Cervantes ou da sabedoria¹
Por Ramón Xirau²
Dom Quixote. Ilustração de Júlio Pomar. |
Quando, poucos dias antes de sua
morte, Cervantes dedica Los trabajos de Persiles y Sigismunda a don
Pedro Fernández de Castro, escreve: “Ontem me deram a Extrema-unção, e hoje
escrevo esta. O tempo é curto, a ânsia cresce, as esperanças minguam, e com
tudo isso, levo a vida a partir do desejo que tenho de viver, e [não] gostaria
de pôr-lhe fim até beijar os pés de vossa Excelência [...]. Mas se está
decretado que tenho de perdê-la, cumpra-se a vontade dos céus, e ao menos saiba
vossa Excelência deste meu desejo.” No prólogo ao Persiles, Cervantes
conta, com humor melancólico e anuência resignada, como ia cavalgando
lentamente em seu rocim “passolargo”. Encontra-se com um estudante que, ao
reconhecê-lo, enche-o de elogios. Responde Cervantes: “Este é um erro que
cometeram muitos aficionados ignorantes. Eu, senhor, sou Cervantes, mas não o
júbilo das musas, nem nenhuma das demais patetices que disseste. Vossa mercê
recobre seu burro, e monte nele, e caminhemos em boa conversa o pouco que nos
falta do caminho”. Tendo chegado à porta de Toledo, disse: “Adeus, dádivas;
adeus, graciosidades; adeus, amigos jubilosos; que me vou morrendo, e desejando
em breve vê-los alegres na outra vida!” Sancho dirá no final do Quixote:
“Verdadeiramente morre Alonso Quijano, o Bom.”³
A vida é, de fato, morte: a morte
é, também, vida. Viver pode ser, ademais, sobrevier — morte e sobrevivência. Viver
traz consigo sabedoria no curso da vida e quiçá, sobretudo, diante da morte.
Passo à vida e à vida maior.
Uma olhada superficial poderia
denunciar dispersão quando vemos a variedade de obras que Cervantes escreveu.
Não parece se tratar do mesmo homem que escreveu um romance pastoril inacabado
como a Galatea e esta novela nada exemplar, rápida e violenta que se
chama “Rinconete e Cortadillo”. Tampouco parecem escritas pelo mesmo homem este
extraordinário e pouco lido romance Los trabajos de Persiles y Sigismunda,
as loucuras do “Licenciado Vidraça”, os Entremeses, as Comedias ou a Viaje
del Parnaso.
Estas observações preliminares
poderiam ser ociosas não fosse o fato de que muitos comentaristas cervantinos
interpretaram Cervantes de maneira parcial. Para uns, Cervantes é sobretudo um
idealista — no sentido de possuir ideias; para outros, é um naturalista. A
verdade é que Cervantes é ambas as coisas. Nem o Persiles é um romance
puramente “bizantino” nem os entremeses são puramente realistas. Certamente
algumas obras de Cervantes estão mais inclinadas para o que chamarei de
“idílico”, enquanto outras se aproximam de um realismo que pode chegar a ser
descarnado. Uma obra — naturalmente, o Quixote — reúne todos os aspectos
de Cervantes. Dizer que Cervantes é, em quase todas as suas obras, um gênio
pareceria despropósito; não é assim porque o gênio de Cervantes é coisa rara e
escassa: gênio com sentido comum.
Em dom Quixote, em Sancho, faz-se
presente Cervantes com sua sabedoria. Mas o que é sabedoria? Mais
especificamente: qual a sabedoria que Cervantes talvez proponha
involuntariamente? A resposta a esta pergunta dar-se-á por si mesma se
analisamos: 1) a loucura de dom Quixote; 2) a ideia de aventura (ventura e
desventura) do cavaleiro andante; 3) a cavalaria do cavaleiro relacionado à
ausência-presença da Idade de Ouro; 4) as virtudes humanas e novamente a
sabedoria presente nas frases iniciais do Persiles, agora na boca de
Alonso Quijano, o Bom.
A sabedoria cervantina é múltipla:
é a dos conselhos e exortações a Sancho, é — em parte ironicamente — a que se
encontra na descrição da “ciência” cavalheiresca; é, acima de tudo, a da busca
desta Idade de Ouro que talvez seja o fundo de todas as aventuras de dom
Quixote. Ela também se encontra na relação Sancho-dom Quixote. Naturalmente, um
é o amo e o outro o escudeiro; ambos são anti-heróis: dom Quixote em sua
loucura; Sancho em sua condição de homem prático, com os pés na terra e os
provérbios na boca. Anti-heróis? Sim no sentido comum e corrente da palavra;
não, se por herói entendemos o homem capaz de querer transformar a realidade e
levá-la de volta às suas áureas origens.
Insensato dom Quixote? Cheio de
ideais sem dúvida, mas ideais que têm a ver com o sentido comum porque é
verdade que sem amizade não há vida e é verdade que sem amor há morte. Dentro
do texto do Quixote, Cervantes disse, ironicamente, “amigo meu esse
Cervantes”. Ironia, no entanto, que tem um sentido que talvez o próprio
Cervantes não lhe tenha querido dar: a amizade para com os outros começa com a
amizade para consigo mesmo.
A sabedoria cervantina e
quixotesca é de ordem vital. Por isso se alia a um fundo amor, a uma profunda
amizade rumo à liberdade.
Notas
1 De acordo com o site Letras
Libres: “Este fragmento de um ensaio sobre a loucura de Dom Quixote foi
publicado no número 35 de Vuelta, em outubro de 1979. Esta seção oferece
um resgate mensal do material da revista dirigida por Octavio Paz.”
2 Ramón Xirau (Barcelona, 1924 –
Cidade do México, 2017), foi um filósofo e poeta de origem espanhola. Algumas
de suas obras mais conhecidas são Palabra y silencio (1964), Mito y
poesia (1964) Poesía y conocimiento (1979) e Lugares del tiempo
(2002).
3 Leve manipulação do original,
onde, no último capítulo da segunda parte, lemos: “Verdadeiramente morre e
verdadeiramente está são Alonso Quijano, o Bom; bem podemos entrar para que
faça seu testamento.” (Tradução de Sérgio Molina, Nova Aguilar, 2015, p. 1029).
Tradução livre de Guilherme Mazzafera
para “Cervantes o de la sabiduría”, publicado aqui, em Letras Libres em 1 fev. 2022.
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