Guerra e paz (na casa dos Tolstói)
Por Rafael Ruiz Pleguezuelos
Liev Tolstói e Sófia Tolstaia. Foto: Hulton Archive |
“Todas as famílias felizes são
iguais; cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” A famosa abertura de Anna
Kariênina confirma uma das grandes verdades do estudo da literatura: muitos
dos grandes autores não só produziram obras imensas por seu valor e
transcendência, mas também, consciente ou inconscientemente, deixaram nelas uma
espécie de livro de instruções com o qual interpretar seu legado. Supondo que
assim seja, a tarefa de quem estuda literatura (ou de quem a adora a ponto de perder
o tempo interpretando-a) é desvendar essa espécie de livro-chave descontínuo
que deixaram escondido no fundo de seus textos. Quando, no início do século XX,
alguns críticos quiseram distanciar o estudo da literatura do biografismo,
refugiando-se na ideia de que isso tornaria seus resultados mais científicos
(como se isso fosse uma coisa boa em sua totalidade), não se davam conta de que
a maioria dos escritores — ousaria até sugerir que os melhores — compõe com o
que sobra ou falta em suas vidas, de modo que entrar em contato com sua
biografia significa conhecer melhor os tijolos e o cimento de suas construções
literárias.
Os estudos culturais e feministas,
em sua ânsia de rever a história e virar os mitos de cabeça para baixo,
colocaram nas bibliotecas uma enxurrada de estudos, alguns irrelevantes e cegos,
mas sem dúvida também muito contribuíram para a gestão dos mitos. Um de seus
maiores acertos foi a demonstração a partir da biografia, entre revisionistas e
justiceiros, da dor que esses gênios infligiram ao seu ambiente, principalmente
aos seus parceiros. Em suma, com a nossa mudança de mentalidade, aprendemos a
medir o gênio do autor apenas em seu campo artístico, e não cair na tentação de
estendê-lo automaticamente à sua pessoa. Certas monstruosidades realizadas sob
a proteção do gênio são cada vez menos toleradas. Vivemos imersos na moda
necessária de criar biografias de mulheres que sofreram por grandes artistas, e
artistas como Dickens, Picasso ou Rodin já passaram por esse rolo de tinta e
papel, e muitos outros ainda seguem à espera disso.
A vida de Sófia Tolstaia¹ é um desses
exemplos de mulheres altruístas que viveram o inferno na terra suportando um
gênio literário. Mãe de treze filhos, o peso de suas tarefas em Iásnaia
Poliana, a propriedade da família Tolstói, foi verdadeiramente desumano durante
grandes fases de sua vida, algo que seu marido também nunca parecia compensar,
pelo menos emocionalmente. Como se não bastassem as tarefas domésticas, ao
longo de sua vida Sófia experimentou uma espécie de castigo de Sísifo na
obrigação de passar a limpo o manuscrito do escritor, às vezes até cinco vezes,
muitas vezes tendo que usar uma lupa para desvendar a difícil caligrafia do
marido. Numa época em que ela esteve doente e acamada, inventaram uma engenhoca
de madeira para que ela pudesse continuar escrevendo daquela posição.
Mas o que me leva a escrever este
artigo não é revelar o quanto Sófia Tolstaia sofreu, um tema que exigiria muito
mais espaço e para o qual existem precedentes muito bem executados (meu
favorito é o livro de Alexandra Popoff)*, mas compartilhar com o leitor o
fascínio que se produziu sobre mim acerca do fato de que Tolstói tenha criado
um sistema de vida em que tudo era de uma forma ou de outra controlado e
governado pela escrita. Para entender completamente o processo, devemos lembrar
que o grande escritor russo era peculiar até mesmo em digerir a fama: ao
contrário do que acontece com a maioria dos artistas, com o sucesso de Guerra
e Paz e Anna Kariênina ele abandonou muitos dos vícios que o colocavam
para baixo, tornando-se cada vez mais espiritualizado e gradualmente se
tornando uma espécie de grande xamã com uma moral singular, em que o contato
com a natureza e uma vida simples eram os pilares fundamentais.
