Por que gostamos dos maus num romance?

Por Andrés Seoane

Ilustração para Crime e castigo. Dave McKean.


 
O famoso crítico literário italiano Alfonso Berardinelli disse que, com o passar dos anos, o romance deixou de ser apenas um gênero literário para se tornar, sobretudo, o gênero jornalístico por excelência. Uma transformação que, como defende Carlos Clavería Laguarda (Caspe, 1963), doutor em Filologia e estudioso de livros antigos, criou “um novo tipo de leitor, aquele que não se indigna com a abjeção, mas sim, em graus variados — da aceitação passiva à mais efusiva admiração —, fica satisfeito com as travessuras dos personagens e até com a dor que sofrem”.
 
Mas, quando nasce esse fascínio pelo tipo vilão de cinema? Em que ponto e por que o leitor consegue simpatizar com a superficialidade patética de Josef K., os preconceitos infantis de Elizabeth Bennet, a ambição sem limites de Julien Sorel, a calculada fúria homicida de Raskolnikov ou a paixão proibida de Ana Ozores e Emma Bovary? Nas páginas de Elogio de la abyección. Quince personajes de novela (Altamarea) [Em louvor da abjeção. Quinze personagens de romance, em tradução livre], Clavería nos embarca numa longa viagem, luminosa e erudita pela transformação do romance até como o conhecemos hoje, quando deixou de ser “apenas uma sequência de acontecimentos expressa com vontade de estilo literário para se tornar no porta-voz de todo um tipo de sociedade, em um drama clássico, em que o contexto determina a evolução de seus protagonistas”.
 
Para esta viagem, o autor escolhe como companheiros alguns dos personagens mais queridos, admirados ou vilipendiados da história da literatura, quinze ilustres “abjetos” de romances que conquistaram e continuam a conquistar leitores pelo fascínio e preocupação que desperta sua vileza. “Esses personagens têm em comum o fato de representarem alguns aspectos da condição humana; ou seja, são criaturas de papel que confrontam o leitor com a humilhação, com a vaidade, com a arrogância, com a raiva, com a mentira, com o desespero, com a insatisfação e com sentimentos semelhantes”.
 
Admirar de longe
 
Em outras palavras, Tom Jones, Anna Kariênina, David Copperfield, a família Buddenbrook, Stephen Dedalus ou o Virgílio de Hermann Broch, para citar alguns desses outros personagens, abrem portas para mundos proibidos, para mundos que melhor se viajam no conforto de um sofá do que em nossa própria carne. “Ler um romance é a maneira mais imediata de o leitor se sentir também protagonista de um mundo diferente e fascinante”, defende Clavería. “Só lendo é possível se sentir admirador de alguns comportamentos terríveis que acabam não comprometendo você moralmente. É muito bom admirar as travessuras dos outros se nos entretêm, e ainda mais se não nos atingem”.
 
Mas uma vez assumidas as razões mórbidas do leitor, resta perguntar o que leva o outro ator do jogo, o escritor, a optar por esses espécimes para derramar neles seus desejos, paixões e visão de mundo. “Durante séculos, sem um personagem poliédrico, sem um personagem marginal, sem um personagem que representasse boa parte dos pecados capitais (da luxúria flácida de Julien Sorel à gula de Pepe Carvalho), um romance não poderia ser construído”, argumenta o autor. “Dizem que Alonso Quijano foi o primeiro moderno marginal, tanto que ao invés de se adaptar ao mundo pretendeu instaurar o seu e, assim, criou um gênero literário. Hoje, querer mudar o mundo parece moralmente repreensível aos olhos de muitos. É por isso que personagens audaciosos se tornam mitos, porque não desistem ao primeiro empecilho e por isso servem para explicar novas aventuras romanescas”.
 
Peripécias que, na opinião de Clavería, parecem ter desaparecido nas últimas décadas do que conhecemos como romance, pelo menos com aquele tom épico e totalizante que tinham as grandes produções literárias do século XIX. “Até há poucos anos o autor queria escrever, como o gênero exigia, o conflito de um personagem desajustado com uma sociedade, e o resultado era sempre irresistível: pense em Crime e castigo”, diz o autor, que, no entanto, alerta que algo mudou. “Agora, com o triunfo do que uma editora como Herralde chama de ‘best-sellers deliberados’, o autor se deve a outros tipos de interesses, inclusive fazer do romance um ‘gênero jornalístico ou um livro cheio de assuntos marcantes, apenas chamativos”.
 
O fim do romance clássico?
 
No entanto, apesar da deriva do mercado atual, que obviamente determina o que e como se escreve, Clavería não teme pela saúde daqueles que, agora transformados ícones, alimentam nossa imaginação há décadas e até séculos. “Os grandes personagens geralmente são representações também das melhores mentes de seu tempo”, diz ele. “Se a aspiração legítima do grande romancista é criar um personagem, ou um mundo, que vá além do papel e do momento, a tarefa do leitor — defende — deve ser considerada importante, pois com o ato de ler (e da reflexão que ele suscinta) repetidamente dá vida a uma criação abstrata. O leitor, cada vez que lê, dá vida ao personagem e o torna contemporâneo e universal”.
 
Neste sentido, o autor tira o ferro do conhecido torniquete do final do romance que há anos ressoa com insistência no mundo literário. “Como desvalorizar um gênero que deu Os Buddenbrook, La Regenta, A morte de Virgílio, O mal obscuro, La fea burguesia ou Todas as almas?¹ Talvez aqueles que se sentem incapazes de atingir tais alturas literárias considerem o romance um gênero no fim, mas isso é outra questão”, ironiza. “Basta um leitor que abra com devoção um romance de Dickens para manter todo o gênero de pé. Em suma, dizer que o romance está morto é uma justificativa esópica, como diz a raposa da fábula: não quero porque não é do meu agrado”.
 
Notas da tradução
1 De Thomas Mann, Leopoldo Alas, Hermann Broch, Giuseppe Berto, e Javier Marías, respectivamente.
 
* Este texto é a tradução livre para “¿Por qué nos gustan los malos de novela?”, publicado aqui, em El Cultural.
 

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