Agustina Bessa-Luís, a inteligência do incomensurável
Por Silvina Rodrigues Lopes*
Agustina Bessa-Luís. Foto: Egidio Santos. |
Agustina Bessa-Luís nasceu em Vila Meã,
Amarante, em 15 de outubro de 1922, e faleceu no Porto em 2019. Publicou o seu
primeiro livro, Mundo Fechado, em 1948, tendo escrito e publicado posteriormente
alguns contos extraordinários, várias dezenas de magníficos romances, alguns
dos mais interessantes textos sobre literatura e diversas crónicas, reunidos
respetivamente em Contemplação Carinhosa da Angústia e A Alegria do Mundo.
Essa vasta e intensa obra compõe um movimento transformador da literatura, que
se não prende a fórmulas ou modelos e que não deixa de inventar o passado, devolvendo-o
à dispersão, que é o seu modo de tocar o presente. Na verdade, não há em
Agustina uma tradição da história do romance ou das ideias em que a sua escrita
se integre. Percebe-se que o que escreve é diálogo com um mar sem fim de
leituras — em que o mais antigo não desaparece sob a exigência da atenção à
atualidade —, onde se encontram quer referências a autores tão diversos como Dostoievski
e Tolstoi, quer o entusiasmo trazido pela assunção da escrita enquanto acontecimento
em grandes romancistas do século XX (refira-se Virgínia Woolf, Proust, Kafka, Musil
e Herman Broch).
A apresentação que se segue organiza-se segundo
algumas linhas que acompanham aspectos da obra de Agustina, propondo-se dar especial
atenção ao facto de ela se subtrair a qualquer tipo de propósito unificador,
criando desse modo condições para a coexistência de estilos e registos
suscitadores de interrogações e desacordos irredutíveis. Assim, seguem-se, em traços
largos, alguns aspectos que constituem anotações das minhas leituras dessa
obra, nunca fechada sobre si, mas sempre em apelo do outro e da não-fixação.
A afirmação da inseparabilidade pensamento-acontecimento
está implícita nos escritos de Agustina, e nela confluem não só as suas
leituras literárias, mas ainda a sua investigação intelectual — que a aproximou
de pensadores não-sistemáticos como Kierkegaard, Nietzsche, Walter Benjamin, Heidegger
e Wittgenstein, referidos em livros seus — e a sua experiência que, indissociável
das leituras, faz prevalecer a observação das relações humanas e a sua
inscrição num mundo de que recebem, e a que dão, sentido, impedindo que este
possa ser considerado como simples produto de um determinismo. Só há
acontecimento porque algo ocorre no tempo, sob condição da interpretação, isto
é, indissociável da linguagem que o diz numa fala, uma escrita, que se não
separa da sua enunciação. Sempre repartido entre o que passou e o que vem, o dizer
é verdade e ficção, indissociáveis — acontecimento que se não circunscreve, mas
participa da sucessão infinita de discursos, que, sem excluírem a pretensão de
delimitação, se acercam da sua ilimitação. A vocação testemunhal do romancista
é, como podemos ler na seguinte passagem de um texto de Agustina, atravessada de
impossibilidade e é daí que arranca:
“Eu sou uma escritora, testemunha sensível dos
costumes, circunstâncias e discursos da minha época. A minha tarefa é compreendê-los,
tentando arrancá-los à circularidade das verdades que a angústia e o tédio autorizam
num campo medido entre a vida e a morte. Para além da duração vegetativa e do
caminho aberto às transformações que cada profissão admite, há alguma coisa
mais”.1
A atenção aos costumes de uma época, aos seus discursos,
está em permanente ligação com o incompreendido dela, que não corresponde
àquilo que vulgarmente se entende por grandes valores e grandes causas, mas sim
ao imperceptível da existência do comum dos mortais, a sua disponibilidade para
dirigir-se ao outro para além da consciência e da sua vinculação à eficácia.
Há, assim, nos romances de Agustina uma imensa atenção ao conflito, íntimo e
inexplicável, gerador do novo essencial à multiplicação de diferenças e à sua
não fossilização em figuras de vencedor e vencido.
Nos romances de Agustina, o acontecimento
assinala-se por algo de súbito e ao mesmo tempo pelo estabelecimento de uma
relação de contrários em que estes se não excluem mutuamente, mas se contaminam
de modo a provocar a retirada de qualquer hipótese de síntese e/ou superação.
