Antonio Di Benedetto: a distração e o esquecimento

 Por Jimena Néspolo


Antonio Di Benedetto. Arquivo Cidade de Mendoza.


 
Surpreende, a partir da obra narrativa de Antonio Di Benedetto (Mendoza, 1922-Buenos Aires, 1986), sua vocação para desarticular as formas sem rituais que organizam a afetação. O seu é um caminho discreto, que aposta na coerência filosófica e num distanciamento reflexivo capaz de trair qualquer impostura. Há algo da ordem do estranhamento persistente do mundo, que espreita na seleção lexical e no fraseado, mesmo nos textos jornalísticos que apostam na comunicação plena.
 
Embora Zama (1956) seja uma de suas ficções mais conhecidas, pode ser El pentagóno. Novela en forma de cuentos [O pentágono. Romance em forma de contos] que melhor condensa essa busca. O “livro mais misterioso da literatura argentina” — segundo Sergio Chejfec1 — foi publicado pelas Ediciones Doble P, em 1955, embora tenha sido escrito na década anterior. É um romance caótico e labiríntico onde todas as alternativas de enredo são possíveis, pois os vários futuros proliferam e coexistem em “uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo”, neste caso: o universo do amor.
 
Passado o choque, qualquer leitor — se sabe — avança na busca de afinidades. De imediato emerge então O jogo da amarelinha (1963), de Julio Cortázar: num jogo de projeções, pode-se até especular que O pentágono seja o “romance das Figuras”2 que Cortázar procura ao criar O jogo da amarelinha, mas que não encontrará até 1968 em 62. Modelo para armar.
 
Apenas alguns anos atrás, suspeitar de tal caso parecia um sacrilégio: os autores do boom ainda apareciam penteados nas fotos, com aquele gesto severo e distante dos galãs da TV que de vez em quando descem do Parnaso masculino para jogar presentes e flores para as fãs —entre os quais, é claro, encontrar-se-á Di Benedetto, com atitude de um caçador de autógrafos ou, aliás, de um caçador de notas. Várias fotografias o mostram cobrindo eventos e festivais internacionais de cinema, como um jornalista comum, sem pretensão de lugar ao sol, mas também sem interesse de satélite.
 
Seguindo essa intuição, é possível indagar sobre o vínculo inicial entre os dois escritores, pois —como será lembrado —, antes de ser “Julio Cortázar”, quando mal aspirava a ser “Julio Denis” (pseudônimo com que Cortázar assina sua primeiros escritos), o (co)autor de Os autonautas da cosmopista ensinou literatura francesa na Universidade Nacional de Cuyo. Estamos em 1945: enquanto Cortázar, aos 31 anos, ministra cursos sobre Rimbaud e flerta com a direita conservadora, que interveio na instituição para trazer um número interessante de figuras do nacionalismo católico, um saudável Di Benedetto de saudáveis vinte e três primaveras começa a estudar belas artes ao iniciar no jornalismo profissional. Tão próximos um do outro, a dúvida se faz presente se eles se conheceram ou não, na Mendoza dos anos quarenta. Enquanto Jaime Correas, em seu livro Cortázar, profesor universitário (Aguilar, 2004), nega categoricamente, Eduardo Montes-Bradley, em Cortázar sin barba (Sudamericana, 2004), afirma:
 
“Tal como em Chivilcoy, Cortázar constrói em Mendoza uma rede de contatos que inclui Ricardo Tudela, Antonio Di Benedetto e Iverna Codina (quem anos mais tarde ocupou um lugar de importância na direção da Casa de las Américas em Havana junto com Haydée Santa Maria). O fio de saliva também alcança Carlos Alonso, Luis Quesada e o arquiteto Manolo Civit. A passagem por Mendoza rendeu a Cortázar algumas relações estratégicas que virão como uma teia de aranha quando chegar a Buenos Aires e Paris.”
 
Embora seja verdade que o dadaísmo já se propunha abertamente a dinamizar a forma na arte — um empreendimento que teria sido continuado pelo surrealismo —, no final da década de 1940 certas preocupações estéticas comuns começaram a se materializar ante o dilema fundo/forma que, pouco mais de uma década depois, explicarão o surpreendente boom causado pela edição argentina de O jogo da amarelinha, atingindo níveis altíssimos de vendas em toda a esfera hispânica com velocidade inusitada e, ao mesmo tempo, satisfazendo de forma quase exemplar o horizonte de expectativas do público daqueles anos.3
 
Assim como O jogo da amarelinha, O pentágono apresenta, desde seu título, a possibilidade de ler as peças de forma desordenada; em um livro de contos não há sequência possível que leve a uma totalização.
 
