As pontes possíveis. Identidades à deriva em “De amor e trevas”, de Amós Oz
Por André Cupone Gatti
Amós Oz. Foto: Leemage |
I.
Quando o escritor israelense Amós
Oz publicou, em 2002, o seu romance De amor e trevas, já era um autor de
renome, premiado e com uma obra sólida. A dimensão testemunhal desse livro, no
entanto, bem como a sua trama multívoca e bem tecida entre passado e presente,
memória e invenção, História e subjetividade, fez dele uma espécie de súmula ou
síntese do universo que permeia toda a obra de Oz. Romance que se vai
desfolhando em temas variados e complementares, De amor e trevas trança,
propositadamente, os traumas de um menino aos traumas de uma nação
recém-nascida, as frustrações e alegrias de ambos, e, acima de tudo, as suas
profundas contradições. O romancista nos mostra quão imensuráveis são as
esferas internas e externas da existência, e como elas se continuam e se
confundem.
Não só os anos 1940 e 1950 em
Eretz-Israel, mas toda uma sorte de paisagens do leste europeu dos séculos XIX
e XX são reconstruídas no romance, apontando as explícitas divergências entre o
universo da Diáspora e aquele que tomava forma no Oriente Médio. Essas
divergências, que, de modo geral, são as tensões entre israelidade e judaísmo,
são fundamentais para se compreender a natureza suspensa daqueles judeus
europeus recém-chegados a Israel, que tinham em mente um outro lugar de chegada,
uma Israel imaginada, gestada em terras estrangeiras, de certa forma uma Israel
utópica. “Por que estou indo para Eretz-Israel? Só para viver com judeus?” foi
a pergunta que se fez a personagem tia Sônia, quando o navio em que estava se
aproximava de Tel Aviv. Incertezas como essa eram geradas, como já se disse,
pelo choque entre o imaginário judaico europeu e a realidade concreta de uma
nação nascente, de uma nação que procurava uma identidade própria, não
europeia, ou melhor, anti-europeia. A partir desse primeiro e principal
desacordo, Amós Oz irá percorrer os meandros de sua memória e os labirintos dos
acontecimentos históricos, traçando pontes entre uma coisa e outra, mostrando a
nós a fragilidade das coisas ditas irreconciliáveis. A manipulação, no romance,
dessas realidades conflitantes, seja no âmbito subjetivo, histórico ou
literário/memorialístico, é o que esse texto pretende investigar com alguma
atenção e curiosidade.
II.
Lembrar, recordar, é não só
religar raízes, surpreender-se como um elo numa corrente de elos, mas também,
quando o recordar é contínuo e mediado pelo olhar crítico, uma maneira de
saldar as dívidas com a própria história, e, às vezes, com a História. Amós Oz,
em De amor e trevas, nos entrega justamente isso, ou seja, um romance
memorialístico que restaura, sem medo, cada contradição, cada dor e cada
alegria de um passado particular e histórico, construindo, desse modo, um texto
cheio de vias opostas e dispostas que acabam por formar um todo coerente.
A memória, no romance, aproxima os
opostos, relativiza as certezas e, de certo modo, desfaz ou atenua as
separações profundas, em suma, constrói pontes sobre todo tipo de fronteira,
seja ela tênue ou abismal. Para tanto, reproduz-se na narrativa, formalmente,
aspectos tão próprios da memória como a fragmentariedade, as intermitências, os
desvios e os imprevistos.
O suicídio da mãe de Amós, por
exemplo, que é o grande veio emocional e traumático do livro, é lembrado
espaçadamente, aos soluços, repetido e variado por todo o romance. Outros temas
também surgem e desaparecem no contínuo narrativo que, apesar de possuir uma
coerência evolutiva, não segue rigidamente um imperativo linear e cronológico.