Os contrários fazem parte da exposição de situações e afecções romanescas, sendo
no entanto, na sua inseparabilidade, factores de multiplicação
de hipóteses, não permitindo que uma
interpretação se estabilize, pelo contrário, impedindo que uma última palavra, uma
palavra de autoridade, se venha colocar. Podemos ver nessa exploração do
contraditório uma herança da cultura judaica, à qual Agustina faz várias
referências ao longo da sua obra, que começam com a leitura da Bíblia, subjacente
a vários episódios romanescos, nomeadamente o Livro de Job, de onde provém a
epígrafe de O Manto, através da qual se manifesta o desejo de expor
razões, de não deixar o homem mudo perante o sofrimento. A capacidade de
contrariar o estabelecido faz parte do acontecimento que a escrita do romance
é, e que é apresentada no prefácio de Ternos Guerreiros como dizer da
mudança. Dizer a mudança não é apresentar algo diferente, mas expor as descrições,
as imagens e as razões ao não fixável — afecções e pensamentos que irrompem da
escrita, que são a sua experiência a que não se acede senão em perda, em fuga à
consciência que apenas dá conta do ”fazer um”, daquilo que constitui o indivíduo
como sujeito em relação com um objecto. Por outras palavras, os possíveis da
escrita não são probabilidades que se seguem à perscrutação dos factos. São o próprio
abalar dos factos por aquilo que é novo, e que em termos narrativos se dá como impossibilidade
do Um — da história linear, acabada — e como flutuação interrogante, mistura de
linguagens que provoca a dúvida e a reflexão.
2. Escrever contra a “burocracia do pensamento”
Desde o seu primeiro romance, Agustina agencia
na sua escrita um espaço de combate ao senso comum, essa força, que na sua
função de cimentação social, atenta contra a solidão profunda dos indivíduos,
imprescindível ao viver-em-comum. Trata-se de, contra os factores de
homogeneização que tendem a dominar a vida moderna, afirmar a heterogeneidade
da vida, e sobretudo da vida dos humanos, que, para além de se auto contemplar
e contemplar a restante vida, tem sobre esta um poder de intervenção maravilhoso
e assustador. Tendo o desenvolvimento da técnica e do capitalismo vindo a
permitir a substituição dos mecanismos que visavam o controle de um grande
número de pessoas por outras, no interior de sistemas hierárquicos rígidos, a
escritora não se limita a descrever a nova situação, nem a exibir a nostalgia
de uma situação onde supostamente o comum dos mortais, quando não morria de
fome e maus-tratos, tinha direito à imaginação e à criatividade. Na verdade, a ficção
de situações em que a cultura pré-moderna é dominante mostra como nela existia algo
de profundamente criador, a par do terror que a sustentava (dê-se como exemplo
o romance A Sibila). Nunca, no entanto, a criatividade e/ou a disponibilidade
para o outro é justificada pelo meio (social ou físico). Toda a pessoa possui a
condição de excepção ao seu meio, pelo que a perfectibilidade não é excluída, a
não ser que a intervenção sobre o meio vá tão longe que consiga apagar a sua
heterogeneidade e se transforme em comando absoluto. A colocação nesse romance
(presente também em muitos outros da autora, nos quais persiste a força de costumes
muito antigos e inapropriados ao espírito da época) de uma situação de distância
em relação a tradições da vivência rural permite, ao mesmo tempo, um olhar crítico
sobre o obscurantismo que as constituía e um aviso perante a vertigem da
mudança que se anuncia: a razão única, que não deixa respostas em aberto, é a
forma mais eficaz do totalitarismo. Para lhe fazer face, para possibilitar o
futuro, o equilíbrio e a ponderação são indispensáveis — eles exigem o tempo de
suspensão da acção, tempo da atenção, do pensamento.
A personagem que em A Sibila anuncia que
o futuro está no limiar de grandes transformações do mundo. Como o diminutivo
do seu nome o sugere, Germa, é o traço de uma hipótese de oscilação —
entre o germe de uma situação nova, porventura melhor porque mais
consciente da importância de dar e procurar razões, e a germânia que,
como índice, ou memória, de uma vontade de dominação pela exigência máxima de pureza
e redução ao mesmo, ressoa naqueles mesmos que a combateram, atacados também
eles pelo mal do idêntico, pela negação do conflito vivificador, que sustenta
qualquer pretensão totalitária. A leitura desse romance de Agustina suscita- nos
então a pergunta: não seria o ponto extremo do horror atingido na segunda
guerra mundial imanente a forças de homogeneização (a redução da humanidade a
números manipuláveis, capazes de, pela neutralização da capacidade de
amor-ódio, produzir a automatização generalizada), susceptíveis de expansão
mundial?
