A terra desolada um século depois
Por Bruce Swansey
Pastiche. Colagem. O último
arcaísmo. Montagem. Lamento. Drama. Music hall. Apropriação. Reelaboração.
Camuflagem. Lixo. Ritual. Um compêndio de alusões. Um poema estridente e
dissonante. Um grito. O inferno. Segundo T. S. Eliot, o autor, “uma peça de
rosnados rítmicos”.
Quando The Waste Land
apareceu na revista Criterion em outubro e como livro em Nova York em
dezembro de 1922, causou um estupor. Middleton Murray, um crítico
contemporâneo, considerou o poema um insulto à boa escrita. Dizia o que muitos
pensavam, articulava o rumor do desconcerto. De uma perspectiva tradicional, A
terra desolada não era poético, exceto por certas pontes acústicas que mereceram
a aprovação dos leitores conservadores. Os críticos da época reagiram a um
objeto linguístico inclassificável que rompia com as convenções.
O interesse da crítica em A
terra desolada lembra a reação ao Ulysses de Joyce, que Eliot
certamente admirava. São livros também feitos pensando nos eruditos, porque
parecem romper fronteiras e ir mais longe. A terra desolada é
caleidoscópico pela multiplicidade de fragmentos, pela diversidade de
percepções e sentimentos violentamente justapostos: “a broken bundle of mirrors”
(Pound), “a heap of broken images”, um monte de espelhos quebrados, um monte de
imagens quebradas, fragmentação que lembra as palavras de Yahweh a Ezequiel.
Como filho de um ministro, Eliot deve ter conhecido a Bíblia a fundo, como
sugere a alusão ao vale dos ossos ocos, à espera de um renascimento que não
ocorrerá.
Inferno geográfico, mas sobretudo
emocional, a cidade e o coração desertos onde “não há água, só rochas”, verso
que alude a Dante, que Eliot reconhece como a influência mais profunda e
duradoura na sua poesia. Eliot é um poeta culto, um crítico essencial e uma
alma curiosa que também se interessou pela filosofia e pela poesia do Brihadaranyaka
Upanishad, um texto reverenciado no hinduísmo.
O Upanishad contém uma
invocação à totalidade da Realidade absoluta, e vários estudiosos dedicaram
seus esforços para interpretar sua presença para dar voz ao trovão, Datta,
Dayadvam, Danyata, Shanti. Generosidade, simpatia e
controle. Shanti é um bom desejo: a paz esteja em todos os lugares. Como
talvez seu avô ministro o aconselharia, o trovão aconselha o autocontrole.
Eliot passou um ano estudando o
hinduísmo porque, como ele disse em entrevistas, partes das primeiras
escrituras budistas o afetaram tanto quanto o Antigo Testamento. Por outro
lado, o trovão também aparece no Livro de Jó, onde uma voz “cresce”, “a
voz do trovão é a de Sua Excelência”, Deus troveja, é uma voz insuportável.
Como a divindade, antes de ser compreendida, a poesia comunica. O mito é sua
linguagem e por isso o interesse de Eliot pelos ritos antigos, que ele deseja
fazer falar em uma linguagem moderna. O mito é a asa das crenças vivas e para
voar precisa ser também “primitivo”.
O interesse de Eliot pelos “balés
russos” de Diaghilev é consequência do seu gosto pela música e pelo ritmo, mas
sobretudo o seu apego ao rito que Nijinsky reinterpreta e é a fonte de
inspiração para vários poemas. A terra desolada é um ritual de primavera
contemporâneo de Stravinsky, que retorna à cena original do sacrifício. Para
ser moderno é preciso resgatar o antigo. Abril é o mês mais cruel porque é a
época em que a vida ressurge, quando até cadáveres retornam.
