Dentes, de Domenico Starnone
Por Sérgio Linard
Domenico Starnone. Foto: Leonardo Cendamo. |
Ao lado da misteriosa Elena
Ferrante, Domenico Starnone é um nome da literatura italiana contemporânea que
merece nossa atenção. Não é, porém, somente a nacionalidade que aproxima estes
escritores, pois ao passo que aquela parece ter como foco de sua obra a
exploração das figuras desempenhadas pelas mulheres na sociedade, esse — em um
simétrico contraponto — foca nas figuras masculinas, convidadas a encararem
seus próprios erros para que percebam o quão frágeis e fingidas são as bases
que sustentam a própria ideia de masculinidade. Não seria de grande espanto a
notícia de que estes escritores mantêm contato entre si. Mas tais biografismos
não são nosso foco; voltemos.
Starnone, nas obras por aqui
publicadas, parece fundar seus personagens em uma risível situação de
constrangimento constante que rega as páginas com o que popularmente chamamos
de vergonha alheia e/ou de riso melancólico, sentimentos gerados exatamente
porque obriga-nos a acompanhar óbvias descobertas por meio de uma chamada para rememorações
passíveis de aprofundamentos múltiplos. A obviedade é usada como mecanismo para
sair da superficialidade; algo muito importante, especialmente porque o óbvio
sempre precisou ser revisitado.
Com uma já vasta e premiada obra
em seu país de origem, o autor tem quatro novelas publicadas no Brasil, todas
pela Todavia. A mais recente, Dentes, apresenta uma história voltada
para os sentimentos — algo parecido com o que se vê em sua trilogia
sentimental: Laços, Assombrações e Segredos.
No entanto, é importante registrar
desde agora, Dentes é um livro com vida e qualidade próprias, realçando
mais ainda a produção literária de Starnone. Não se engane o leitor ao pensar
que, por se tratar de um mesmo gênero, com o mesmo tipo de foco, a obra cairá
no espaço comum da simples repetição, algo que, convenhamos, tem sido bastante
rotineiro nos textos da contemporaneidade. Um escritor que parece ter descoberto
a “fórmula secreta” de sua obra tende a repeti-la de modo incansável,
cansando-nos, porém, dessa repetição.
Não é o que ocorre com Domenico Starnone.
Ainda que o tema do matrimônio
fracassado também seja uma tônica de Dentes, nesta novela somos convidados
a conhecer melhor a visão daquele que decide ir embora, com uma focalização que
se concentra neste homem que deixa mulher e filhos por uma nova paixão,
trazendo somente a perspectiva dele para a superfície do texto. Essa escolha
gera, como consequência, uma maior proximidade com o protagonista,
especialmente porque o autor escolhe a simbologia dos dentes (e de todo este
campo semântico) para levá-la ao limite ao relacioná-la com a formação humana.
Antes de avançarmos, porém, na
análise da narrativa, é importante que se constate, aqui, a necessidade
intrínseca à produção literária de se conhecer bem o projeto estético
pretendido assim como o gênero em que ele será articulado. Esse destaque é
indispensável porque estamos falando de uma novela, gênero comumente visto como
menor ou, ainda, como menos prestigiado por parte de leitores incautos. Não
entrarei aqui em uma maniqueísta discussão a defender este gênero contra
aquele. Não se trata disso. O que intento é ressaltar como o autor acerta ao
perceber que aquela sua história seria melhor aproveitada se estivesse em um
texto mais curto, com menos personagens e com menos núcleos de acontecimentos,
uma vez que isso lhe possibilita um foco maior em detalhes comumente
despercebidos em obras de maior monta. Ao optar por uma simbologia entre os dentes
do protagonista e os sentimentos e/ou formações humanas, foca-se em detalhes
que ajudarão a alicerçar o todo; porém, caso esta mesma simbologia estivesse
dispersa em um romance, por exemplo, provavelmente o que se alcançaria seria
uma leitura cansativa, com uma repetição sem fim de metáforas iguais. Dentes,
com a história que se apresenta, precisaria ser uma novela e o autor sabe bem
disso.¹
“No início da tarde do dia 6 de
março de três anos atrás, perdi dois incisivos numa tacada só. Eram os que me
serviam para pronunciar meu nome. Tinha dito a Mara: “Chega, não quero te ver
nunca mais”. Ela respondeu não com palavras, mas com o cinzeiro. Agarrou-o pela
borda de repente e golpeou meus dentes, com bitucas e tudo. Depois foi chorar
no quarto.”²
Assim começa a narrativa. Esse
acontecimento é motriz para tudo o que se desenrola a seguir, deixando claro o
porquê do título da obra. Dentes porque são estas presas que levam o narrador a
se agarrar às reflexões sobre como a infância o conduziu até aquele momento. As
escolhas de um homem insatisfeito com o destino que sua vida tomou vendo, em
sua rotina, os mesmos erros serem cometidos. O ciclo de retirar os dentes do
infante para que novos possam nascer melhores e mais bonitos é a mesma circularidade
em que o personagem e a novela se entrelaçam. Também merece observação o fato
de a narrativa situar o tempo de seu principal acontecimento com base no tempo
do momento-agora do leitor. Na ausência de uma explícita referência para
em qual ano a história é contada, o ponto de partida para os “três anos atrás”
é o agora em que se lê. A narrativa começa a ser construída quando o livro é
aberto, ainda que o acontecimento impulsionador já tenha se concretizado em
outro momento, assim, aquilo sobre o que lemos já ocorreu, mas o que lemos
começa a ser registrado no papel aos nossos olhos. Acompanhamos não só a luta
do narrador consigo, mas a luta dele com as palavras falhadas pela ausência de
alguns de seus Dentes.