Nunca aos romances de Agustina escaparam os grandes
problemas e debates sobre o estado do mundo, nomeadamente sobre a técnica e
sobre as “libertações” que dela pareciam advir e que poderiam não ser senão a
liberdade de tudo reduzir à escala da compra e venda, ou do cálculo sem resto.
No entanto, a hipótese de um domínio da técnica sobre o agir humano não é neles
colocada directamente, uma vez que o perigo da técnica aí aparece como o da
redução da linguagem a idioma único e unívoco. O que importa ao romance
salvaguardar é a multiplicação das vozes, dos idiomas, os do passado e os que vêm:
“Eis Germa que, embalando-se na velha rocking-chair,
pensa e pressente, sabendo- se actual relicário desse terrível, extenuante,
legado de aspiração humana. Nas suas veias, estão todos os infinitos estados do
passado, no seu cérebro condensaram-se muitas experiências que não viveu, as negações
e afirmações ocupam vastos espaços da sua alma”2
Ao longo da vasta obra de Agustina Bessa-Luís
não encontramos nunca o pensamento de uma irremediável decadência da
humanidade. Quer os romances se apliquem na perscrutação das relações humanas no
meio rural, quer nas do meio urbano e intelectual, encontramos sempre um
narrador empenhado em manter a expectativa no futuro e em não dar por superior
qualquer espaço ou lugar cultural, esboçando-se quase sempre alternativas que
põem em jogo aspectos primordiais. Como seja: ou o abandono à euforia cega da
desagregação de costumes, e consequente florescimento da identificação entre
felicidade e prazer, ou a alteração das relações humanas onde o homem e a mulher
deixem de colocar-se numa simetria antagónica. Alguns dos romances de Agustina publicados
depois do 25 Abril de 1974 referem-se explicitamente a transformações sociais ocorridas
em Portugal e que o aproximaram do restante “mundo ocidental”. A possibilidade
de instauração de um novo modo de relação com a autoridade é aí apresentada em
continuidade com as advertências dos romances anteriores: recusa da abdicação
dos gestos diferenciadores em nome de generalizações e da pretensão de tutelar
o mistério pelo conhecimento. Porém, há advertências que se ligam imediatamente
à nova situação. Como esta: “a insensibilidade é o traje dos que não querem
correr riscos, e usam-no os que se situam do lado das fictícias civilizações: o
espaço da repetição contra a incerteza das inovações”3. Note-se que
a romancista escreverá posteriormente uma trilogia com o título O Princípio
da Incerteza. Podemos ler aí a fidelidade da sua obra ao possível que vem
fora das probabilidades.
Um dos procedimentos dos romances de Agustina,
que em larga medida expõem o próprio mecanismo de ruptura com a burocracia do
pensamento, é a ironia. Esta manifesta-se, à maneira romântica, através de intervenções
que exploram a contradição e a sua não resolubilidade. No entanto, não ignora a
crítica kierkegaardiana do conceito, que, como tal abala a formação de certezas
através da multiplicação de perspectivas, mas sem anular a pregnância das decisões
que subitamente interrompem a tendência para a indiferenciação e põem a claro a
insuficiência das razões e dos círculos interpretativos.
Também o recurso frequente ao aforismo em Agustina
faz parte do seu “método” de escrita “contra a burocracia do pensamento”,
prevenindo a recaída no caos a que uma entrega incondicional à abstracção
poderia conduzir. Escreve a autora: “o meu pensamento estende-se de uma maneira
caótica e para o deter recorro ao aforismo. Eu dou muita importância aos aforismos:
são como uma fuga ao pensamento”4. O aforismo funciona no romance de
Agustina como procedimento que organiza a síntese disjuntiva entre inteligência
e paixão: por um lado põe fim, delimita, um raciocínio; por outro, ao interrompê-lo
pelo enquistamento de uma fórmula sempre inexacta, sublinha a sua ausência de
limite. Trata-se de uma intervenção súbita da inteligência das coisas, da sua
assinatura indecifrável, no curso do pensamento. Daí o efeito de hesitação
produzido pelo aforismo: entre a generalização e a perda de significação, entre
a explicação e o inexplicável.
