De Anima: Peanuts, de Charles M. Schulz
Por Pablo Sol Mora
Sempre gostei de quadrinhos. Já
disse que quando pequeno era um assíduo leitor e colecionador do Homem-Aranha
e outros super-heróis. Aos domingos, além disso, meus pais costumavam comprar o
jornal Excélsior, que trazia uma alentada seção de tirinhas para a qual
eu corria. Ali figuravam, entre outros, Hagar, o Horrível, Belinda,
Mutt & Jeff, They’ll Do It Every Time, Pafúncio e Marocas,
o clássico e soporífero O Príncipe Valente (nunca entendi como alguém
podia acompanhá-lo), Garfield, Mafalda e Peanuts. Em casa,
à parte, havia alguns volumes, em inglês e espanhol, destes últimos, que eu lia
sem parar. Agora que penso nisso, tínhamos uma espécie de culto doméstico ao
Snoopy. Minha mãe teve vários carros Volkswagen Beetle (Fusca), “vochos”,
vermelhos, e costumava colar um adesivo do Snoopy aviador no vidro traseiro.
Não havia como se enganar de carro.
O problema com Peanuts é
que foram tão esmagadoramente explorados pela comercialização e publicidade
que, para muitos, seus personagens evocam apenas um cartão de aniversário ou um
bichinho de pelúcia, e não um dos universos ficcionais mais divertidos e
completos do século XX. Charles M. Schulz, autêntico Balzac das tirinhas,
escreveu-as e desenhou-as diariamente de 1950 até 2000, ano de sua morte
(quantos escritores podem gabar-se de uma criatividade semelhante?). Como notou
Umberto Eco em seu célebre ensaio, um dos maiores atributos de Peanuts é
o encanto que exerce tanto sobre a criança que apenas lê (ou nem isso, pois ver
os desenhos pode ser o bastante) quanto sobre o leitor adulto mais exigente. Em
termos pessoais, não sei exatamente o que me fazia ler sem parar quando criança
as mesmas tirinhas, mas sei que é o único quadrinho que me acompanhou até hoje
e que meu gosto por ele, além de não diminuir, de fato aumentou.
Houve um momento específico em que
redescobri Schulz e reavaliei por completo sua obra. Entre 2005 e 2007 eu me
encontrava em Cambridge, Massachusetts, como assistente de Espanhol na Universidade
de Harvard e trabalhava desesperadamente em minha tese de doutorado, que estava
um pouco atrasada. Por essa época, os volumes de The Complete Peanuts estavam
sendo publicados, a uma média de dois por ano até completar os 25 planejados.
Vi-os pela primeira vez em The Coop, a livraria da universidade em Harvard
Square, e comecei a comprá-los. Os primeiros que adquiri foram The Complete
Peanuts 1959 to 1960 e 1961 to 1962 (Fantagraphic Books, Seattle, 2006). É
uma linda edição de “obras completas” com capa dura, escrupulosamente cuidada e
desenhada. Cada volume tem na página de rosto um membro da gangue (nestes
casos, Patty e Linus) e um prólogo escrito por alguma celebridade, de Jonathan
Franzen até Barack Obama. Durante meses segui uma rígida rotina que implicava
ir à escola e dar aulas pela manhã, e trancafiar-me nas bibliotecas ou em meu
departamento para trabalhar durante a tarde, mas sem falta ler algumas tiras
diárias que me faziam rir feito louco e me deixavam no melhor humor possível.
Em meio ao estresse da tese, a leitura de Peanuts era um relaxamento e
um tônico.
Os anos 1960 são, talvez, a época
dourada da tirinha. Na década anterior, a inicial, Schulz testa, experimenta e
vai definindo os principais elementos do mundo de Peanuts. No final dos
anos 1950, os personagens mais importantes já estão bem caracterizados: Charlie
Brown, Linus, Lucy e, é claro, Snoopy. É curioso observar a evolução deste último.
Nos primeiros anos, Snoopy é um cachorro que se comporta como um cachorro e não
tem muito protagonismo. Em 1956 ocorre algo extraordinário: Schulz o faz
caminhar pela primeira vez sobre duas patas. Logo começará a fazê-lo expressar
seus pensamentos e, mais tarde, a representar papéis, primeiro de animais — um
abutre, um gorila, um alce, uma águia-careca, um leão — e depois de personagens
inventados — o Às da Primeira Guerra Mundial, um soldado da Legião Estrangeira,
Joe Cool —, além de fazer dele jogador de beisebol ou escritor (desnecessário
dizer, minha caracterização favorita; durante anos tive ao lado do computador
um Snoopy com sua máquina de escrever.) Ainda que o beagle, em contraste
com seu dono, encarne a despreocupação e a felicidade, a verdade é que suas
transformações costumam ter um final cômico que o devolve à sua realidade
canina. Snoopy, como o Quixote ou Madame Bovary, não está de acordo com a vida
que lhe cabe viver e se refugia criando uma realidade fantástica, mais viva e
mais brilhante.
