
influência cultural, o que o consolida entre os círculos de elite, ora envolve
uma posição de pouco status social, associado à figura do vagabundo malsucedido.
A posição do escritor brasileiro perante o possível estrangeiro, com quem sua
ex-esposa possivelmente teve o filho, faz parte de um universo bastante
analisado pelos estudos literários.
A inferioridade do nacional em
relação ao estrangeiro fica mais que evidente na submissão a qual Maria Clara,
ex-esposa de Duarte e revisora e tradutora na mesma editora, é posta perante um
famoso escritor espanhol, o sr. Balthasar, de quem deveria traduzir o livro. Ao
tentar se colocar numa posição de igualdade, a fim de debater a tradução de sua
obra, ela se vê perante um dilema mais sociológico do que literário, na medida
em que precisa escolher entre acatar as reclamações do escritor (ou, talvez, da
“secretária cubana” que escreve em seu lugar as cartas que chegam até ela) ou
ficar sem o pagamento do qual depende. Completa seu julgamento dizendo que
“literatura, para mim, deveria ser unicamente fonte de deleite, pois às suas
custas eu não teria como suprimir sozinha as necessidades do meu filho” (p.
12). O que a obriga a dupla ou tripla jornada de trabalho, realizando traduções
simultâneas em congressos e seminários.
Misoginia
A misoginia e o racismo aparecem
no discurso do narrador como elementos característicos de sua própria classe.
Eles não trazem estranhamento ou efeitos psicológicos ao emissor do discurso,
por exemplo quando lemos o primeiro fragmento da narrativa ficcional na qual
Duarte está trabalhando sobre “um neguinho” que fora castrado na infância (p.
7-8) ou quando afirma não ser machista, porque nunca teve prazer em agredir
mulheres, mas diz preferir se relacionar com mulheres “que já vem magoadas por
outro homem; mulheres traídas, por exemplo, mulheres com raiva, a cara quente”
(p. 17). Na medida em que as formas de relacionamento são também representativas
da sociedade que constitui o universo do romance, vale ainda nos atermos ao
ponto.
Duarte diz preferir se relacionar
com “esposas que enviúvam ainda jovens e fiéis. Aquelas que se agarram ao
caixão fechado, no velório do marido morto em acidente pavoroso”. Não ser um
agressor físico de mulheres é o suficiente para não se imaginar como agente de
uma violência, apesar disso está bastante ciente de que sua posição reflete uma
contradição inerente, não talvez à sua psicologia, mas à natureza complementar
de elementos opostos: “Existe mesmo um misterioso elo entre compaixão e
perversidade” (p. 18).
Ora, justamente a superação das
contradições dos opostos, identificada por Schwarz como a volubilidade do
narrador machadiano reaparece aqui. Como se ficasse ao critério do sujeito — e
aí estaria caracterizada sua condição de classe dominante num país
desestruturado — decidir quando agir com compaixão ou perversidade.
A conclusão de que existe um elo
entre compaixão e perversidade, entendidos de forma generalista, emerge de um
fato particular, próprio ao sujeito de uma condição de classe muito específica
e delimitada. Fora a proteção social que permitiu ao narrador machadiano que o
fizesse nas Memórias póstumas no início do século XX e é a condição de
membro da elite decadente que o permite ao narrador de Chico Buarque.
Cidade
Como a figura do sujeito, a cidade
também aparece em crise. Mesmo do Alto Leblon, uma das zonas mais ricas do Rio
de Janeiro, o narrador afirma:
“Há manhãs em que desço as
persianas para não ver a cidade… Sei que às vezes o mar acorda manchado de
preto ou de um marrom espumoso, umas sombras que se alastram do pé da montanha
até a praia. Sei dos meninos da favela que mergulham e se esbaldam no esgoto do
canal que liga o mar à lagoa. Sei que na lagoa os peixes morrem asfixiados e
seus miasmas penetram nos clubes exclusivos, nos palácios suspensos e nas
narinas do prefeito. Não preciso ver para saber que pessoas se jogam de
viadutos, que urubus estão à espreita, que no morro a polícia atira para matar”
(p. 48).