Os anos passam, retrocedem,
repetem-se, saltam. Essas flutuações, ou oscilações, estão sempre permeadas
pela invenção, por um poder criativo que reorganiza o material da realidade a
partir de uma lógica alheia à vida empírica: a lógica da arte. “Em todas essas
reconstruções, meu trabalho se parece um pouco com o de quem tenta reconstruir
alguma coisa com pedras de demolição escavadas, restos de alguma construção
que, ela também, foi feita por ele próprio com pedras de demolição” (OZ, 2020,
p. 348) O registro da memória, diz o autor em outras palavras, é só uma sombra
da sombra de um fato, uma realidade outra, quase estrangeira, consciente ou
inconscientemente mediada pela capacidade criativa.
A rememoração crítica de um certo
passado traz à luz elementos esquecidos, abandonados ou rejeitados que, se
reinseridos no círculo das reflexões, permitem um vislumbre novo e
significativo não só das coisas vividas, mas principalmente das ambiguidades
interiores e circundantes. O grande trauma que representa o suicídio de sua
mãe, e todos os outros conflitos da infância e juventude de Amós, parecem ter
sido soterrados por uma vontade de ser outro, de não ser herdeiro da dor do
exílio, da nostalgia da Europa, do judaísmo europeu, uma vontade de esquecer
violentamente tudo aquilo que não diz respeito à identidade israelense.
o De amor e trevas, porém, é
um acerto de contas, uma espécie de luto por tudo aquilo que se perdeu, por um
sentimento até então latente e mudo. É a ressignificação do trauma, bem como a
ressignificação daquela “identidade israelense”, tanto no nível subjetivo
quanto histórico. Construir, a partir do trauma, um novo significado para a
própria história é uma façanha que Amós Klausner conseguiu realizar (pelo menos
na dimensão narrativa), mas não os seus pais, tios e avós.
O abandono de um mundo alicerçado
na grande cultura europeia e na longeva tradição judaica do leste europeu, um
mundo que se arruinava mais a cada dia, não pôde ser nunca totalmente superado
por aqueles que imigraram para Eretz-Israel. Assim como os ideais israelenses
nunca foram completamente assimilados por essas pessoas. Oz deixa muito clara
essa ideia quando, ao falar dos pais, diz: “Meus pais não tinham um lugar
reservado nessa escala, que ia dos pioneiros aos adeptos dos tzures: um
de seus pés se assentava na comunidade organizada (eram membros do Kupat Cholim
e faziam doações para organizações laicas), e o outro pé — no ar.” (OZ, 2020, p.
21)
Como manter o equilíbrio
identitário, quando um pé não encontra mais apoio? Apesar de não estarem mais
na Europa, era impossível para os imigrantes livrarem-se dela, ela vinha com
eles dentro das malas, na memória, nas palavras, nos hábitos, nos objetos, escondida
nas ideias e nos afetos. A Europa chegava a Israel, sem, no entanto, encontrar
lugar. Nada mais sintomático dessa inadequação, por exemplo, que a obsessão de
vovó Shlomit em relação aos micróbios do Oriente Médio, que a fez jogar no lixo
um cãozinho de pelúcia vindo de Odessa, um cãozinho estrangeiro que não
suportou a hostilidade de Israel às bagagens judaico-europeias; ou as histórias
cheias de castelos e magias, histórias com desfechos insólitos, contadas por
Fânia, e que espelhavam, em toda a sua irrealidade, a impossibilidade dolorosa
de sua adaptação à vida israelense; ou, por fim, a luta entre a terra dura do
quintal e os “dedos de intelectual” de Árie Klausner, da qual, no fim das
contas, sai vencedora a “terra primeva do Gênesis”. A esses traumas, que não
deixam de ser uma herança para o pequeno Amós, juntam-se as feridas da nação
prestes a nascer: a opressão britânica, os conflitos para a criação de Israel,
a guerra árabe-israelense etc. Dores próprias, familiares e sociais, trançadas
e revistas sob olhar crítico de Amós Oz, que trata de curá-las, ou pelo menos
de entendê-las melhor, através da palavra.