Embora seu cachorro acabe roubando
seu protagonismo — o que, a bem da verdade, é o que haveria de suceder-lhe —,
Charlie Brown é o verdadeiro herói da obra. Herói, claro, no sentido em que
Leopold Bloom ou Zeno Cosini são heróis do Ulisses ou de A consciência
de Zeno, ou seja, de forma anti-heroica. Essa é a verdadeira estirpe de
Charlie Brown, a do anti-herói moderno: derrotado, nervoso, introspectivo,
angustiado, neurótico, doente, paralisado por seu próprio pensar. Charlie Brown
é, além disso, aquilo que a sociedade norte-americana menos perdoa: um loser.
Eis o seu recorde perfeito de derrotas no beisebol, sua incapacidade de empinar
papagaio ou de chutar uma bola de futebol americano; pior ainda, sua timidez
patológica e a inabilidade de falar com a garotinha ruiva. Mas Schulz, no final
das contas, não é Kafka, e é incapaz de condenar por completo seus personagens.
Sempre haverá algo, entre o humor e a bondade, capaz de salvá-los. Charlie
Brown é redimido por sua inocência e constância à prova de todas as desilusões,
e, acima de tudo, pela amizade e o afeto que inspira naqueles que lhe querem
bem.
Os irmãos Van Pelt, Lucy e Linus,
completam o quadro. Lucy, a mais velha, é mandona e bronca. Sádica, gosta de
maltratar o irmão e o hipersensível Charlie Brown, como naquela linha
memorável: “Posso fazer uma crítica construtiva, Charlie Brown? Você é meio
estúpido”. Talvez seu principal traço de caráter seja essa atroz certeza de
sempre ter razão. Duvidar é para os fracos. Ela monta um consultório
psiquiátrico na própria rua — sutil zombaria de Schulz para com a psicanálise e
a psiquiatria —, no qual pretende resolver os problemas de todos por cinco
centavos. Paradoxalmente, e como um ato de justiça divina, está apaixonada pelo
artista, Schroeder, o pianista fanático por Beethoven, que a rechaça
olimpicamente. Esse é um mundo que Lucy jamais poderá entender. E, contudo, até
ela é redimida pela benevolência inerente a Peanuts. Ela possui um
instinto maternal e, quando de bom humor, não resiste à ternura de Snoopy.
Linus é um irônico filósofo em
miniatura. Gosta de falar do Livro de Jó e vê são Paulo nas nuvens. Por um
lado, é extremamente inocente e espera ano após ano a chegada da Grande
Abóbora; por outro, sendo mais novo que Charlie Brown, é mais realista e
pragmático que ele e sabe adaptar-se às circunstâncias da vida. Quando Charlie
Brown, pela enésima vez, chora em seu ombro e lhe diz que não se deveria lançar
alguém à vida sem mais nem menos, ele retruca: “E o que você queria? Um
aquecimento?” Diferentemente do amigo, não tem problemas para atrair meninas
(Sally em primeiro, é claro). Tudo ficará bem, desde que não lhe tomem o
cobertor...
No mundo aparentemente pueril e
cândido de Peanuts estão expostas nossas neuroses, frustações, medos e
inseguranças. É um mundo atormentado com uma aparência inocente e que, todavia,
não acaba se mostrando deprimente ou melancólico, pelo contrário. Ele é
redimido pelo senso de humor, a amizade, o afeto e a bondade. As angústias e
ansiedades de Charlie Brown são reais, assim como a felicidade e o prazer de
viver de Snoopy. No fundo, talvez ambos componham um único personagem. O
primeiro encarna os abismos da alma: a angústia, a ansiedade, a depressão, a
insegurança, o medo; o segundo, suas virtudes: a alegria, a leveza, a
serenidade, a descontração, a ventura. A estas, por certo, ele não chega de
modo espontâneo (vale recordar aquelas primeiras tirinhas em que Snoopy
demonstra seu inconformismo por ser apenas um cachorro e começa a imaginar-se
como sendo outras coisas), embora tenha uma boa predisposição para elas: são o
resultado de sua imaginação e sua vontade. Se alguém me pedisse — ninguém o fez
— uma fórmula para a felicidade segundo Peanuts, seria esta: cultiva teu
Snoopy interior.
* Tradução livre de Guilherme
Mazzafera para “De Anima: Peanuts, de Charles M. Schulz, publicado aqui em Letras
Libres, em 15 jun. 2022.
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