Como Flaubert transformou Madame Bovary numa pessoa e outros segredos do seu êxito
Por Winston Manrique Sabogal
“Madame Bovary sou eu”, disse Gustave Flaubert. Somos todos Madame
Bovary. Madame Bovary está em cada pessoa, o que acontece é que só ela teve
coragem de ser fiel a si mesma indo atrás de seus sonhos, de seu ideal sem
razão. Puro impulso romântico.
Gustave Flaubert recriou o extraordinário jogo cervantino em que a
imaginação e os desejos do personagem colonizam sua vida real e rompem a
realidade com a ficção, neste caso indo atrás do amor que acaba sendo para ela uma
miragem.
“De Flaubert sempre me surpreendeu sua enunciação mítica ‘Madame Bovary
c’est moi’ e o que ele teve que enfrentar quando se ‘feminizou’ literariamente”,
explica a escritora porto-riquenha Mayra Santos-Febres.
Aquela “Madame” que o habitou e que por meio dela falou em seu romance,
acrescenta Santos-Febres, “começou, junto com Anna Karenina e outros romances
fundacionais do romantismo e da modernidade, a entrada do sujeito ‘mulher’ como
protagonista da literatura e a palavra pública. Emma nomeia o desejo mulher e
por isso ela morre. Sua ânsia de liberdade, seus ‘erros românticos’ e sua fuga
do projeto/prisão do doméstico se sustentam ao longo de dois séculos. Todavia,
a moralidade patriarcal ainda aprisiona muitas de nós.”
Este olhar do século XXI sobre o personagem Flaubert (12 de dezembro de
1821 — 8 de maio de 1880) chega em um momento de justa luta pela igualdade
entre homens e mulheres. Mayra Santos-Febres, assegura que “o desejo de
controlar nossos corpos ainda provoca julgamentos e debates sobre nossos
direitos, incluindo andar na rua sozinha à noite, chegar viva em casa,
controlar nossa capacidade de gestar e a quem amar”.
Uma pessoa chamada Emma Bovary
É aí, na rebeldia precursora de Emma Bovary, que reside parte do segredo
do seu sucesso. O romance foi classificado como obsceno na época e, diz a
escritora porto-riquenha, “lendo-o, muitos pensarão que hoje denota uma
sensibilidade ultrapassada. No entanto, quando penso em Madame Bovary, e
também em A educação sentimental, continuo a me deliciar com a
meticulosidade do autor ao descrever, não os encontros sexuais, mas os detalhes
da intimidade. Emma Bovary pensa, sente e deseja e isso faz dela uma pessoa, ou
seja, capaz de livre arbítrio”.
Foi uma revolução para a época tal mulher criada pela mente de uma
pessoa para o deleite literário da humanidade através de seus sonhos e desejos
particulares.
A sua invenção levou Gustave Flaubert à prisão, “um romance que lhe deu
prestígio e o corrigiu de uma forma elegante durante os cinco anos que durou a
sua escrita. Ele se atreveu com uma protagonista, Emma Bovary, que quebrou
todos os cânones e pagou por seu pecado naquela sociedade de profundas raízes
patriarcais e machistas”, explica a editora Cristina Pineda.
Gustave Flaubert, acrescenta Pineda, “pintou o retrato de uma heroína
corajosa e descreveu a personalidade feminina com profundidade e certeza,
quebrando, também como homem, os estereótipos de que só as mulheres podem
entrar nas profundezas e abismos, sutilezas e sensibilidades femininas”.
Uma criatura nascida da mente de um devoto da arte de escrever dedicado
ao estilo e à busca da melhor linguagem para dar vida a seus personagens e seu
mundo. Isso faz com que, diz Cristina Pineda, “Madame Bovary continue a ser uma
figura inspiradora. Por sua rebeldia, seu desejo de viver, sua paixão, seu
inconformismo, sua força e suas fraquezas. Humana demasiado humana, como diria
Nietzsche. Não deixa ninguém indiferente.”
Esse romance foi realmente o batismo literário de Flaubert. Ele atinge o
ponto alto do romanesco com um tema pouco explorado na época, segundo Antonio
Álvarez de la Rosa, seu tradutor da correspondência em El hilo del collar.
