Teoria e prática nas Anotações de um jovem médico, de Mikhail Bulgákov

Por Joaquim Serra



 
Um médico recém-formado, de vinte e quatro anos, é enviado a um povoado distante de Moscou. Ao chegar, conhece a equipe de trabalho, que não esconde o espanto diante daquele noviço que assumiria o lugar do experiente Leopoldo Leopôldovitch. Encabulado, tentando fugir dos olhares que o cercam, ouvimos seus pensamentos; talvez devesse, mesmo sem problema algum nos olhos, colocar óculos sobre o nariz, ou assumir alguma postura física para impor respeito — já que a gravidade é um mistério do corpo, como diz a fórmula machadiana para um medalhão. Em termos técnicos, desamparado o jovem não está: “até que vocês têm um equipamento decente”, diz o jovem, “tudo graças aos esforços do seu antecessor, Leopoldo Leopôldovitch. Ele operava literalmente desde a manhã até a noite” (p. 22). Mikhail Bulgákov, ao escrever suas Anotações de um jovem médico nos moldes do que hoje poderíamos chamar de autoficção, sequer muda o nome do seu antecessor, como nos diz o prefácio de Érika Batista, quem assina também a tradução.
 
Separado por episódios, o ciclo de contos das Anotações encontra no estilo e no narrador uma unidade diante da bagunça mental do protagonista. Como é comum nos escritos dos dois médicos e literatos, Tchekhov e Bulgákov, a questão da consciência emerge da materialidade dos episódios. No caso de Tchekhov, os contos “Uma crise”, motivado pelo suicídio de Vsêvolod Gárchin, “A aposta”, “Enfermaria nº 6” guardam semelhança quando desencadeiam ações físicas motivadas por processos mentais — a ruptura mental é também física, por assim dizer. Já nas Anotações, a ansiedade para cumprir as expectativas do médico ainda não iniciado deflagra uma polifonia interior, que aparece na superfície do texto, emulando assim o desornamento mental diante reconhecido, mas ainda não experienciado.
 
Teoria e prática reforçam a complexidade da profissão. As fórmulas prontas, retiradas dos manuais de medicina, nem sempre auxiliam quando tarde da noite um pai bate à porta do hospital provinciano com a filha acidentada nos braços. Para alguém que deseja se afirmar, inspirar respeito e dissipar parte da ansiedade em se provar como médico, um erro poderia causar desconfortos ainda maiores; se for para a garota morrer, que morra na enfermaria, depois da cirurgia, só assim a reputação do médico iniciante poderia ser construída. Mas até a cirurgia se mostra problemática; a dificuldade parece ser a ação. Diante da menina acidentada e da inexperiência do médico que a acolhe, pelas suas lembranças seguimos o conflito entre a luz do anfiteatro dos tempos de estudante de anatomia e a realidade dos camponeses pobres da Rússia recém-revolucionária. Mas é muito fácil perder de vista esta dimensão: os anos a que Bulgákov dedica suas memórias são os primeiros da ebuliente Rússia pós-tsarismo. Pensar no motivo de o primeiro plano ser a vida de pessoas simples que recorrem ao rapidamente popular médico que salvou a menina tragicamente acidentada talvez seja uma das chaves da literatura de Bulgákov. Isto exige alguma explicação.
 
A própria estrutura de sua obra maior, O Mestre e Margarida, revela uma maneira de narrar bulgakoviana. A heroína do título, quem realmente faz o pacto com Woland, só aparece depois de muitas tramas e tipos, de um Bezdômny, o poeta que vai parar no manicômio, até um Maksimilian Adrêievitch, um tipo que vai para Moscou em busca de uma herança mobiliária. Bulgákov parece esconder os heróis para falar dos seres orgânicos, seja da seriedade de um Bezdômny, que quer alertar todos do perigoso diabo, ou do interesse de Maksimilian, que só podia pensar no grande apartamento que herdaria em Moscou. Para cada Bezdômny existe pelo menos uma centena de Maksimilian Andrêievitch, contra a ideia de um sujeito científico pós-revolucionário. Não existe tábula rasa; as incertezas, as dificuldades materiais e acima de tudo os desejos humanos permanecem.