O que é curioso é que dificilmente
obtemos uma imagem total da cidade. Em um outro momento, que gostaria de
comentar a seguir, a cidade aparece, mas apenas enquanto coleção fragmentária
da própria subjetividade do narrador, que aparece como coleção de momentos —
não sem alguma ironia, marcados por um forte tom decadente — e espaços.
Mas aqui o narrador abre-se para
aquilo que não pode ver, mas sabe: da condição ambiental e social que
extrapola sua experiência direta da vida urbana. Aquilo que emerge enquanto
fruto de uma degradação sem culpados, mas da qual todos são atingidos (dos
“meninos de favela”, aos “peixes”, até o “prefeito” e, obviamente, membros da
elite como o narrador), é a tônica da imagem da cidade. Ao invés da paisagem
mercantilizada do paraíso na terra, uma estética da decadência assume
preponderância no olhar do protagonista.
Mais do que uma condição subjetiva
sendo externalizada, é como se, sem poder enxergar diretamente a cidade da
janela, o sujeito que abstrai de sua condição — isto é, um membro da elite que
habita um apartamento no alto de um prédio no Leblon — pudesse finalmente
lembrar daquilo que não vê. Nesse caso, a imagem captada pelo olhar, se
repetida diariamente, oculta a possibilidade de abstração, empaca aquilo que
Wright Mills chama de imaginação sociológica.
Num momento anterior, em que os
fragmentos da cidade se misturam aos fragmentos da memória do sujeito, a
relação é diferente. Durante um sonho, em que o narrador se encontra num avião
que inicia queda livre, o seu passado e o Rio de Janeiro do presente onírico
que experimenta se confundem:
“Dizem que, na hora da morte, a
vida repassa do início ao fim no cinema da nossa cabeça. Pois é ao que assisto,
não como num filme, mas nas rasantes que o avião dá sobre o Rio de Janeiro. Ali
estão a maternidade onde nasci, a casa dos meus pais, a igreja onde fui
batizado, o colégio onde xinguei o padre, o campo de terra onde fiz um gol de
calcanhar, a praia onde quase me afoguei, a rua onde apanhei na cara, os cinemas
onde namorei, o prédio do curso pré-vestibular que larguei no meio, os
endereços dos casamentos que larguei no meio” (p. 16)
Que o narrador só consiga captar
sua vida, “não como num filme”, o que constituiria uma sequência de imagens que
só pode ser apreendida em movimento e cuja durabilidade num tempo determinado é
crucial para a apreensão de seus sentidos, mas como coleção de fragmentos
atemporais tem também a ver com sua imobilidade. De certa forma, o narrador e a
cidade se confundem, assim como o passado se mistura ao presente.
A imagem da cidade está desprovida
de paisagem ou de monumento — reparemos que não se fala dos grandes pontos
turísticos, das lagoas, montanhas ou quaisquer elementos que poderiam, de fato,
ser captados por um olhar panorâmico —, mas de elementos menores que compõem a
autoimagem que o narrador constrói de si a partir de sua memória. Ela e ele são
o mesmo e ambos estão em queda-livre: daí que crise do sujeito e da cidade se
confundam no romance.
Para abordar ainda o problema da
substituição da elite carioca tradicional por novos elementos, fiquemos ainda
com este fragmento do livro a fim de ressaltar o aparecimento de novos
personagens que, inicialmente nas margens, aos poucos ganham espaço na
narrativa:
“Enquanto em queda-livre, os
tripulantes do avião entram em pânico e começam a rezar, enquanto a aeromoça
distribui bíblias. O narrador, contudo, encontra-se na seguinte situação:
Desafiando o rosário, procuro em
vão me lembrar de alguma reza, e meus companheiros de infortúnio me cravam
olhares odientos com razão. O avião está para se destroçar com uma centena de
crentes a bordo, por culpa exclusiva de um ateu que há muitos anos perdeu a fé
em milagres.” (p. 17)
Essa passagem já indica uma
distinção a ser observada: enquanto no chão da cidade vivem as memórias de um
membro da elite tradicional carioca que, perdido nelas, não sabe rezar para
garantir o milagre que salvaria o avião da queda, nesse mesmo avião
encontram-se somente “uma centena de crentes”. O ateu que xingava o padre na
Igreja durante a infância aparece, sob os olhos dessa tripulação, como o
responsável pela falta do milagre e, considerando o papel que a religiosidade
assumiu dentro da política contemporânea, não creio possível considerar como
coincidência essa imagem ou a que se segue: “logo acordo enrolado no lençol com
a televisão ligada: a partir de hoje, por decreto presidencial, posso ter
quatro armas de fogo em casa” (idem).
