Prefácio a Santuário, de W. Faulkner¹
Por André Malraux
William Faulkner e André Malraux. Foto: Coleção de Henriette Colin. |
Faulkner sabe muito bem que os
detetives não existem; que a polícia não depende nem da psicologia, nem da
perspicácia, mas da delação; e que não são Moustachu nem Tapinois2,
modestos pensadores do cais de Orfèvres, que prendem o assassino em fuga, mas a
polícia de guarnição; pois basta ler as memórias dos chefes de polícia para ver
que a iluminação psicológica não é o forte de tais pessoas, e que uma “boa
polícia” é uma polícia que soube melhor que outra organizar seus informantes.
Faulkner sabe também que o gangster é antes de tudo um vendedor de álcool. Santuário
é portanto um romance de atmosfera policialesca sem policiais, de gangue com
gangsters imundos, às vezes covardes, impotentes. Mas o autor obtém a partir disso uma
selvageria justificada pelo meio, e a possibilidade de fazer aceitar, sem perda
do mínimo de verossimilhança, o estupro, o linchamento, o assassinato, as
formas de violência que a intriga fará pesar sobre o livro todo.
É sem dúvida um erro ver na
intriga, na busca do criminoso, o essencial do romance policial. Limitada a ela
mesma, a intriga seria da ordem do jogo de xadrez — artisticamente nula. A sua
importância está em ser ela o meio mais eficaz de traduzir um fato ético ou
poético em toda sua intensidade. Ela vale por aquilo que multiplica.
O que ela multiplica aqui? Um
mundo desigual, poderoso, selvagemente pessoal, às vezes não desprovido de
vulgaridade. Mundo em que o homem só existe esmagado. Não há um “homem” de
Faulkner, nem valores, nem mesmo psicologia, apesar dos monólogos interiores de
seus primeiros livros. Mas há um Destino traçado, único, atrás de todos esses
seres diferentes e parecidos, como a morte atrás de uma sala de incuráveis. Uma
obsessão intensa tritura e machuca esses personagens, sem que nenhum deles a
acalme; ela persiste atrás deles, sempre a mesma, e os chama em vez de ser
chamada por eles.
Um tal mundo foi por muito tempo
matéria do conto; mesmo se os ecos americanos não nos repetissem
complacentemente que o álcool faz parte da lenda pessoal de Faulkner, o vínculo
entre seu universo e o de Edgar Poe e Hoffmann seria evidente. Material
psicanalítico parecido, raivas, cavalos, caixões, obsessões parecidas. O que
separa Faulkner de Poe, é a noção que um e outro possuem da obra de arte; mais
exatamente, é que a obra de arte existia para Poe, e primava pela vontade de
expressão — sem dúvida é isso que provisoriamente mais o afasta de nós. Ele
criava objetos. O conto, terminado, adquiria para ele a existência
independente e limitada do quadro de cavalete.
Vejo no enfraquecimento da
importância atribuída aos objetos o elemento capital da transformação de nossa
arte. Na pintura, está claro que um quadro de Picasso é cada vez menos “uma
tela”, cada vez mais a marca de uma descoberta, o rastro deixado pela passagem
de um gênio crispado. Na literatura, a dominação do romance é significativa,
pois, de todas as artes (e eu não esqueço a música), o romance é a menos governada,
aquela onde o domínio da vontade se encontra mais limitado. O quanto
Dostoiévski e Balzac dominam os Karamazov e as Ilusões Perdidas,
vê-se ao se ler esses belos livros depois dos belos romances paralisados de
Flaubert. E o essencial não é que o artista seja dominado, mas que há cinquenta
anos ele escolha cada vez mais aquilo que o domina, que ele ordene em função
disso os meios de sua arte. Certos grandes romances foram em primeiro lugar
para seu autor a única coisa que pôde submergi-lo. E, como Lawrence se envolve
na sexualidade, Faulkner se refugia no irremediável.
Uma força surda, às vezes épica, é
desencadeada em Faulkner assim que ele consegue afrontar um de seus personagens
e o irremediável. E talvez o irremediável seja seu único verdadeiro tema,
talvez para ele sempre se trate de conseguir esmagar o homem. Eu não ficaria de
forma alguma surpreso que ele com frequência pensasse suas cenas antes de
imaginar seus personagens, que a obra fosse para ele não uma história cujo
desenrolar determina situações trágicas, mas, ao contrário, que ela nascesse do
drama, da oposição ou esmagamento de personagens desconhecidos, e que a
imaginação apenas servisse para encaixar logicamente os personagens nessa
situação pré-concebida. Seja de uma impotência de escravo plenamente sentida (a
jovem garota na casa dos gangsters), seja do absurdo irremediável (o estupro
com a espiga de milho, o inocente queimado, Popeye3 em fuga mas
estupidamente condenado por um delito que não cometeu; em Enquanto Agonizo
o fazendeiro que cuida do seu joelho doente envolvendo-o com cimento, o
magnífico monólogo de cólera), surge em Faulkner a exaltação tensa que faz sua
força, e é o absurdo que dá a seus personagens secundários, quase cômicos (a
dona do bordel com seus cachorros), uma intensidade comparável àquela de
Shchedrin. Não direi Dickens; pois, mesmo ao redor de tais personagens espreita
o sentimento que dá valor à obra de Faulkner: a cólera. Não se trata aqui dessa
luta contra seus próprios valores, dessa paixão da fatalidade pela qual quase
todos os grandes artistas, de Baudelaire ao Nietzsche meio cego que canta a
luz, exprimem o essencial deles mesmos; trata-se de um estado psicológico
sobre o qual repousa quase toda a arte trágica, e que nunca foi estudado porque
ele não deriva da estética: a fascinação. Assim como o opiômano só encontra seu
universo depois da droga, o poeta trágico só exprime o seu num estado
particular, cuja constância mostra a necessidade. O poeta trágico exprime
aquilo que o fascina, não para se livrar disso (o objeto da fascinação
reaparecerá na obra seguinte) mas para mudar sua natureza; pois, exprimindo-o
com outros elementos, ele o faz entrar no universo relativo das coisas
concebidas e dominadas. Ele não se defende contra a angústia exprimindo-a, mas
exprimindo outra coisa junto dela, reintroduzindo-a no universo. A fascinação
mais profunda, aquela do artista, tira sua força na medida em que ela é ao mesmo
tempo o horror, e a possibilidade de concebê-lo.
Santuário é a intrusão da tragédia
grega no romance policial.
Notas
1 Texto publicado pela primeira
vez na Nouvelle Revue Française, em 1933; posteriormente publicado como
prefácio à edição francesa de Santuário, em 1934. Nos próximos meses
traduzirei para o Letras uma série de artigos escritos por André Malraux.
Malraux é o objeto de meu estudo no Mestrado, que conta com financiamento da
FAPESP (processo 2022/03423-9).
2 Referência que não pôde ser
elucidada pelos organizadores da obra completa de André Malraux pela Bibliothèque
de la Pléiade.
3 Personagem de Santuário.
* Tradução de Guilherme de Almeida Gesso.
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