 
Por falar em incertezas, o exame que o jovem médico faz da sua atitude diante da prática médica é atualíssimo. Suas dúvidas — principalmente para aqueles que já passaram por consultórios de residentes e veem nas suas explicações uma dosagem ainda diminuta do registro protocolar — revelam as incertezas de uma profissão tão essencial e que se modificou muito durante os anos. Cada conto acaba trilhando os caminhos de uma formação, a busca de um jovem pelo trabalho, em dirimir a distância entre teoria e prática no exercício de uma profissão não exata, como lembra o recém-lançado Exercício da incerteza do médico oncologista Drauzio Varella. Em diversos momentos os relatos se tocam. A distância de cem anos entre os textos só mostra que algumas questões são eternas; ainda assim, em Bulgákov temos uma anotação à flor da pele motiva pelo tratamento estético do texto literário. Um exemplo disso é como a imprevisibilidade do tratamento de certos eventos e doenças perturbam o imaginário do jovem médico. Pensar nas mulheres que poderiam aparecer com complicações no parto ou algum paciente com uma hérnia estrangulada aterrorizam o rapaz. Nenhuma teoria o preparou para isso: “Terminei a faculdade com mérito há quarenta e oito dias, mas mérito é uma coisa, e hérnia é outra. Uma vez, vi o professor fazer uma operação de hérnia estrangulada. Ele operando, e eu sentado no anfiteatro. E só...”. Em seguida, essa imersão nos pensamentos e nas ações vem contornada de alguma ironia: “suor frio corria pela minha espinha, às vezes, quando eu pensava em hérnias” (p. 46).
 
Já em Morfina, texto também autobiográfico, o autor fala do vício de forma muito mais linear. Não deixa de ser interessante contrapor os dois textos. Morfina começa assim: “Já foi observado há muito tempo por pessoas inteligentes que a felicidade é como a saúde: quando ela está na sua cara, você não a nota. Mas quando os anos passam, como você se lembra da felicidade, ah, como se lembra!” (p. 127). Acontece que em 1917, o narrador consegue uma transferência para a capital da província, posto que agora reduzia significativamente as responsabilidades sobre seus ombros; “Pela primeira vez, eu me sentia uma pessoa cujo volume de responsabilidade tem limites” (p. 129). Agora os partos e as hérnias poderiam ser conduzidos por especialistas de cada área, não mais na pressa de conferir os manuais médicos sem entender muito, ou procurar sempre fugir da sombra de Leopoldo Leopôldovitch desenhada nos olhares das enfermeiras.
 
Outra coisa atualíssima e sempre presente nos textos de Bulgákov é a relação de seus personagens com a solidão e a loucura. Estar só, seja num manicômio como no romance O Mestre e Margarida ou isolado geograficamente faz com que os pensamentos aflorem de forma mais espontânea na narrativa. Nem por isso a ironia não deixa de estar sempre presente, ajudando a costurar a existência da personagem que fala de si, do passado tumultuado ou feliz, da revolução ironicamente sentida nos confins da Rússia.
 
As Anotações de um jovem médico servem como uma espécie de olhar individual diante da história se fazendo, pelo recorte de um autor que lia os primeiros anos pós-1917 de dentro, e que depois, em “Um coração de cachorro”, “Ovos fatais”, “As aventuras de Tchítchikov” representa criticamente essa nova sociedade que se formava, a visão científica e racional que prometia, os Fatais e Tchítchikovs espertalhões que abalavam os alicerces frágeis do sistema soviético. Basta lembrarmos da fragilidade do argumento — talvez um pastiche materialista — que tenta explicar as diabruras mágicas de Woland e seu séquito por Moscou. Daí cabe ao leitor ver o jogo estético que diverte, que ironiza, mas que revela as tensões entre o novo mundo e seus habitantes. Se é que poderia se formar algo tão novo a partir dos personagens por vezes errantes e atrapalhados de Mikhail Bulgákov.
 
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Anotações de um jovem médico e outras narrativas
Mikhail Bulgákov
Érika Batista (Trad.)
Editora 34, 216p.
 

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