As aventuras arqueológicas de Agatha Christie... também acabaram com um crime
Por David Barreira
Em Ur, cidade da antiga Mesopotâmia, no atual Iraque, em 1931. Max Mallowan, Agatha Christie e Leonard Wooley. |
Além de estar protagonizado pelo
famoso detetive particular Hercule Poirot e ambientados no Oriente Médio, três
dos romances mais notáveis de Agatha Christie (1890-1976) expõem o fascínio
da dama do crime pela arqueologia. Em Assassinato na Mesopotâmia (1936),
a trama se passa durante as escavações no sítio de Ur, no Iraque; grande parte
do suspense em Encontro com a morte (1938) ocorre nas ruínas de Petra; e
entremeada à narrativa, para Morte no Nilo (1937), a escritora britânica
criou um vilão disfarçado de arqueólogo, o Signor Richetti.
Todas estas ficções de Christie,
tríade a que se deve acrescentar Aventura em Bagdá (1951), beberam de um
substrato real, da sua própria experiência no terreno referido. Durante sua
visita a Bagdá em 1930, a já renomada autora conheceu Leonard e Katherine
Woolley, que realizavam diversas campanhas de escavação na cidade suméria de
Ur. O casal a convidou para permanecer com eles e conhecer o local, e o que de
fato ela conheceu foi o seu novo marido, o arqueólogo Max Mallowan, que a
acompanharia em sua viagem de volta à Inglaterra. Ficaram tão íntimos e se
divertiram tanto que no final do ano já haviam dito sim.
A paixão compartilhada por
investigar as evidências físicas de civilizações remotas os levaria a realizar
uma série de pesquisas em várias partes da Síria e do Iraque. Desde o primeiro
momento, Christie esqueceu sua fama e se envolveu com os trabalhos de Mallowan —
certa vez diria que “um arqueólogo é o melhor marido possível para uma mulher:
quanto mais velha você fica, mais charmosa ele a achará”. Como uma espécie de
ajudante, dormia nas barracas improvisadas, limpava e restaurava as peças encontradas
e se dedicava a registrá-las por meio de fotografias e inventários. Também
contribuiu financeiramente para fundar a Escola Britânica de Arqueologia, hoje
conhecida como Instituto Britânico para o Estudo do Iraque.
Além da evidente influência em
seus romances, a autora de Assassinato no Expresso do Oriente (1934)
publicou nos últimos momentos da Segunda Guerra Mundial um livro sobre suas
viagens arqueológicas no Oriente Médio. Intitulado Venha, diga-me como você
vive e agora republicada em espanhol pelo selo Tusquets, Christie definiu
esta obra, provavelmente a mais ignorada de sua produção, como “um entretenimento...,
um livrinho cheio de acontecimentos cotidianos”, uma “crônica inconsequente” — também
diz, no entanto, que “escrever estas simples notas não foi uma tarefa, mas um parto
de amor” — que nasceu em resposta ao interesse das pessoas em sua participação
nas escavações na Síria e que “não contribuirá com considerações interessantes
sobre arqueologia”.
Pode ser que tivesse razão: o
leitor não encontrará nestas páginas um relato detalhado do andamento da obra
em tells ou sítios arqueológicos, como o Chagar Bazar, e alguns de seus
objetivos, por exemplo, colher informações sobre a dinastia militar de Mitanni
, uma casta dominante de guerreiros que se ligaram ao Egito Antigo por meio de
casamentos reais. Mas a cadência literária de Christie transforma esta obra
numa história de aventura sobre o seu cotidiano entre mulheres curdas, xeiques
que se assemelham a Henrique VIII e taxistas arménios, numa novelesca crônica etnográfica
da região, cruzada com os seus companheiros de expedição a bordo do Queen Mary,
um caminhão de vegetais e pilhas de ovos carregados em uma balsa para
atravessar o rio Eufrates.
Mais do que uma crônica
arqueológica, Venha, diga-me como você vive é um diário de viagem armado
muito bem humorado — “uma dos infortúnios de estar casada com um arqueólogo é
seu conhecimento especializado para interpretar os desenhos mais inócuos”,
escreve Christie sobre um vestido cheio de motivos que remetem à fertilidade de
acordo com o olhar de Max — e com belos cartões postais que mostram o feitiço da
escritora pelo patrimônio histórico. Sobre a cidade deserta de Palmira, diz: “Seu
encanto está em sua beleza esguia e cremosa que se eleva fantasticamente em
meio as areias quentes. É luxuriante, impressionante e incrível, como a
alucinação teatral de um sonho. Pátios, templos e colunas em ruínas”.
A rainha do romance policial esboçou
uma espécie de diário de campanha, mas sem as especificidades científicas, como
se tentasse minimizar seu desempenho prático. Ela descreve a viagem de Calais a
Istambul no Expresso do Oriente, um piquenique com o marido na cratera de um
vulcão, crises de saúde causadas pelos “intestinos do soldado egípcio” e
pulgas, ou, talvez o mais interessante, o choque de culturas do período entre
guerras entre os burgueses britânicos que matavam os ratos com uma xícara de
chá nas mãos e seus ajudantes árabes.
Não se leem conclusões sobre os
resultados gerais alcançados porque não é o que interessa, mas sim a
experiência, a paisagem, as relações humanas. Embora uma das confissões que
mais chama a atenção seja o desprezo pelos remanescentes dos “modernos” romanos,
“meninos de ontem” em comparação com os povos antigos que perseguiram. Em uma
passagem que não seria vista favoravelmente hoje, Christie e Mallowan são
retratados jogando fora cacos de cerâmica do período romano.
As cinco campanhas de escavação
lideradas pelo casal fecharam com um capítulo de “baixa traição e ganância”, um
acidente mortal envolvendo quatro homens de um pelotão que foram enterrados em
Tell Brak. Christie recria o acontecimento com as doses de mistério que
transbordam em seus romances. O Iraque e a Síria foram um marcador geográfico e
temático da melhor literatura da dama do crime.
* Este texto é a tradução livre
para “Las aventuras arqueológicas de Agatha Christie... también acabaron con un
crimen”, publicado aqui, em El Cultural.
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