Conforme anunciado na “Introdução”, os contos que compõem o romance de Di Benedetto encontram seu ponto de união no personagem que obsessivamente os cria e recria (segundo as “Épocas”) como variações de um tema clássico, o triângulo amoroso. Dessa forma, a esquematização pentagonal resulta da articulação das histórias em torno do desenho de dois triângulos que, compartilhando o mesmo vértice (o eu narrador), traçam por sua vez a relação entre os dois rivais (Rolando e Orlando). Em meio a essa enganosa simetria estão as mulheres (Laura, a amada impossível, e Barbarita, a esposa infiel) e, no topo, impondo sua presença majestosa: o Eu. Em sua aparente latência, outro triângulo imaginário — o edipiano — define tanto a infração culposa quanto a compulsão à repetição nessa geometria das paixões.
 
Com sua fuga para o absurdo e o fantástico, O pentágono desestabiliza os fundamentos psicológicos e sociológicos do romance tradicional e realiza o que no texto de Cortázar continuará sendo um mero projeto. Somente em 62. Modelo para armar, através do desdobramento e criação de “Mi paredro” — esse tipo de “compadre” ou “babá” do excepcional —, a narração cortazariana pode finalmente abandonar todos os resquícios de onisciência e oferecer uma alternativa estética própria que assume e dá continuidade às conquistas dos dois primeiros romances de Antonio Di Benedetto.
 
Julio Premat tem razão: a infração matrimonial, tematizada repetidamente nas histórias de O pentágono, motiva e origina a infração estética, a insatisfação com a forma canônica.
 
Graças à leitura do primeiro volume de suas Cartas,4 sabemos que quando Cortázar se instala novamente em Buenos Aires, em 1946, ele redefine sua relação com Mendoza e com o povo do lugar: desfaz-se de todo tipo de formalismos da escrita, liberta nas cartas a Sergio Sergi o futuro “cronopio brincalhão”, conhece alunos e amigos que lhe trazem novidades de Cuyo, planeja férias na serra e, claro, recebe os livros que lá são publicados. Em uma dessas cartas a Sergi (datada 4 de dezembro de 1946, em Buenos Aires,) ele diz: “Ontem recebi um livro de poemas de Calí. Ainda não tive tempo de abri-lo, mas lerei com prazer no fim de semana, naquelas horas da sesta em que a poesia entra mais intensamente.”
 
Américo Calí, professor primário e primeiro editor de Di Benedetto, foi uma referência incontornável em sua formação e um vínculo que perdurou até a maturidade. Também sabemos que Calí, editor da revista Égloga, foi quem publicou o conto “Estação: contramão” de Julio Cortázar em janeiro de 1945. Consequentemente, se mais tarde ele envia a Buenos Aires o seu livro Laurel del estío [Louro de verão], não é demais supor que os artigos e resenhas críticas de Cortázar também eram conhecidos por Calí, por Sergio Sergi, por Di Benedetto e por todos aqueles mendocinos que o consideravam seu jovem aliado na cidade grande, para quem também poderiam enviar suas publicações.
 
Acima das objeções, podemos pelo menos concordar em uma coisa: Julio Cortázar não era um escritor que ostentava suas deficiências de leitura. Nada disso. Seu interesse era o jazz, surfar confortavelmente entre pelo menos três idiomas e uma dúzia de cidades europeias. Resumindo: era um homem do mundo muito bem-informado que nunca cantou para o primitivismo e que conhecia muito bem os prazeres do bom epicurismo. Por isso, é surpreendente ler o pequeno prólogo que, junto com outras duas cartas — uma de Borges e outra de Manuel Mujica Láinez — precede a antologia de contos Caballo en el salitral [Cavalo no salitre], publicada na Espanha por Bruguera em 1981. Cortázar assim diz:
 
“De Antonio Di Benedetto eu só conhecia um romance, Zama, que precede “Aballay” em muitos anos; a memória dessa leitura coincide com o que acabo de sentir diante desta história de um estilista dos pampas que troca as lendárias colunas da Tebaida por cavalos crioulos que se recusam a desmontar até saber que está lavado de uma culpa, de uma morte.”
 
Esse sentimento é o de anacronismo, mas a palavra não deve ser entendida com a carga de negatividade que quase sempre tem em matéria literária [...] Penso naqueles raros e preciosos autores para quem a imaginação, por assim dizer, volta no tempo; lembro-me, claro, de Vathek de Beckford, e sobretudo dos contos de Karen Blixen, que também era Isak Dinesen como que para insinuar com o duplo nome dessa metempsicose ao contrário, essa reinstalação tão natural e perfeita num tempo deixado para trás pela história e pela literatura — seu espelho, seu vitral.
 