Crise moral
Falando em armas, salto aqui para
um momento em que Duarte, depois de visitar o apartamento da ex-esposa que
aceita acolhê-lo, uma vez que ele não tem mais como pagar o aluguel. Maria
Clara está em depressão e usa remédios de forma indiscriminada, “em farmácias
clandestinas, que mediante sobrepreço abastecem dependentes químicos a
domicílio”. Durante sua estadia, encontra um revólver recém-comprado pela
ex-esposa e decide se livrar dele. Como ele não lhe cabe no bolso, sai de
madrugada pelas ruas escuras do Leblon com o revólver na mão imaginando ter de
se esconder dos outros moradores, mas para sua surpresa, é recebido com vivas:
“— É isso aí, mestre! Tem que
acabar com a raça desses bandidos!
O vozeirão ecoa, e logo surgem
vultos nas janelas, gente que ergue o polegar e aclama:
— Estamos juntos, guerreiro!
Contamos contigo, campeão!” (p. 104)
Poucas páginas à frente, o mesmo
Duarte, ao sair da casa de outra ex-esposa, carrega consigo um copo de uísque
nas mãos enquanto volta para casa pelas mesmas ruas do Leblon: “Aos passantes
por quem cruzo de volta para casa, ergo brindes com o copo na mesma mão direita
que outro dia empunhou um revólver. O copo de uísque parece provocar indignação”
(p. 110). A analogia histórica aqui é com a boemia cultural que um dia ocupou
espaço como umas das elites no Rio de Janeiro — o copo de uísque seu símbolo
maior. Agora, essa boemia, como o próprio Duarte, já não tem mais espaço na
comunidade em que cresceu. Foi substituída no imaginário social dos habitantes
do bairro pelo cidadão de bem que carrega armas consigo em busca de “bandidos”.
Outra mostra da substituição do
tipo de elite que Duarte ainda integra se encontra na personagem agora pouco
citada, sua segunda ex-esposa. Seu novo amante, um ricaço de nome Napoleão, é
um sujeito de entrada entre os altos ciclos da elite brasileira e fez fortuna
investindo em soja na Amazônia. Que essa fortuna se traduza por desmatamento
ilegal e destruição do próprio país no qual se faz fortuna pouco interessa ao
personagem, já que é através desse caminho que se tem acesso às posições mais
altas disponíveis no Rio de Janeiro.
Uma crise estética pode também ser
apontada nessa elite. Em um dos fragmentos do romance, Duarte narra a chegada ao
apartamento que viviam de uma estátua de ouro de tamanho de um homem adulto,
coberta por uma faixa presidencial, “talvez com a intenção de realçar o efeito
kitsch. Achei somente de mau gosto, mas não disse nada, a gente já não se
falava” (p. 13). O próprio Duarte, apesar de ser capaz de perceber uma
degradação estética intraclasse, faz parte dela, enquanto um escritor que não
sabe escrever corretamente — fato apontado não apenas por sua ex-esposa e
revisora, Maria Clara, mas por seu editor.
Contudo, não é apenas a degradação
da elite o objeto de análise. É o todo social que parece se romper, o que está
mais ou menos explicitado desde a abertura da narrativa. Já nas primeiras
páginas, ao encontrar o passeador de cachorros de Maria Clara ainda na rua de
noite, esperando pelo retorno da “Dona”, ele o convida a subir até seu
apartamento.
