A Impostura, de Georges Bernanos¹
Por André Malraux
Georges Bernanos. Foto: Albert Harlingue |
Sente-se nessa leitura, mais nitidamente
ainda que na de Sob o Sol de Satã, que os seres colocados em cena por
Bernanos estão submetidos a uma fatalidade que não é a de seu caráter, mas, ao
contrário, começa no ponto exato em que seu caráter se apaga. Não somente a
alma é para ele o essencial do homem; ela é ainda o que melhor o exprime. Nada
seria mais falso do que uma resenha sobre A Impostura: os fatos aqui só
possuem uma importância secundária. O que é primordial, é uma certa categoria
de conflitos.
O tema real da Impostura é
o mesmo que o da obra precedente de Bernanos: o estudo do poder de Satã. Esse
livro é composto de uma forma que chamarei musical: quero dizer que não são os
personagens que nele criam os conflitos, mas os conflitos que criam os
personagens. É por isso que Bernanos se apega ao padre que, com mais força e nitidez
que qualquer outro, exprime os sentimentos que ele quer iluminar.
Eu não ficaria surpreso se as
“crises” do livro de Bernanos lhe aparecessem antes mesmo que os personagens
fossem fixados por sua imaginação. Pois sua arte, talvez involuntariamente,
tende ao geral: seriam suficientes poucas modificações na cena em que o abade
Cénabre perde a fé para que ela calhasse a um personagem diferente: a crise
obceca muito mais o autor do que o caso particular do abade Cénabre. É de
propósito que falo em obsessão. Bernanos não intenta analisar as crises, mas
pintá-las. Pinta primeiro a angústia de seu personagem; depois, o faz agir; e,
de repente, o personagem descobre que acabou de fazer um gesto grave ao qual se
recusava e de exprimir o que escondia de si mesmo. Aí começa a intervenção de
Satã. Esses procedimentos são opostos aos procedimentos comuns do romance; e a
própria concepção que Bernanos possui do romance é oposta àquela que encontra
hoje mais simpatia, motivo pelo qual não será demais louvá-lo. Creio que as
resistências que Sob o Sol de Satã encontrou e que encontra A
Impostura, malgrado as qualidades que fazem de Bernanos inegavelmente um
dos melhores romancistas* de sua geração, devem-se ao seguinte: o autor não se
submete ao real comumente reconhecido; vive num mundo particular, que ele
criou. Às vezes tem sucesso em fazer-nos crer na existência desse mundo, em
impô-lo de maneira absoluta; o êxito é então estrondoso, achamo-nos diante de
cenas (o abade Donissan² se perguntando se a busca da santidade não será a mais
sutil das tentações — a morte do pároco Chevance³) que estão entre as mais
belas da ficção moderna, por sua profundidade e potência; às vezes ele falha, e
seu capítulo se transforma em panfleto. Ora, o panfletário em Bernanos está
longe de valer o criador de alucinações. Seu dom essencial, aquele que dá valor
a seus livros, é a intensidade. Ora, assim como o orador, quando erra, incomoda
tanto mais seu auditório quanto mais grita, Bernanos se enfraquece quando
vitupera fantasmas ou caricaturas.
Uma das cenas da Impostura
é simbólica do modo como Bernanos transforma o real: é aquela do encontro do
abade Cénabre com o mendigo. A pintura do pobre, de uma potência extrema, é
fundamentalmente irreal. Não quero dizer inexata, mas fora do mundo das coisas
exatas. Ela tem a fraqueza e a força das cenas líricas dos mistérios (aquela da
morte de Judas em Gréban4, por exemplo). E é a propósito de cenas
parecidas que falo em criação de ordem musical. Elas são necessárias ao retrato
do abade Cénabre, necessárias aos romances de Bernanos. Seria fácil mostrar o
que elas têm de falso: que mendigo interrogado nas circunstâncias que o autor
relata, responderia como o seu mendigo? Não é a realidade o que Bernanos segue,
mas uma realidade particular, reduzida a traços essenciais — e, por causa
disso, bem diferente da outra —, análoga àquela que Claudel traduz nos seus
dramas. Que se possa fazer uma semelhante tradução do mundo tanto no romance,
quanto no drama lírico, é algo que seguramente se pode discutir. Bernanos é
daqueles que nos impelem a responder pela afirmativa: se ele nem sempre dá a
impressão de sucesso, dá quase sempre a de grandeza.
Ligações a esta post
Notas do autor
* Sei bem que Bernanos é frequentemente criticado por não ser romancista. A
mesma crítica já foi feita a André Gide. Mas se pode pensar que se uma fórmula
exclui os bons livros, então ela não está correta.
Notas da tradução
1 Texto publicado no número 174 da
Nouvelle Revue Française, em 1928. A presente tradução faz parte de uma
série que estou publicando no Letras, dedicada aos textos de André
Malraux sobre os escritores que o marcaram. Malraux é o objeto de meu estudo no
Mestrado, que conta com financiamento da FAPESP (processo 2022/03423-9).
2 Personagem principal em Sob o
Sol de Satã (1926), primeiro romance de Bernanos.
3 No extremo oposto do abade
Cénabre, figura tenebrosa do impostor, Bernanos colocou o pároco Chevance,
símbolo da simplicidade divina.
4 Poeta e dramaturgo, autor de mistérios,
gênero teatral do século XV que colocava em cena histórias e lendas que
povoavam a imaginação popular.
Tradução de Guilherme de Almeida
Gesso
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