Um escritor trabalha com a palavra, com palavras e nuances. Não é o mesmo dizer, por exemplo, “o autor de Zama” — se considerarmos esse romance de capital importância dentro da obra — e dizer que “Zama só foi lido” e depois referir-se ao seu autor como um “raro e precioso” tipo a altura de Isak Dinesen ou Beckford.5
 
Existe algum ruído neste prólogo que quer ser floreado mas que talvez comece com uma descortesia: não é apropriado que um “escritor famoso” — como era Cortázar nos anos oitenta — apresente um “sem nome” — como era Di Benedetto nos anos oitenta e no exílio — dizendo que não conhece seu trabalho. Por mais franqueza que demonstre ao amigo Julio, a sutileza intelectual que ele exerce em seus ensaios nos leva a acreditar que ele sabia mais do que ninguém que — através de Marx, Nietzsche e Freud — vivemos na “era da suspeita”. Será verdade que só leu Zama? Por que você não conhece o resto da sua obra? Quando esse livro chegou às suas mãos? Essas são perguntas que até o mais elementar leitor de romances policiais pode se fazer.
 
Mas há mais: em carta ao amigo Eduardo A. Castagnino (datada de Paris, 9 de maio de 1957) Cortázar anunciou uma próxima viagem a Buenos Aires no final de agosto, assegurando-lhe também que ficará por dois meses: “Lá conversaremos e você me dará uma lista do que vale a pena comprar e ler; infelizmente estou desconectado da literatura argentina […] Você me aconselhará sobre livros.” Como se vê no primeiro volume das Cartas (que abre justamente com uma missiva a Castagnino, datada em Bolívar em 1937), essa amizade se mantém há mais de duas décadas e o próprio Cortázar assim a define: “Você é um pouco minha testemunha, meu duplo que ficou na Argentina, e que vigia e julga por mim, acho que de outra forma que se chama confiança e amizade”.
 
Quais livros, quais autores estavam nessa lista? É possível que Castagnino não tenha registrado a publicação de O Pentágono e Zama? A verdade é que o epistolário o mostra como um interlocutor demasiado culto e inteligente para lhe ter escapado, por exemplo, a elogiosa crítica sobre Zama que aparece publicada no jornal La Razón, em dezembro de 1956, assinada por ninguém menos que Antonio Pages Larraya. Mas suponhamos que Di Benedetto não estivesse nessa lista e suponhamos também que Cortázar chegue a Buenos Aires depois de seis anos no exterior, disposto a beber avidamente as novidades culturais do meio. É pertinente acreditar que ele visita livrarias, que vai ao cinema, ao teatro, que compra revistas... Existe uma cujo nome pode ter sido atraente para este escritor de romance, se chama Ficción, dentro das novidades existe uma resenha de Francisco Solero:
 
“Assim como a Inglaterra é Shakespeare, e a Espanha, Cervantes, e a Alemanha, Goethe, assim, da mesma forma, um dia, a Argentina será dois ou três nomes que agora mal estamos balbuciamos ou que talvez ainda não tenham surgido. Mas na enumeração desse fluxo imaginativo, criativo e poderoso, haverá um nó difícil de esquecer: Zama.”6
 
Para alguém tão confiante como Cortázar em seu destino de glória, alguém que desde a primeira carta rabiscada aos vinte anos encoraja seu interlocutor a guardá-la para a posteridade, encontrar essa resenha deve ter lhe causado — pelo menos — uma pálida cócega. Lembremos que, então, Cortázar tentava inventar um romance e que, só em 1960, conseguiu que a Sudamericana publicasse Os prêmios. É difícil acreditar, em suma, que durante essa estada em Buenos Aires, Cortázar não tenha encontrado Zama e O pentágono, publicados por Di Benedetto em 1956 e 1955, respectivamente.
 
Não se trata aqui de ler O pentágono como o esboço germinal do que O jogo da amarelinha não foi. Trata-se de levantar relações impertinentes, fazer perguntas incômodas aos textos. Pretende-se, antes, romper a barreira crítica que envolve abordar os autores como ilhas autoformadas em um hedonismo solipsista e observar as condições de possibilidade e leitura que acompanham os livros e que determinam — conforme os tempos — sua felicidade ou seu tormento.
 