É, diz ele, “o cotidiano das pessoas normais, a mediocridade, mesmo a
estupidez, de um micromundo rural, o mesmo, aliás, que acontece no macromundo de
qualquer tempo e lugar. Também em nosso presente furioso — em que ele nos deixa
furiosos, quero dizer — poderíamos encontrar, por exemplo, o que o romancista
já imaginava em plena gestação daquele romance, assim como predisse em 1º de
setembro de 1852 a Louise Colet, outra de suas três grandes correspondentes: ‘Se
meu livro for bom, fará cócegas em várias feridas femininas. Mais de uma vai
sorrir e se reconhecer. Terei conhecido suas dores, pobres almas escuras,
úmidas de melancolia recluída, como o musgo das paredes de seus quintais
provincianos.’ E Flaubert não era um adivinho, ele simplesmente sabia olhar
intensamente e refletir sua visão do mundo na escrita”.
O poder sobre o leitor
Flaubert era um beneditino leigo na cela de sua escrita, diz Álvarez de la Rosa: “Se o
leitor atual continua a encontrar em sua obra sua própria condição humana — a
mesma de sempre, aliás —, é porque nunca esquece o que é essencial: a busca
incansável da palavra, de uma e não outra palavra para indicar algo, da frase
musical que nos faça surfar nas entrelinhas da prosa e que acabe por nos
iluminar a imagem da realidade contada. Para alcançar essa escrita ideal, ele
teve que se tornar, como ele mesmo disse, um ‘homem-tinteiro’, amarrar-se ao
banco duro da prosa, escrever sem desânimo e corrigir até a exaustão. É assim
que ele diz a sua amiga George Sand, o terceiro pilar feminino de suas grandes
correspondentes: ‘É preciso sentir com firmeza para pensar e pensar para
expressar. Todos os burgueses podem ter muito coração e delicadeza, estar
cheios dos melhores sentimentos e das maiores virtudes sem se converterem em
artistas para isso. Em suma, acredito que a Forma e o Fundo são duas sutilezas,
duas entidades que nunca existem uma sem a outra’ (10 de março de 1876)”.
Um dos admiradores mais dedicados de Flaubert e Madame Bovary é
Mario Vargas Llosa. O Prêmio Nobel peruano não se cansa de elogiar as virtudes
literárias do romance, tanto em sua carpintaria e talento, quanto na capacidade
de enfeitiçá-lo como leitor. No magistral prólogo da edição do selo Tres Hermanas,
Vargas Llosa confessa seu encontro com o romance em sua juventude em Paris e
como surgiu esse amor incondicional:
“Desde as primeiras linhas, o poder persuasivo do livro operou em mim de
forma fulminante, como um feitiço muito poderoso. Fazia anos que nenhum romance
vampirizava minha atenção tão rapidamente, abolindo assim o contorno físico e
me mergulhando tão profundamente em seu assunto. À medida que a tarde avançava,
a noite caía, a aurora despontava, a transferência mágica era mais efetiva, a
substituição do mundo real pelo fictício. Era de manhã — Emma e Léon tinham
acabado de se conhecer em um camarote na Ópera de Rouen — quando, atordoado,
larguei o livro e me preparei para dormir: no sonho difícil da manhã continuavam
existindo, com a veracidade da leitura, a fazenda dos Rouaults, as ruas
lamacentas de Tostes, a figura bem-humorada e estúpida de Charles, o maciço
pedantismo rioplatense de Homais e, sobre essas pessoas e lugares, como uma
imagem prevista em mil sonhos de infância, adivinhada desde o primeiro leituras
adolescentes, o rosto de Emma Bovary. Quando acordei, para voltar a ler, é
impossível que eu não tivesse duas certezas como dois relâmpagos: que já sabia
qual escritor gostaria de ser e que daí até a morte viveria apaixonado por Emma
Bovary. Ela seria para mim, no futuro, como para o Léon Dupuis dos primeiros
tempos, ‘Pamoureuse de tous les romans, l’héroine de tous les drames, le vague
elle de tous les volumes de vers’.”
“A forma é o fundo”
Que escritor está por trás de toda essa magia que transforma a ficção em
algo real no leitor? A correspondência de Flaubert com Louise Colet, diz o
tradutor de El hilo del collar, “nos revela um escritor que quer ser um
escritor, um principiante que, enquanto escreve, avança muito lentamente, para
e não para de se corrigir, consegue concretizar os fundamentos do romance
moderno, os fundamentos sobre os quais, mesmo sem perceber, a literatura
posterior soube nos contar um mundo diferente daquele de Flaubert. In
itinere, enquanto gasta e gasta penas de ganso e preenche e corrige
milhares de páginas, sente, por exemplo, a perfeição de seu estilo, ‘a forma é
o fundo’, a prosa feita poesia, a escolha das palavras na busca de seus efeitos
sinfônicos, as inovações técnicas, a mesma intensidade do foco narrativo nas
pessoas como nos objetos — seu reflexo cinematográfico —, o monólogo interior,
os tempos verbais sempre usados para conseguir novos efeitos, o andamento de
Flaubert que, mais tarde, Joyce ou Proust estenderá quase ao infinito, a
impessoalidade e o ponto de vista do narrador, toda uma série de descobertas
que fazem deste romance uma das pedras angulares da literatura contemporânea”.
