Mundo Shakespeare
Por Vicente Molina Foix
Sir John Gilbert. The Plays of William Shakespeare. |
Quão difícil é escrever bem sobre
Shakespeare. Continuar escrevendo, quero dizer. A angústia das influências
precedentes, que levam ao nome de Goethe, Coleridge, Stendhal, Hegel, Auden,
Ted Hughes, Virginia Woolf, pode afetar qualquer um, embora não a Harold Bloom,
que transformou o bardo, sem se intimidar, em inventor do humano; quantas
páginas shakespearianas devemos ao professor estadunidense? Certamente não mais
que mil e quinhentas, um caso extraordinário de hubris contemporânea, de
tomar a si próprio como Falstaff, não apenas no sentido físico, censurando ao
criador as inconsequências e traços mais grossos de sua criatura sir. John. Se pensarmos
bem, não é uma má maneira de amar os artistas: sentir-se tão autorizado pela
própria devoção, pela fidelidade obsessiva a um autor, como para — num delírio que
a literatura é muito capaz de abonar — acreditar-se com direitos de mimesis, de
entendimento particular, de usufruto. Particularmente, tenho reconhecido em mim,
na minha vida de praticante a madame Bovary, um Max Estrella que ensinou
a doutrina epicurista a partir de Malasaña, uma seguidora catalã da marquesa de
Menteuil, e um par de alter egos do capitão Ahab, mas de água doce.
Difícil a tarefa de acrescentar
alguma substância à grandeza de Shakespeare, mas não cedamos a isso, os angustiados,
os leitores comuns, os diretores de teatro em suas províncias, os que uma noite
sonhamos com ele ilimitadamente e acordamos metamorfoseados à mera condição de
incondicionais. O que acontece é que somos multidão, uma das legiões mais
numerosas e ativas da história da literatura, e um primeiro ponto nos
distingue. A obstinação em Shakespeare tem algo peculiar, que separa, por
exemplo, da que sentimos por Cervantes. O apego ao autor de Dom Quixote,
por muito que doa, e como razão, aos cervantistas, é a uma só obra, que por si
mesma o fez o maior romancista desde que o mundo existe até quando nasceu
Flaubert. Sabemos, é claro, que as Novelas exemplares transcendem, em
sua sutil amalgama de invenção e lição, o molde de “nosso espanhol Boccaccio”,
como o chamou Tirso de Molina; que sua produção dramática nem merece muito o “perpétuo
silêncio” que ele próprio a condenou por escrito, desligado pela primícia do “monstro
da natureza, o grande Lope de Vega”; que os melhores de suas peças são purgantes
de uma medicina cômica que iguala em efeitos as de algumas passagens do Dom
Quixote e anuncia as de Molière; e que Os trabalhos de Persiles e
Segismunda possui a melhor prosa lírica de seu tempo, incapaz, a meu ver,
de aliviar as misturas do conceito. O culto a Cervantes se concentra em mil e
cem páginas (descontando as notas) e num título. Não é uma censura, pois ele
ultrapassa Milton ou Dante, Proust, Clarín.
Shakespeare seduz, ao contrário,
por acumulação, por excesso, por metástase, e não se trata de pesar seus versos
para medi-los com as quantidades de outros. O mundo pelo qual somos tão fiéis
está feito de facetas, de opulentas dimensões, que ostentam além de tudo, com algo
possivelmente inigualado na história do gênio (antes da chegada de Picasso), o
traço interior, a arte do refeito; das pelo menos trinta e sete obras que
escreveu, apenas três, Sonho de uma noite de verão, Penas por amor
perdidas e A tempestade desenvolvem — com algum pequeno empréstimo
ou citação — uma matéria ficcional inteiramente concebida por ele. Em todas as
demais, o autor de historiografias, crônicas, lendas, contos antigos e contemporâneos,
poemas e tratados greco-latinos, que combina e recria à sua maneira sublime,
numa variedade de registros amplamente conhecida.
Nessa teoria de conjunto
não fica elegante, se quisermos ser justos com ele, chamá-lo, por exemplo, “o
genial autor de Hamlet”, como se essa obra fosse a insígnia caravela de
uma frota de embarcações auxiliares. A tragédia, não poucas vezes cômica, do
jovem príncipe dinamarquês, esse leitor incansável do livro de si mesmo (ou “alto
Signo vivente”, como preferia dizer Mallarmé), ressoa na consciência, inclusive
na de quem não leu a peça, e alimenta a imaginação posterior tanto como fizeram
Édipo, Antígona, Ulisses ou Alonso Quijano. Mas estamos ao mesmo tempo falando
de uma peça dramática cujas representações são amputadas pelo consenso geral da
maior parte dos digressivos diálogos entre Hamlet e o Primeiro Ator (ato III, cena
segunda), e cuja construção, descompensada em mais de uma ocasião e com
notáveis anticlímax dramático, fez nos últimos anos preferir a edição Fólio da
obra, que elimina muitos versos da antes tida como mais fiável, o Segundo
Quarto.