Após perder os incisivos na
discussão com a nova esposa, o professor de italiano começa a perceber que terá
dificuldades de pronunciar consoantes dentais (para alguns falantes do
português brasileiro, essas consoantes apresentam os alvéolos como ponto de
contato), justamente aquelas que compõem o seu nome. Além da dor física, tem-se
a dor da incomunicabilidade, posto que sua expressão está limitada, e a palavra
de sua voz enfraquecida. É essa segunda dor, a moral, que se sobressai e que se
mostra como o grande fantasma da vida deste protagonista.
No dia seguinte ao ocorrido, ele
deveria comparecer a uma entrevista de emprego e, por isso, começa uma busca
por dentistas que possam fazer com que o problema seja minimizado sem que ele precise
gastar um dinheiro de que não dispõe. Entre um consultório e outro, começamos a
conhecer melhor os sentimentos e as relações deste homem. Os sentimentos de
alguém que viveu um casamento terminado em prol de um novo amor são
entrelaçados pelas lembranças da criança envergonhada pela dentição, posto que
era esse um motivo de perseguição por parte dos colegas de escola.
Apresenta-se, então, a ideia de que este protagonista possuía dentes novos
abaixo dos dentes já definitivos; uma certeza que carregava consigo desde a adolescência.
Essa potência de possuir dentes
abaixo de outros dentes é utilizada pelo autor para estruturar a novela de modo
circular: são acontecimentos que se repetem e/ou se justificam por outros
acontecimentos já ocorridos, concluindo o círculo complexo da narrativa. Um
dente que se apresenta definitivo mostra possuir substitutos abaixo de si que
sofrem com o mesmo destino daqueles primeiros. A novela demarca o eterno
retorno do homem para o espaço errante.
“Sua boca tem alguma coisa estranha.
O senhor é uma pessoa culta, posso falar francamente: tratar dos dentes, tudo
bem; extrair, substituir, perfeitamente; mas sua boca, me refiro ao conjunto:
eu ficaria preocupado.”
O primeiro diagnóstico do primeiro
dentista consultado levanta a suspeita daquilo que parece ser, inicialmente, um
suspense que perseguirá o protagonista: qual será o erro encontrado naquela
boca? Contudo, essa preocupação não é ponte para um suspense, é, sim, para uma
memória de um jovem que, insatisfeito com seus dentes, intenta quebrá-los
lançando-se contra a parede. Os protuberantes incisivos, agora substituídos
pelo inchaço do golpe sofrido, foram sempre motivo de vergonha para aquele
jovem inseguro e temeroso. O homem, professor e pai observa que sua filha,
então, começa a apresentar dentes que terão a mesma formação dos dele: a
repetição garantida pela “praga genética”, a criança que tem os mesmos
problemas do adulto, reforçando a ideia desse constante reencontro com o erro,
por mais que se tente dele fugir.
Na impossibilidade de que os erros
cometidos por aquele marido que abandonou a esposa e por aquele pai que — com muita facilidade, registre-se — abriu mão de viver com os filhos, esse homem
recorre à estratégia já muito comum de expiar seus erros por meio da dor. Nessa
busca, somos convidados a ler, com muitos detalhes, as viscerais torturas
praticadas contra seus dentes nos consultórios pelos quais precisou passar
desde a infância. Não obstante, há uma certa constância na repetição do ato de
imputar a si próprio o contato com a aquela ferida em aberto, justamente para nos
lembrar de todo aquele “calvário” e, assim, sermos coniventes com as
irresponsáveis e inconsequentes escolhas do protagonista.
Esse homem cheio de equívocos em
toda sua formação, tanto por escolhas erradas quanto por erros de seus pais
consigo, reproduz e amplia esses mesmos problemas. Ele é um marido que troca a
esposa por um novo amor; um pai que abre mão de acompanhar o crescimento dos
filhos, que se faz ausente e que, quando se propõe a encontrar com eles,
estabelece conversas apenas da boca para fora; um professor
mediocremente formado, infeliz com seu trabalho; um amante inseguro,
desconfiado e imaturo, capaz de imaginar que a nova esposa o trai com qualquer
homem que apareça na vida dela. Um homem que constata que aquilo que sustenta
suas certezas é frágil e pueril, mas o faz de modo, digamos, patético,
embriagado de autocomplacência exacerbada e, portanto, egoísta. Acrescente-se a
isso, uma pessoa infeliz com a imagem que vê diante do espelho porque seus
dentes protuberantes o incomodam desde a infância. Todos estes problemas
estavam paulatinamente escondidos e guardados por traz daquela imagem externa
de uma pessoa passiva.