Em um momento de sua vida, ele
abraçou o pacifismo absoluto (que o governo russo da época sempre via com
desconfiança) e tentou levar uma vida tão austera que dizem que ele até fabricava
os seus próprios sapatos. Quando nos referimos a Liev Tolstói, não costumamos
lembrar que essa paz sóbria veio depois de uma juventude cheia de excessos, que
terminou quando a escrita entrou plenamente em sua vida. Para isso, o autor
russo concebeu e redigiu uma longa lista de regras que deveriam reger seu
comportamento a partir daquele momento, máximas destinadas a impedi-lo de
voltar à vida dissipada que conhecera até os trinta anos. Ao deixar essas
regras governarem sua vida, adquiriu o hábito de manter um diário de ocupações
preciso e detalhado, no qual anotava o que fazia quase minuto a minuto,
incluindo todas as fraquezas morais que encontrava em seu comportamento. Em suma,
sua escrita atuou como uma espécie de polícia de si. Devemos reconhecer o
escritor russo que teve a força necessária para cumprir a maioria dessas
regras, e as regras funcionaram pelo resto de sua vida como uma espécie de
grande prisão em que Tolstói trancava seus vícios. Repassar essas regras hoje é
um exercício divertido, pois vão desde questões práticas (evitar açúcar, não
dormir mais de duas horas durante o dia e estar na cama às dez e acordar às
cinco), ética (ajudar os pobres, não levar em conta qualquer opinião alheia que
não seja baseada na razão) a algumas bastante marcantes (não deixar sua
imaginação correr solta mais do que o necessário, não visitar um bordel mais de
duas vezes por mês).
Como mais uma prova de que Liev
Tolstói confiava mais no que escrevia do que no que era capaz de verbalizar,
sempre apreciei outra anedota sua relacionada aos diários em que se conta que
na noite anterior ao casamento com Sófia (ela tinha dezoito anos e ele trinta e
quatro), ele obrigou sua futura esposa a ler todos os seus diários juvenis, nos
quais dava detalhes explícitos de todas as aventuras antes de conhecê-la. O
conteúdo não deve ser pouca coisa, pois duas semanas depois de lê-lo, em 8 de
outubro de 1862, Sófia escreveu em seu diário que “o passado do meu marido é
tão horrível que acho que ele jamais poderá aceitá-lo”.
Mas de todos os textos em que se
pode mergulhar para recriar a existência e as relações do escritor com seu
ambiente — esse livro de instruções ao qual me referia no início — nenhum
oferece uma sensação de realidade mais arrepiante do que o que o diário de
casamento, a ponto de vasculhar suas páginas muitas vezes parecer mais uma
violação de privacidade do que um processo de leitura legítimo. Não é exagero
afirmar que conhecer as forças internas do casamento de Liev Tolstói com Sófia
Behrs através de seu diário supõe uma espécie de viagem ao subconsciente dos
dois, dado o grau de detalhamento, aparente sinceridade e até violência com que
cada registro foi feito. Falo de ambos os diários como se fossem um só porque,
durante grande parte de sua vida juntos, os Tolstói compartilharam um diário e
também usaram as entradas de cada dia para comunicar assuntos que não puderam
dizer cara a cara ou não encontraram tempo para discutir. Como mais um belo
paradoxo nessa história de domínio do escrito sobre qualquer forma de
comunicação, encontramos o fato de duas pessoas que viviam em uma fazenda
isolada do mundo se comunicavam por meio de um caderno, mostrando o quanto Iásnaia
Poliana havia sublimado a comunicação escrita.