A vigência de Madame Bovary em leitores e editores transcende o
romance e sua história, pois é um documento em si, segundo Álvarez de la Rosa:
“Isso nos ajuda a conhecer melhor as mulheres e, portanto, os homens.
Como todos os grandes escritores, Flaubert foi observado através de lentes
históricas, sociológicas, psicológicas e ideológicas, na verdade através de
todo o repertório óptico da crítica literária. Há até quem o classifique como
machista, mas o que importa para a posteridade não é sua misoginia, nem sua
familiaridade com os bordéis, nem sua castidade em relação ao sexo feminino. É
a obra que sobrevive ao escritor”.
A prova, acrescenta o tradutor, é que, embora o leitor não saiba como
foi a vida de Flaubert, “este romance vai continuar a esclarecer quem somos
como seres humanos. Para um
gênio como ele, que devorava a vida e a vomitava na criação, a realidade é apenas
um trampolim para a imaginação. Os cemitérios estão cheios de homens que gostam
de putas a depreciadores de mulheres e, o que é pior, talvez também nossas
ruas. No entanto, são poucos os personagens literários femininos como Emma
Bovary, ou seja, seres de carne, radiografias da nossa condição humana, a mesma
de sempre, ainda que pareça o contrário”.
E é por tudo isto e muito mais que continua a ser lido e admirado,
segundo Álvarez de la Rosa, e porque é, insiste, “uma das grandes análises da
ilusão necessária que todos carregamos guardada na mochila dos nossos
pensamentos, a dificuldade de sonhar com outra vida, com a condição de não
substituir o sonho pelo real, a luta para que ambos coexistam sem produzir mais
frustrações do que o normal. Esse é o núcleo, acredito, da história contada em
um romance cuja realidade ficcional é mais real do que a própria vida.”
Um romance imortal
É nesse mundo privado tornado público no romance através do que Emma
Bovary faz e pensa que reside outra parte do segredo do seu sucesso. Mayra
Santos-Febres assegura que “o desejo de uma mulher, seja civil, sexual,
político, ecológico ou econômico, continua sendo classificado como obsceno. Há
outros autores que hoje se apropriam dessa luta como um truque literário
mercantil. A Flaubert, por outro lado, muito lhe custou aderir à nossa causa.
Por isso, ainda reivindico Madame Bovary como irmã.”
E Mario Vargas Llosa não deixa de admirar e amar esse romance e seu
protagonista quando confessa no prólogo, depois de relatar sua descoberta do
livro e o espanto que lhe causou, quando escreve no rastro de Emma:
“E assim chego ao fim da minha história de amor. É triste e grandioso,
como qualquer história romântica respeitável, aquelas que Emma gostou e que eu
gosto. É triste porque essa longa e fiel paixão nasceu condenada, pela
miserável razão de existir, a fluir em uma direção, a ser um pedido sem
resposta, e porque a última imagem da história imita a primeira: o amante,
sozinho, o coração acelerado de desejo, olhos fixos no livro que segurava com
ternura em suas mãos, e em sua mente, como um ratinho com dentes carniceiros agachado
numa caverna profunda, a terrível certeza de que a mais terrena das mulheres
nunca deixará seu recinto sutilmente para ir ao compromisso. Mas o amante não
desiste, porque esta senhora cumpriu a sua vida de um modo sem dúvida menos
glorioso, mas talvez mais duradouro, do que o permitido pelo amor partilhado,
onde, como Emma aprende, sempre se está exposto a verificar que tudo é
transitório, e porque sua senhora, embora nunca tenha tomado corpo nem estado
em seus braços, continuará nascendo para ele numa perdida fazenda do país de
Caux e repetindo sua aventura quantas vezes se peça, com maravilhosa
docilidade, sem mostrar sinais de cansaço ou tédio”.
* Este texto é a tradução
livre de “Cómo Flaubert convirtió a ‘Madame Bovary’ en una persona real y otros
secretos de su éxito”, publicado aqui, em WMagazín.
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