Dos cinco romances publicados por Di Benedetto, O pentágono é seu livro mais estranho e menos lido. Ainda hoje, quando a sua “trilogia da espera” está reunida no mesmo volume, este texto incômodo e experimental lembra-nos a vontade vanguardista que rege essa escrita. Em 1974, Di Benedetto o reeditou sob o título Annabella (Ediciones Orión), com alguns pequenos ajustes e acrescentando, como prólogo, dados sobre sua gestação:
 
“Decididamente, este não é um livro novo. Pode ser, sim, para muitos leitores, porque em sua vida anterior, quando se chamava O pentágono, era pouco conhecido [...] Transcorria a década de quarenta e, saturado do romance tradicional — sem a negar, antes, deslumbrado e apaixonado por seus expoentes clássicos —, cometi a audácia, em modo de tenativa, de contar de outra maneira. Por isso provoquei este romance em forma de contos. Parece que colegas desconhecidos, de diferentes línguas, habitantes de diversos continentes, cada um no escuro sobre o propósito e o trabalho dos outros, perseguíamos outras estruturas narrativas, assumíamos certas liberdades formais, procurávamos experimentar e inventar ou, ao menos, fazer o nosso próprio caminho.”7
 
Um ano antes, no início de março de 1973, quando Cortázar chegou a Mendoza quase incógnito, se encontra com o autor de Zama na casa da crítica Lida Aronne em Amestoy. Na recente edição de Escritos Jornalísticos 1943-1986 (Adriana Hidalgo, 2016), Liliana Reales recupera o artigo que Antonio Di Benedetto então publicou no jornal Los Andes, ele próprio o diretor, sob o título “Julio Cortázar: ‘Mendoza, porta de minha casa’” (11 de março de 1973). A crônica do encontro é de uma maestria primorosa: quatro páginas colocadas como a serviço do leitor para relatar que, “simplesmente, Julio Cortázar está entre nós”. Di Benedetto está todo aí: “Ele fala com naturalidade, sem esforço de expressão, de maneira habitual. Ainda que, pague, sem querer, as sugestões.” No mesmo volume, há outro artigo publicado no jornal La Prensa, em 11 de março de 1984, com o título “Última entrevista com Julio Cortázar”, que finalmente confirma a suspeita. É um estranho texto articulado em terceira pessoa, onde Di Benedetto se autodenomina o “cronista”, o “jornalista”, o “editor”, reservando o designativo de “autor” para o escritor recém-falecido. No entanto, nessa última entrevista, ele deixa claro que eles se conheceram em Mendoza, quando Cortázar era professor da Universidade Nacional de Cuyo.
 
Os anos quarenta são, de fato, os anos em que se fecha o teor de uma aposta que não cessa de nos questionar: o que é o sucesso na literatura? O que é luz, a refração e a sombra? Na recepção contrastante entre O pentágono — a obra que era “pouco conhecida” — e O jogo da amarelinha — “uma espécie de bomba atômica no palco da literatura latino-americana”, como disse o próprio Cortázar — os mecanismos inconstantes que operam entre êxitos de vendas e as obras permanecem na sombra.
 
No entanto, como que para medir o verdadeiro gozo das baixas paixões, na capa do exemplar de Zama que Di Benedetto deu a Cortázar em sua visita a Mendoza em 1973, estampa a seguinte dedicatória:
 
“Julio:
 
Cortázar foi professor em Mendoza. Eu estava distraído ou ignorante. Encontrei-o com admiração em seus contos. Mas essa proximidade já correspondia a uma distância. Voltou e ontem à noite esteve em Godoy Cruz. Ontem à noite falei com Cortázar.
 
Agora, com essas cartas impressas, persevero no diálogo amigavelmente.
Antonio”

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Notas

1 Sergio Chejfec, “Prólogo”, em Cinco (Buenos Aires, Simurg, 1998).
 
2 O conceito pertence a um ensaio já conhecido de Alain Sicard: “Figura y novela en la obra de Julio Cortázar”, em Hommage à Amédée Mas (Paris, Presses Universitaires de France, 1972, p. 199-313).
 
3 Cf. Graciela Montalo, “Contextos de producción” e “Destinos y recepción” em Julio Cortázar, Rayuela (Coleção Archivos, Julio Ortega e Saúl Yurkievich, coord., Madri, 1999, p. 583-600).
 
4 Julio Cortázar, Cartas 1937-1963. Edição de Aurora Bernárdez (Buenos Aires, Alfaguara, 2000).
 
5 Em “Salvo el crepúsculo” (1984), de Julio Cortázar, existe outra notável referência a Zama: “mas o desejo sub-reptício de reler Tristram Shandy, Zama, A vida breve, o Quixote, Sandokan, e escutar outra vez todo Mahler ou Delius.
 
6 Francisco Solero, “Zama”, em Ficción, n.8, Buenos Aires,  jul.-ago. 1957, p.143-145.
 
7 O destacado — “contar de outra maneira” — é de Di Benedetto. Em 2005, a editora Adriana Hidalgo reedita O pentágono em sua versão original. Esta é a única reedição que encontrei o texto.
 
8 O livro se encontra na Biblioteca Cortázar, sob a guarda da Fundação Juan March, em Madri. Devo sua descoberta a Jaime Correas.

 
* Este texto é a tradução livre para “Antonio Di Benedetto. La distracción y la ignorancia”, publicado aqui, em Letras Libres.

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