Se revisamos os diários, muitas
vezes obtemos uma espécie de repertório de queixas conjugais, que ilustram
melhor do que qualquer biógrafo a deterioração do casal: aparentemente, à
medida que o personagem de Tolstói se elevava no espiritual, perdia o interesse
no que a relação com sua família poderia trazê-lo. Mesmo assumindo a diferença
cultural de um período histórico tão distante do nosso (estamos estudando com
os olhos do século XXI um casamento do final do século XIX e início do século XX),
o relacionamento de Liev Tolstói com sua esposa é uma mostra exemplar — tão
infeliz — do que os estudiosos do comportamento chamam de poder negativo,
e que é popularmente chamado de face oculta do gênio. As queixas de Sófia nos diários
costumam ser direcionadas à frieza com que Liev a tratava. Há um momento
comovente que vem a calhar para ilustrar essa difícil convivência do gênio e da
pessoa a que me referia anteriormente, quando Sofia menciona que “se tivesse
comigo um pouco da compreensão psicológica que ele mostra em seus romances, teria
compreendido a dor e a tristeza em que vivo”². Toca-nos ler Sófia em mais de
uma ocasião mencionando o suicídio (em um diário compartilhado, não esqueçamos)
como saída para seu casamento. Tolstói, geralmente mais afastado dos assuntos
domésticos em seu diário, também dedica um registro de vez em quando a reclamar
abertamente de sua esposa, como na entrada de 8 de janeiro de 1863: “De manhã,
suas roupas. Ela me desafiou a contestar, e assim fiz, e a partir daí, todas as
lágrimas e explicações vulgares. […] Não estou nada feliz comigo mesmo nessas
ocasiões, especialmente com os beijos — são remendos falsos… Sinto que estou
deprimido, mas ela mais ainda. […] Ela me diz que eu sou gentil. Eu não gosto
que me digam isso.”
Nos diários também há um fato
curioso que reflete o progressivo distanciamento entre os dois: em algum
momento do relacionamento, Sófia deixa de se referir ao marido nesses textos
privados como Liova (um termo entendido como familiar ou afetuoso) para
nomeá-lo a partir daquele momento Liev Nikolaevich, com a distância que a
referência do nome completo implica. A aventura do diário comum não durou toda
a sua vida matrimonial. Em algum momento de sua vida, o autor russo parecia
entediado com o jogo de informações comuns e, após vinte anos de diários
compartilhados, Tolstói começou a escondê-los de Sonia, e diz-se que por muito
tempo ela os procurou incessantemente e quase completamente paranoica, sem dar com
eles.
Praticamente todos os biógrafos do
casal concordam que o período mais feliz do casamento entre Sófia e Tolstói
foi o momento em que o escritor estava trabalhando em suas duas obras-primas, Guerra
e Paz e Anna Kariênina. A partir desse fato poderíamos pensar,
deixando voar um pouco a imaginação, numa plenitude artística que encharca a
pessoal, ou vice-versa. O escritor morreu na estação de trem de uma pequena
cidade chamada Astapovo devido à complicação de uma pneumonia. Ele tinha então
oitenta e dois anos e acabara de deixar a esposa depois de quarenta e oito anos
de casamento. Antes de sair, como poderia ser de outra forma, ele deixou um
bilhete escrito. Nele, disse em um tom de escrita aparentemente calmo, quase frio,
que “Estou fazendo o que os homens da minha idade costumam fazer: deixar a vida
mundana para passar os últimos dias de minha vida em solidão e silêncio”.
Ligações a esta post
Notas
1 O nome dela era Sófia, mas ela
era chamada de Sonia pela família e amigos. Por isso, é possível que o leitor
encontre textos nos quais ela é nomeada como Sonia.
2 A maioria das citações do diário
são traduzidas para o espanhol da edição de Cathy Porter dos diários de Sófia Tolstói.
(Harper, 2010).
Notas da tradução
* Trata-se de Sofia Tolstói
— uma biografia, ainda inédito no Brasil; existe uma tradução para o
português em Portugal editada pela Civilização Editora.
Este texto é a tradução livre de “Guerra y paz (en casa de los Tolstói)”, publicado aqui, em Jot Down.
Comentários