A grande História, vista com olhos
francos, mostra-se tão incerta e ambígua quanto as histórias menores,
clandestinas, que formam a vida cotidiana. Rememorando Begin ou Ben Gurion, Oz
não nos entrega um retrato absoluto deles, mas tão somente um esboço que pode
ser completado de muitas maneiras. Faz o mesmo em relação aos eventos
históricos. Ele mesmo confessa: “as coisas são mais complexas do que
imaginamos”.
Os fatos da História seriam como
as brincadeiras do menino Amós, aquelas que mimetizavam em miniatura os
conflitos armados em Israel, brincadeiras sujeitas a uma infinita sorte de
arranjos segundo o temperamento do jogo e do jogador. Ao se lembrar desses
fatos, dos tempos de construção de um país, o autor se depara com muito mais
perguntas que respostas, e são dessas perguntas que nasce o romance.
Em De amor e trevas quase
tudo é pautado pelas circunstâncias históricas (as dores dos pais,
transmissíveis ao menino, o desfecho trágico da mãe, as descobertas e decepções
da infância etc.), exceto, talvez, o deserto: “e lá estava o final da rua, o
final da cidade e o final do mundo: dali em diante, só escarpas vazias de
morros salpicados de pedras, a densa escuridão, [...] aldeias de pedra
açoitadas pela chuva e pelas trevas [...]” (OZ, 2020, p. 343)
III.
Um escritor pouco talentoso
certamente não conseguiria realizar a tarefa bastante delicada de abordar uma
realidade em suas múltiplas expressões. Mas Amós Oz não é pouco talentoso e
consegue, faz isso graças a sua escrita muito clara e fluida, uma escrita que
cria pontes entre questões conflitantes, como o trauma e o entusiasmo, como a
subjetividade e a História, como, afinal, o amor e as trevas; uma escrita que
estende-se sem medo por um terreno hostil, como aquele fio telefônico que
ligava Jerusalém a Tel Aviv, “aquele fio que serpenteava em curvas sinuosas
pelo deserto, por terrenos pedregosos, por vales e montanhas, eu o considerava
um grande milagre.” (OZ, 2020, p. 16) Nada tão parecido com a escrita de Oz
como esse fio, forte e delicado, que vai acompanhando as irregularidades do
caminho, e que liga duas cidades de natureza oposta.
Romance sobre as contradições
formadoras de um menino e de uma nação, De amor e trevas é muitas vezes
considerado um livro de não-ficção, o que, ao meu ver, representa um
entendimento superficial, para não dizer preguiçoso, da obra. Amós Oz une à voz
testemunhal a narração do grande romance oitocentista, e à essa, as liberdades
temporal e temática próprias da literatura do século XX. No centro de De
amor e trevas está a invenção, o poder criativo e reflexivo da palavra,
além de certa simpatia pela ambiguidade, traço que o distancia em muito do
registro meramente documental e o aproxima da obra de um outro escritor
israelense, talvez o maior daquele país no século XX, Sch. Y. Agnon. Por essas
e outras características, o romance de Amós Oz é passível de muitas
interpretações, é multívoco como um palimpsesto, é cheio de histórias dentro de
histórias, é romance um tanto psicológico e um outro tanto histórico, mas é,
afinal, romance, calcado no princípio criativo do texto e no poder re-criativo
da memória. O narrador diz, a certa altura: “ainda não tenho ideia de para onde
esta história quer andar.” (OZ, 2020, p. 354) Eis uma pequena prova de que o
livro está bem além de ser uma obra de não-ficção.
Finalmente, vale ressaltar que De
amor e trevas é uma tentativa, não de desfazer contradições, mas de tornar claro
que ideias, sentimentos e visões de mundo contrárias, podem coexistir sem
atritos numa realidade una; que a dor ou a dúvida não devem ser motivos de
negação de um fato, pois são justamente elas que o tornam significativo; que a
palavra e a memória não têm muita serventia se não constroem pontes entre as
coisas do mundo, por mais repletas de amor ou de trevas que elas possam ser.
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De amor e trevas, Amós Oz
Milton Lando (trad.)
Companhia das Letras, 2020, 624p.
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