Não fossem as referências
literárias que inscrevem o texto dentro de um cânone, A terra desolada
seria ininteligível além do segmento. A conversa doméstica, as palavras de
trovão, palavras que cantam e outras que invocam, expressões típicas do jargão
de trincheira e das canções populares. É assim que A terra desolada soa,
com vozes que Eliot incorpora ao mixá-las. É desconcertante pela diversidade
dos temas, os saltos, os personagens reais e literários ou “históricos”, a
transição entre um e outro, as mudanças de ritmo e tom, apreciadas sobretudo ao
ouvir Eliot ler suas poema para a BBC ou a gravação de Eileen Atkinson e Jeremy
Irons, porque assim as transições dramáticas são melhores notadas. A compressão
é a chave para qualquer texto, mas mais ainda para o poema em que cada palavra
deve ser justa. Acredita-se que o texto era mais longo, mas por sugestão de
Pound, Eliot o reduziu. Ezra Pound é uma figura de destaque cuja influência na “edição”
de A terra desolada é bem conhecida (o poema é dedicado a ele, il
miglior fabbro), mas o desaparecimento do manuscrito original torna
impossível saber exatamente até que ponto foi a crítica “edição” de Pound.
Primeira edição de A terra desolada. |
A excepcionalidade de um texto
plural é sua lenta reflexão sobre histórias devastadoras e desgastantes, sobre
peças cuja diversidade incoerente dá uma pista estrutural: “These fragments I’ve
shored against my ruins”. O poeta reuniu peças que, deslocadas de seu contexto
original, recuperam sua eloquência. São palavras que então ressoam dentro de
uma tradição literária que Eliot escolhe para dar profundidade acústica ao
poema, mas também para multiplicar as associações. Eliot é o ourives guiado por
indicações para alcançar a beleza do método alusivo.
A terra desolada é
carregado de citações e referências literárias que convocam mundos diversos.
Sua densidade cultural pode intimidar aqueles que resistem a participar do jogo
que não busca deslumbrar, mas sim convidar os leitores a sentir a matéria do
poema, que são outros textos. Como argumentava Eliot, todos os textos existem
dentro do mundo de outros textos, uma ideia de literatura que exige
originalidade dentro da tradição. Nada vem do nada, mas a mudança exige
rearranjar objetos, descobrir outras relações, afirmar uma estética de alusão,
citação, reapropriação: “Os poetas imaturos imitam, os poetas maduros roubam”.
A vanguarda a que pertence Eliot
resistiu ao tempo, tornando-se parte da tradição contra a qual reagiu. A
colossal transformação da poesia de Eliot renovou leitores e escritores,
abrindo horizontes de consciência e estilo. Virginia Woolf, a sacerdotisa do “monólogo
interior”, nos ensina que a realidade pode ser analisada de outro ponto de
vista, a consciência que reflete e questiona o que se chama realidade. Tudo é
uma questão de percepção. A ficção não consiste mais em inventar histórias, mas
em seguir o caminho da consciência e suas associações caprichosas.
A terra desolada logo
cativou seus leitores. É um texto erudito e ao mesmo tempo aberto. Como no
teatro, testemunhamos cenas capturadas e transferidas por Eliot para o palco da
terra desolada. Alguns são plebeus, como a cena no bar quando chega a hora de
fechar e se ouve o refrão intermitente: “Hurry up please its time”, tendo como
pano de fundo a conversa entre um casal de paroquianos.
O tom sombrio do poema é uma
reflexão desencatada sobre o Ocidente, condizente com o que se pensava desde a
primeira carnificina global sobre a crise de valores que ameaçava destruir a
civilização europeia. É um humor que lembra o O mal-estar da civilização
de Sigmund Freud, que apareceu pouco depois. Ambos concordam com a visão da
Europa como um mundo arruinado e irreal, um mundo infernal habitado por zumbis.
Enquanto caminham, esses homens olham para as pontas dos sapatos e seguem
mecanicamente um caminho já traçado. São fantasmas laboriosos que fervilham na
penumbra da decadência ocidental, como Spengler a chamava. Os valores que
sustentam a civilização foram negados pela barbárie da guerra e a reconstrução
é impossível. A destruição da identidade, a questão de saber se nosso “ser” tem
uma essência ou tudo é acidental, e a consciência da catástrofe, o “mal-estar”
freudiano são as questões que preocupam o autor de A terra desolada e
seus leitores. abandonados a uma nova noite da alma.
Ligações a esta post:
* Este texto é a tradução livre para “La tierra
baldía un siglo después”, publicado aqui em Letras Libres.
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