Ironia e aforismo encontram-se numa certa
ousadia das hipóteses explicativas, que são sempre objecto de derrisão, sem por
isso deixarem de ser hipóteses, armadilhas preparadas para escapar à redução de
tudo a conhecimento ou a sentimentos congelados. Trata-se de “pairar entre o
erro e a certeza, concedendo a ambos armas e condições”5. A multiplicação
de hipóteses é sem garantia, ela não decorre de um conjunto de ideias
inabaláveis, nem é sustentada por uma autoridade autoral que se arrogue possuir
o privilégio de um contacto directo com a verdade.
Compreender uma paixão é situar a sua
participação de uma forma de vida e, ao mesmo tempo, mostrar as variações que
ela suporta ou que a abalam. Trata-se de, através da construção de situações, proceder
à desmitificação que sustenta o automatismo dos hábitos através da pretensão de
naturalidade dos mesmos. Nesse procedimento, a construção de situações e a
reflexão contaminam-se. O romance torna-se então um laboratório das paixões onde
se analisam os fenómenos de imitação como substituições do desejo, como seu
entravamento pelos mecanismos de idolatria do poder, que tudo corrompem.
Digamos que na escrita de Agustina o desejo que sustenta o amor, e por
conseguinte o mundo, é o impulso primeiro da escrita, aquele que a conduz aos
espaços em que a fala se interrompe, se dá, sem provas, a outros, e assim
persiste, fora de qualquer ganho ou glória. Porque o desejo se não confunde com
prazer ou satisfação de apetites, dele não há histórias, embora seja ele que
faz precipitar as histórias, que as dispersa pela força da memória do amor, a
força que sustenta a vida fazendo dela mais do que a perseverança no ser.
A figura do jogador e a do artista e pensador
são talvez nos romances de Agustina aquelas que mais se afastam do desejo hipercodificado
em sistemas mediadores. Trata-se, no primeiro caso, da afirmação do risco como desvio
ao comando dos outros, e no segundo, da capacidade de esvaziamento da
personalidade indispensável ao acesso a uma certa maneira de ser disponível
para ser afectado. A figura da escritora participa da figura do jogador, não a
daquele que leva o seu cálculo até ao cheque mate, mas a daquele que, sem
descurar nenhum pormenor, frui o momento do risco como vertigem de hipóteses.
Por outro lado, afasta-se dessa figura nas descrições em que o tempo da acção
se suspende por completo e já não é de risco que se trata, mas de abandono ao
exterior, ao puro sentido do ilimitado. A dimensão poética dos romances corresponde
neles a paixões que se constituem como devires em uníssono com um exterior
encantado pela voz que se vai desfazendo do dizer “eu” e deslizando para o círculo
do insignificante. Em Agustina, atenção e imaginação são dois modos por
excelência de aceder ao silêncio, que não é a impossibilidade de falar, mas a
de forçar a fala a alterações que a contrariam, sem a anular numa contradição. Desfazer-se
de um “eu” construído por ficções que contam por um a multiplicidade que
constitui o (in)divíduo é tanto uma tarefa lírica quanto um rapto da
imaginação, da capacidade de ficcionar sem limites e sem propor as ficções como
verdades, mas sim como hipóteses. Daí que o enredo e a intriga de um romance de
Agustina se não cinjam à investigação em estilo policial, nem pretendam aplicar
qualquer método de revelação do oculto. A maneira de desvairar os arquivos
históricos consolidados em tradições interpretativas assume muitas vezes uma imaginação
excessiva, que não teme o inverosímil, pela qual o que prevalece é a fertilidade
invisível do que aconteceu, o irrealizado enquanto potencial inapresentável. Essa
capacidade de escapar à verosimilhança que coloca a realidade como facto consumado
suporta grande parte da relação dos romances de Agustina com personagens e épocas
históricas:
“A História é uma ficção controlada. A verdade
é coisa muito diferente e jaz encoberta debaixo dos véus da razão prática e da férrea
mão da angústia humana. Investigar a História ou os céus obscuros não se compadece
com susceptibilidades. Que temos nós a perder?”6
É interessante notar que aquele que pensa o passado
ou o infinito se coloca a pergunta “Que temos nós a perder?”, desviando-se assim
da História para a actualidade e mostrando que a investigação daquela não pode
ser separada desta. O recurso à História faz parte de um método de
distanciação, de crítica, que visa o presente sob a forma de interrogação, que
supõe que se deseje sem fim, que se não capture o desejo em vias únicas
obrigatórias, que são as da imitação estéril. Para tal, “é preciso criar o
pacto da dispersão”, afirmar a multiplicidade de experiências e de leituras,
disponibilizar-se para o imprevisível. A disponibilidade para a mudança é o próprio
movimento do pensamento, da escrita, é ela que reúne a atenção à História, à actualidade
e ao insólito, produzindo a intensidade do viver (n) o impossível presente:
“Sentava-se ao lado das camas dos estivadores
inutilizados pelos guindastes e trinta anos de carregos de cimento; eles
contavam-lhe com uma fé sarcástica, com um quê de doce e cheio de afirmação, a
sua pobre história carregada de esmeros de oportunidades que não foram jamais
logradas. E, às vezes, um grito duma criança num berço, uma garrafa que se partia,
erguia nos ares um esplendor dramático; toda a vida ficava ali condensada, como
se desses cacos ou dessa voz infantil partissem todas as centelhas capazes de
incendiar um império. Compreendia então a intransigência do momentâneo, a força
insólita das pequenas coisas e a importância que elas adquirem na culminância
da sua realidade”7.