Lá, “depois de me farejar entre as
pernas, o cão se esparrama no chão da cozinha e rejeita a ração de gato que lhe
ofereço. Ao passeador ofereço uma Coca-Cola e um resto de suflê frio que ele
aceita com gosto. Fica todo agradecido por poder ver televisão e dormir no sofá
da sala. Depois pergunta se tem que comer meu cu” (p. 9). A comicidade da cena
emerge da contradição entre expectativas: se toda interação social depende de
uma troca, a possibilidade de entrega do próprio corpo por comida e abrigo não
passa na imaginação do escritor, morador do Alto Leblon. Mas, para o passeador
de cães — afinal, alguém que trabalha vendendo sua força física — sim; ao
menos, é essa a primeira ideia que lhe cruza a cabeça ao receber algum tipo de
demonstração de solidariedade por parte de um sujeito de uma classe superior.
Mais adiante, esse mesmo passeador
de cães invade o prédio onde mora Maria Clara e, depois de ter possivelmente a
violentado fisicamente, mantém um refém na portaria ao ser cercado por
policiais na entrada do edifício. O que se segue, então, é bastante ilustrativo
da condição de anomia social que condiciona a estrutura do romance:
“Aparentemente a fim de se
entregar, o assaltante solto o porteiro e baixa a arma, mas de repente sacode a
cabeça e cai duro no chão. Foi um tiro na testa que tomou, disparado talvez de
alguma janela vizinha por um atirador de elite. Deitado de costas, se contorce
inteiro ao levar mais uns tantos tiros à queima-roupa. Depois que se aquieta,
os meganhas continuam baleando o cara, na barriga, no peito, no pescoço, na
cabeça, eles o matam muitas vezes, como se mata uma barata a chineladas. Aos
hurras e aplausos, os espectadores descem dos prédios e dos carros e correm
para o palco da façanha” (p. 70).
São muitos os sinais que vão compondo
o tecido social do romance, somando-se sonhos, notícias, falas, sempre à
margem, como se seus absurdos passassem despercebidos. Exemplo: pouco após o
ocorrido no edifício de Maria Clara, Duarte lê um jornal pela manhã e ressalta
a primeira notícia que lê: “soldados disparam oitenta tiros contra carro de
família e matam músico negro” (p. 89). Outra: num sonho, Duarte leva uma
transexual até sua casa e seus vizinhos a expulsam do prédio, “da janela vejo
a Yngrid de calcinha na rua, no centro da roda dos vizinhos armados de tacos de
beisebol” (p. 56). Mas esses sinais emergem sempre sob a forma de discurso
fragmentário, nunca como parte de uma reflexão sobre condições sociais ou
humanísticas mais largas. Elas atravessam o narrador sem pontos de retenção, de
modo que o fluxo dos eventos suprime a gravidade ou leveza desses momentos —
portanto, a partir do narrador, o lugar de onde possivelmente emergiria
qualquer espécie de julgamento moral, não se pode concluir nada sobre a
gravidade do que se passa.
Minha hipótese sobre o fim da
“sociedade” enquanto elemento constituidor da estrutura romanesca
contemporânea, chave para a fundamentação do que venho tentando identificar
como realismo fragmentário, baseia-se nessa ausência: não há voz moral
capaz de apreender e organizar as ações dentro da narrativa porque, mesmo seu
centro referencial — o narrador — se abstém ou se esfarela diante dos fatos
narrados.
Ligações a esta post:
Referências
BUARQUE, Chico. Essa Gente.
São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
BUARQUE, Chico. Estorvo.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
DARDOT, Pierre. & LAVAL,
Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.
São Paulo: Editora Boitempo, 2016
SCHWARZ, Roberto. Sequências brasileiras.
Companhia das Letras, 1999.
Comentários
A obra de Chico Buarque que mais admiro, além da musical, é Budapeste. Mas, Essa gente é também um livro valioso. Captura muito bem os destinos de nossa perversa e fracassada elite. E tendo sido esta a que sempre esteve no comando do país, eis o nosso desatino, essa selva de loucos.
Respondendo a provocação de Alex Dias. Talvez essa tarefa caiba aos desmiolados que até agora não apresentaram as provas do enriquecimento criminoso do presidente Lula. Mas já aponto que, incapazes como são, o livro deverá valer muito menos que o pretenso romance do Duarte.