A caixa de pandora é aberta,
então, quando os dentes são forçadamente extraídos por aquele cinzeiro —
importante ser o objeto destinado aos restos do cigarro o responsável por abrir
passagem para a narrativa, porque anuncia que o espetáculo já nasce de modo
ignóbil —, pois perder aqueles incisivos foi abrir a porta para que se
percebesse todos os males causados e, por isso, a necessidade de se expiar os erros
por meio daquela dor física e por meio da angústia das incertezas lançadas
pelos dentistas: o que há de errado com minha boca? Há dentes abaixo dos meus
dentes? As dores proporcionadas são condutoras do encontro daquele homem com
seus erros e, dessa feita, da narrativa com o retorno ao começo.
Novos dentes são achados abaixo
dos antigos, encontrados, obviamente, por meio de um doloroso processo. Mas, e
aqui confirma-se a tônica constante da novela de mostrar a tendência do ser
humano em seu lugar de errância, uma nova-velha briga acontece, um novo-velho
cinzeiro é lançado e novos-velhos dentes são perdidos. A dor que não acaba
porque integra aquilo que o homem entendeu como parte de si e, portanto, como
sua vida. É quando tudo se perde que ele consegue, finalmente, refletir sem
buscar compensar suas culpas como fez durante toda a narrativa e vê-se sorrindo
de forma verdadeira e franca, justamente porque passou a encarar com
sinceridade todos os problemas por ele vividos e gerados. O problema era que,
agora, já era tarde: “Agora sorrio melhor, mas não sei para quem.”
Dentes, de modo geral,
tem recebido mornas críticas por parecer, na leitura de alguns, apenas mais uma
história de um homem de meia idade em crise conjugal. Além de ser este um erro
comum dos reducionismos que acossam a crítica literária feita a toque de caixa,
é, também, uma rotulação minimamente injusta por parte de leitores que se
lançam no abismo de esperar que um livro seja inovador para que possa
reclamar qualidade. Nessa busca pela inovação, a obra pode acabar sendo datada
somente à temática daquele período com o destino de morrer com o tempo do tema.
Falar, portanto, de algo que já é muito falado não é um problema per se.
O que nos interessa deve ser o modo como este algo é falado e, quanto a isso, Dentes
tem mérito de sobra, especialmente por pegar um mote comum e construí-lo de uma
maneira na qual novas percepções podem ser traçadas. Os indícios que o
protagonista deste romance demonstra de ser um herói fracassado são
revisitados para nos conduzir à compreensão do porquê de ser herói e do porquê
de ser fracassado; o arquétipo é o já conhecido, mas o ponto de e para reflexão
é pertencente ao grande tempo e não a uma simples e reduzida crise de meia
idade. Erra quem pensa que Dentes seja somente isso. O herói que fracassa
constantemente busca uma forma de viver com este erro e com os resultados dele
na vida. Não é esse o convite que se faz diariamente para o enfrentamento dos
problemas do cotidiano? Bom, pelo menos é este o convite que Domenico Starnone
faz com esta novela: a perceber como nossas presas escondem outras presas
abaixo de si e nos prendem na circularidade do equívoco constante. O enredo
persegue isso, a narrativa se articula para enfatizar isso.
Não há motivo algum para que a
leitura não seja expressamente recomendada.
**
Dentes
Domenico Starnone
Domenico Starnone
Todavia, 176p.
Ligações a esta post:
>>> Leia aqui sobre Laços
>>> E aqui, Segredos
Notas
1 Destaco que, em alguns releases
da editora responsável pela obra de Domenico Starnone no Brasil, o leitor
achará a classificação de seus escritos ora como romance breve ora como novela,
muitas vezes tomando esses termos como sinônimos. De todo modo, meu argumento
reside na consciência que autor demonstra acerca de sua obra, apresentando
muita propriedade quanto à necessidade de que essas histórias sejam
apresentadas em narrativas curtas e/ou breves, aqui, neste texto, chamadas de
novela.
2 Todas as citações foram
retiradas de: STARNONE, Domenico. Dentes. Tradução de Maurício Santana
Dias. São Paulo: Todavia, 2022. – E-book
Comentários
Infelizmente, o preço do livro está um pouco salgado para comprar agora, mas vou olhar com atenção os outros romances do autor, por hora, com preço mais acessível. Começo pelos outros e uma hora chego aos Dentes.
Até o próximo texto!