A escuta do passado é escrita do desejo que
vem dos confins e que, a cada momento, pela persistência do dramático — o ser
sempre dividido na dupla pensamento-afecção —, pode fazer saltar a continuidade
do homem para fora das cadeias que sempre parecem aprisioná-lo, e que,
inexplicavelmente, a esperança mantém em aberto.
4. Subjectivação, conversação: o retirar-se
ao império da personalidade
Uma das características assinaláveis dos romances
de Agustina consiste na permanente preocupação do desfazer de uma figura
psicológica e moral do escritor. O que deste persiste através da análise, da
interrogação e sobretudo do testemunho sensível concretizado na construção de
situações, é um movimento impessoal, uma deslocação para o espaço em que o
comum e o estrangeiro absoluto se identificam. A figura do sujeito identificado
com a consciência é permanentemente questionada e afastada, tal como o seu
complemento, a concepção relativista-objectivista do mundo. Só nas construções humanas
e nos pressentimentos que elas abrigam se inscreve aquilo que as desloca para além
da vulgaridade e uniformidade das épocas. A “realidade admirável do que é
comum” é apenas pressentida no movimento de retirar-se do mecanismo geral da
cópia, condição para sair dos fluxos automáticos de forças que reduzem a
linguagem a códigos e a existência humana à simples preservação de si, isto é,
à simples subsistência. Daí que a figura do escritor tenha o seu duplo em todos
os momentos-movimentos das personagens que se retiram ao império da personalidade
para serem sobretudo uma responsabilidade: a de não se furtarem à condição
humana — a de responder às exigências de verdade e justiça —, na qual os possíveis
se não apresentam nunca fora de escolhas decisivas e precárias:
“Toda a qualidade criativa duma pessoa depende
da sua energia em abandonar a cumplicidade com os demais (…) não ser um rico nem
um pobre, um homem, uma mulher, um cidadão de tal cidade, um passageiro de tal barco,
um conterrâneo, um colega, um irmão”8
A distância crítica que faz parte do movimento
do romance é também um elemento de subjectivação enquanto permanente exigência de
decisão, inseparável do tomar a palavra, do encontro nesta de virtualidades infinitas,
segredos inconfessáveis que as pessoas perseguem-constroem através de ficções que
impregnam os seus mínimos gestos, tal como impregnam o fazer artístico.
Tomar a palavra é dirigir-se ao outro, fazer
dele confidente do segredo que se desconhece e aceitar os seus segredos como
sendo o que lhe é mais próprio e que como tal impede a sua objectivação. A importância
do confidente em alguns romances de Agustina vai assim a par da análise das
contradições da confissão, na medida em que esta se confunde com mecanismos persecutórios,
a partir da vontade de identificação do segredo indecifrável, exposto em palavras
que se oferecem à decifração. A hipótese de que tudo se converta em algo
declarável aparece pois como uma das pestes modernas, a de um certo
individualismo que corresponde à perda de relação com o segredo que é a vida dos
humanos enquanto potência criadora de enigmas inesgotáveis — enigmas que não
evoluem para a resolução, mas se transformam na singularidade das falas, das
narrações, dos textos. A subjectivação não é por conseguinte a perda de si numa
realidade intersubjectiva, mas o movimento que vai para além do jogo de
espelhos e da sua esterilidade reprodutiva.
* Silvina Rodrigues Lopes é autora de diversos livros, entre eles, dois
publicados no Brasil pelas edições Chão da Feira: Literatura, defesa do atrito e A anomalia poética. Sobre a obra de Agustina Bessa-Luís,
escreveu o indispensável Agustina Bessa Luís: as hipóteses do romance. A texto aqui publicado foi cedido pela autora.
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