A grande história contra as Meninas, de Liudmila Ulítskaia
Por Joaquim Serra
Ler Liudmila Ulítskaia foi uma
surpresa. Os contos de Meninas se referem ao período de infância da
escritora: a passagem dos anos 1940 para os anos 1950. No terceiro conto,
sabemos exatamente a data, já que ela é o título “No dia 2 de março daquele
mesmo ano”. Mas vamos obedecer à sua organização — por enquanto. O primeiro
conto, “A dádiva prodigiosa”, coloca o leitor diante das pequenas
protagonistas, meninas da juventude socialista e seu cotidiano escolar. A
visita a um museu desperta a curiosidade e o fascínio pelo cultuado líder da
União Soviética, mas prova, pelos detalhes sinalizados do narrador, a rigidez
hierárquica que organizava também as crianças do regime.
Neste trecho o narrador descreve a
atmosfera do que as meninas encontraram no museu, e também ironiza ao revelar
os “ossos” entre os materiais usados para presentear Stálin: “O mundo estava
todo ali, mas ninguém esbarrava nem se amassava, todos se postavam por séries,
por escolas, regradamente, e todo o salão comprido estava inteiramente
atravancado de presentes para o camarada Stálin. Eram de ouro, de prata, de
mármore, de cristal, de madrepérola, de negrite, de couro e de ossos. De tudo
havia nesses presentes, tudo que há de mais leve e mais pesado, de mais tenro e
mais maciço” (p. 10).
O espanto das meninas surge quando
veem entre tudo isso um farrapo bordado para o camarada Stálin. Diante de
tantos presentes, aquele se destacava porque havia sido confeccionado por uma
menina sem braços. Uma das meninas sabe quem fez o tal farrapo e consegue com
ela um encontro. As meninas vão, querem ver nos olhos o brilho daquela que
mesmo aparentemente impotente fez sua parte como cidadã, criando, como podia,
um presente para o líder. A primeira quebra de expectativa surge quando a
artista decide cobrar pelo encontro, e aqui a experiência do leitor é sugada
pelo texto, pois levando em consideração a ingenuidade das meninas, sabemos que
aquilo não poderia terminar bem. Naturalmente, o leitor vai sentir a rasteira
quando enfim souber os reais motivos que levaram a menina a bordar o farrapo.
O segundo conto tem um acabamento
e uma fluidez únicos, não enfoca diretamente a vida das meninas, mas das
mulheres solitárias que criam os filhos diante da barbárie total das guerras,
que transformam os pais desertores em combatentes. Nesse conto, chamado “Filhas
de outro”, tem-se um outro foco do dever patriótico, restrito ao ambiente
doméstico, onde a microcultura familiar sobrevive, inclusive as superstições —
que o Estado científico tentou abolir — são como uma camada da pele na hora de
transmitir a cultura doméstica aos mais jovens. Nesse conto, a fragilidade recai
na figura masculina, no pai que, por não ter visto as filhas nascerem, quando
recebe a notícia ainda durante a Grande Guerra Patriótica — como os russos
chamam a Segunda Guerra —, não acredita que as duas meninas são suas filhas.
As filhas do título vão
protagonizar o terceiro conto, criando uma espécie de eco e choque geracional,
numa história que recorre a um motivo que atravessa a literatura, de Caim e
Abel ao recente Dois irmãos, de Milton Hatoum, ou seja, a briga entre
irmãos.
Já o conto “No dia 2 de março
daquele mesmo ano”, ambientado às vésperas da morte do líder da URSS, adiciona
ainda mais tempero nas existências infantis, mostrando ainda a falta de unidade
de uma nação que tentava abraçar (também culturalmente) o mundo. O dia em
questão localiza historicamente um evento que abalaria profundamente as
estruturas do país; depois da morte de Stálin, como dizem muitos historiadores,
se dá o início do período do degelo da URSS, assinalado com o polêmico discurso
do XX Congresso do Partido Comunista.
No conto, a menina Lília, de doze
anos, ouve o bisavô contar histórias semitas no leito de morte, devolvendo o
caráter oral da transmissão da cultura religiosa. Enquanto uma geração morria
com o bisavô, o corpo da menina está “no limiar da mocidade”, como diz o
narrador, criando um jogo de oposição entre o que fica e o que vai. Mas as histórias que a menina ouve são
perigosas. Seus avós professores, “sempre preparados para a prisão, para a deportação,
para o que fosse” (p. 80), temem que aquelas histórias do mundo judaico possam
ser recontadas pela menina na escola. Mas logo sabemos que isso seria
impossível:
“A época tinha seus imperativos:
tártaros eram amigos de tártaros, alunos medianos de alunos medianos, filhos de
médicos de filhos de médicos. Especialmente filhos de médicos judeus. Nem a
Índia Antiga conheceu sistema de castas tão mesquinho, tão risível” (p. 83).
Isolada, a menina judia pouco ou
nada poderia dizer; não havia o que temer. Ulítskaia não vasculha o passado
judeu na URSS e no Império Russo, mas sabemos que quase cinquenta anos antes, a
vida de um judeu perseguido e preso no império russo foi tema do livro do
escritor americano Bernard Malamud. Em O
faz-tudo, um habilidoso artífice judeu é acusado de modo kafkiano por um
crime que não cometeu. A angustiante história — muito bem executada por Malamud
— mostra como os judeus eram tratados pelas pessoas comuns e pelo Estado
imperial.
Impressiona ver como Ulítskaia
conduz o gênero do conto, misturando ao gênero aperfeiçoado por Tchekhov a
banalidade dos dias anteriores à morte do líder supremo da União Soviética. A
estrutura de Meninas, com seus seis contos, mostra uma autora que já
assimilou as vanguardas do começo de século, recusou alguns de seus preceitos,
mas outros pôs em prática e os usou para estruturar a própria recursividade que
estrutura os contos. Parece dizer que sua unidade aparente ainda busca um
leitor que precisa de histórias, mas que já não se limita ao formado do conto
como fotografia, como unidade parada no tempo e no espaço.
As meninas, Liudmila Ulítskaia
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