O prazer e a surpresa inesgotáveis
de penetrar na totalidade radica em se dar conta de que as tragédias canônicas
como Macbeth, Otelo, Rei Lear ou Romeu e Julieta,
além da já citada Hamlet, têm a sua mesma altura obras menos favorecidas
pela fama, como Antonio e Cleópatra, com seu irresistível sitcom
doméstico-amoroso inserido num marco de alta política, como O mercado de
Veneza, em que um encantador romance sexual e uma pugna racial e religiosa
convivem sem nunca chocar, enriquecendo-se mutuamente, ou como Tróilo e
Créssida, que tanto fascinou Luis Cernuda, seu tradutor para o espanhol, e que
Heine, indeciso entre considerá-la trágica ou cômica, dizia “que não pertence a
nenhum tipo específico de ficção”, podendo apenas julgá-la, na ausência de
modelos conhecidos, como “conscienciosamente shakespeariana”. O que acontece é
que este último adjetivo é muito elástico. Alcança por originalidade incomparável
quase todas as suas comédias (a minha preferida é Muito barulho por nada,
e sua impetuosa e loquaz Beatriz que sempre me faz pensar em Katherine
Hepburn), das duas das chamadas problem plays, como Medida por medida
e Bem está o que bem acaba, às sagas da história britânica como os Henriques
IV e V ou Ricardo II, de similar grandeza e a popular Ricardo
III, sem se esquecer das grandes last plays, A tempestade, Cimbelino,
Conto de inverno, com seus misteriosos nós e cifras, que levaram Frances
Yates a sua sugestiva leitura cabalística.
Shakespeare permaneceu, sobretudo
em sua língua, como o criador de expressões que chegaram ao ponto do ditado popular.
Isso o enaltece mas não o distingue de Homero, por exemplo, nem de Lorca, nem,
claro está, de Cervantes, pois nascemos sabendo provérbios caseiros ou exclamações
que procedem, descobrimos mais tarde, de Dom Quixote. Mais importante
literariamente que esse dom aforístico involuntário é que Shakespeare nunca
disse o que se espera que diga; seu verbalismo e seu imaginário produzem pelo
menos espanto, quando não incredulidade e por isso que nas traduções seja tão necessário
não “acomodá-lo” à lógica; a palavra poética de muitos dos seus versos não é
sua. Se existe um escritor clássico que combate o clichê é ele, num tempo — não
vá pensar que essa guerra foi iniciada com Martin Amis — em que já abundavam no
teatro e na poesia. Ele os desmonta, os torna supérfluos, o que explica o prejuízo
que sua presença na Inglaterra isabelina casou a outros dramaturgos e poetas de
grande qualidade, mas não tão alta exigência, como Ben Johnson, Ford ou Fletcher,
que ao seu lado podem resultar simplórios.
A palavra poética de Shakespeare é
a chave, mas esse deslumbramento versal pode ofuscar sua matriz novelesca. Num livro
publicado pela Oxford University Press, Circumstantial Shakespeare, a
estudiosa Lorna Hutson reivindica o fabulador, sem menosprezar naturalmente o
talento para definir seus characters, essa infinita gama de personagens
de todo tipo que povoam suas comédias e dramas, e na brevidade de um rol de coveiros,
assassinos, bêbados, camareiras, não é impedimento para que o escritor os dote
de eloquência, caráter, pensamento, situação, fazendo deles elementos de uma infinita
cadeia do ser que os unem aos protagonistas mais destacados, reis rufiões
ou distintos, príncipes miseráveis, damas inteligentes, princesas inocentes, generais,
juízes, sábios. Hutson, por sua vez, coloca uma marcada ênfase na importância
do plot, algo mais que uma narrativa ou trama, em boa parte das peças. A
riqueza da peripécia, que ela designa com o termo latino fabula, aberta
em seus significados não apenas ao apólogo mas ao rumor popular e à conversação
de rua, tem no repertório de Shakespeare uma impressionante variedade de
voltas, saltos, surpresas, golpes de efeito, atrevidas construções narrativas. O
livro citado examina, por exemplo, o emprego em Macbeth e Júlio César
de ações que se desenvolvem, segundo a linguagem cênica, “entre caixas”, e que o
cinema chama “fora de campo”; uma forma de evolução do relato que, ao mesmo amplia
o espectro do que acontecido e retira-o do cerrado espaço da caixa cênica.
Isso, entre outras coisas, explica
que, além de criar uma seita de enfeitiçados, Shakespeare deslumbra ou seduz
sem exclusão todos os públicos, inclusive os que não leem nem escutam e só o
conhecem através de uma releitura, uma pintura ou uma adaptação cinematográfica,
por vulgar que seja. Shakespeare pode com tudo.
* Este texto é a tradução livre
para “Mundo Shakespeare”, publicado na revista Metcurio, em março de
2016, p.10-11.
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